Léu Britto/ Agência Mural
Por: Glória Maria | Isabela do Carmo
Edição: Paulo Talarico
Edição: Léu Britto
Publicado em 16.05.2024 | 11:49 | Alterado em 05.06.2024| 15:16
Insegurança e desvalorização são sentimentos presentes dos motoboys das duas maiores favelas de São Paulo
Tempo de leitura: 8 min(s)No começo de março, uma iniciativa da empresa iFood chamou a atenção de entregadores de Paraisópolis e Heliópolis, na zona sul de São Paulo. Denominado “iFood Acredita na Favela”, o programa prevê capacitar empreendedores negros a partir de consultorias voltadas à gestão de negócios e linha de crédito.
“Eles dão uma condição precária para os motoboys e depois querem lançar programa dentro da favela pra depois falar que estão dando suporte, sendo que nós nem somos escutados”, desabafa Gustavo Gomes, 25, motoboy que atua em Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo.
A avaliação foi a mesma de João Paulo, 26. “Não dá pra criar um programa para pessoas negras, se a mesma empresa não olha, e não dialoga com os trabalhadores dessas mesmas periferias que estão se arriscando para fazer essa máquina girar. Não faz sentido para nós.”
João Paulo, entregador de aplicativos no Paraisópolis Léu Britto/ Agência Mural
Após o lançamento do programa, a Agência Mural buscou ouvir como os entregadores de Paraisópolis e Heliópolis têm visto as atuais condições de trabalho. Eles relatam que insegurança e desvalorização são sentimentos presentes dos motoboys das duas maiores favelas de São Paulo.
A reportagem também conversou com o iFood, empresa que atua com delivery de comida e mercado, sobre as queixas dos entregadores e para questionar o que tem sido feito sobre as condições de trabalho.
Aos 11 anos, João Paulo precisou se desdobrar para ajudar em casa. Uma das maneiras que encontrou foi fazer entregas de bicicleta para pizzarias dentro da própria favela de Paraisópolis.
Com o tempo e com a chegada dos aplicativos no Brasil, João juntou dinheiro das entregas de bike, conseguiu tirar a carteira de habilitação e comprar uma moto, um primeiro investimento para melhorar a condição de deslocamento.
João trabalha com os aplicativos como iFood, Rappi e outros desde 2015 e essa tem sido a única renda, com a necessidade de trabalhar entre 12h e 18h por dia.
‘É cansativo passar todas essas horas em cima de uma moto. O corpo fica dolorido, mas preciso pagar minhas contas. Esse tem sido o caminho que eu tenho achado, me sobrecarregar para sobreviver’
João, entregador de aplicativo
Muitos desafios são encontrados no dia a dia dos entregadores. Para João o trânsito é um deles por ser um lugar mais perigoso para os motoqueiros, há também o desafio de voltar com uma boa fatura. “A taxa do iFood, é baixíssima, o valor do Km é entre R$ 1 e R$1,50, é revoltante ver que nossa mão de obra é tão desvalorizada”, afirma.
Ele ressalta que em alguns dias os motoboys perdem tempo parados aguardando o pedido do restaurante ficar pronto. Eles só recebem algo a mais depois de 15 minutos de espera. “O valor é de 15 a 20 centavos por minuto, mas queremos regulamentar esse tempo de espera para que seja melhor valor”, comenta.
A taxa de espera e a de entrega são as principais pautas, o valor ainda é baixo para os motoboys, João comenta que precisa trabalhar muito na semana para tirar cerca de R$ 80 a R$ 120 e que às vezes precisa seguir fazendo bicos em lanchonetes e pizzarias em Paraisópolis para completar a renda.
João comenta que estar na rua é estar em vulnerabilidade. Ele já passou por diferentes situações de violência, como racismo. Ele já foi enquadrado pela polícia por pensarem que estava roubando. “Sendo que eu estava na portaria esperando o cliente descer”, relembra. “A violência às vezes vem do próprio cliente.”
Gustavo Gomes, 25, motoboy há 5 anos e morador de Paraisópolis, também se sente vulnerável na rua, tanto com o trânsito, carros e motoristas que não estão atentos ao trânsito, quanto por causa dos dias de muito calor e exposição ao sol e chuva. “Ficamos muito expostos e o iFood não disponibiliza nenhum ponto de descanso para nós e nem uma água, assim fica difícil de trabalhar”, comenta.
Gustavo buscou os aplicativos quando foi demitido na pandemia de Covid-19 do restaurante que trabalhava como garçom. Na época, ainda conseguiu pegar alguns freelas e em seguida foi trabalhar de bicicleta, já que ele ainda não tinha nem habilitação nem moto.
Com a bike ele diz que o esforço é maior, principalmente para o corpo por ter que pedalar durante horas. “Chegava cansado fisicamente e psicologicamente, e no outro dia eu tinha que trabalhar todo dolorido, além do lucro ser menor”, comenta.
Gustavo Gomes fazendo entrega para um cliente no Paraisópolis Léu Britto/ Agência Mural
Depois de dois anos, Gustavo conseguiu tirar habilitação e alugou uma moto, dando sequência às entregas, única alternativa no momento da pandemia. Hoje as entregas são a única fonte de renda, mas é preciso ficar em média de 12h a 14h para ter uma remuneração que possa suprir o básico.
“Ser entregador é isso, é preciso ficar muito tempo na rua para ganhar uma graninha, se a taxa fosse mais alta poderíamos trabalhar menos“, diz o entregador.
Assim como Gustavo, João também aponta a ausência do aplicativo em pontos de apoio para os trabalhadores. “Às vezes a gente quer tomar uma água, usar um banheiro, e até carregar o celular para seguir com o trabalho, mas não há esse suporte. De vez em quando, algum restaurante ajuda com uma coisa ou outra, mas não é sempre”, afirma.
Para eles, despesas com manutenções da moto, consertos e gasolina poderiam ser custeados pelas plataformas em vez dos próprios entregadores como é feito atualmente. “A conta não bate”, afirma Gustavo.
Com uma jornada dupla de trabalho, Ridomir Berto da Silva, 35, morador da favela de Heliópolis, intercala duas profissões. De dia, atua enquanto auxiliar de marmoraria, já de noite, exerce o ofício de motoboy pelas ruas das periferias da zona sul de São Paulo.
No corre de segunda a domingo, o entregador reúne cerca de 8 anos de atuação no campo das entregas de comida via delivery.
Ao longo de quase uma década, Ridomir conta que já trabalhou como motoboy fixo em bares, restaurantes e pizzarias, mas que também já percorreu caminhos profissionais nos mais diversos apps de entregas de comida.
Com o iFood, por exemplo, o motoboy optou por abandonar essa plataforma por não se sentir seguro com ela, sobretudo nos âmbitos financeiro e de proteção pessoal.
“Eu já trabalhei no iFood, mas não achei vantajoso [em termos de valores]. Fora os golpes [de alguns clientes não pagarem após receberem as entregas], têm os roubos também, né?”, explica Ridomir, que já foi assaltado enquanto realizava a entrega de um pedido.
Em complemento, o motoboy traz um relato de um dos colegas de profissão, que também havia atuado no aplicativo vermelho. “O menino que eu conheço às vezes tira R$ 70 por dia, às vezes não faz nem duas entregas. No meu caso [quando trabalhava pelo iFood], já fiquei rodando desde às 19h, mas chegou 22h e só fiz R$ 30”, conta.
Atualmente, Ridomir trabalha exclusivamente de motoboy para uma única pizzaria em Heliópolis. Fazendo entrega na favela, mas também em bairros e cidades paralelas, como Sacomã, São João Clímaco, Vila Arapuá e ABC Paulista.
“Acho melhor trabalhar apenas em pizzaria, porque você já conhece os lugares de entregas e também não tem tanta preocupação em relação ao financeiro”, argumenta o entregador, que recebe, no mínimo, R$ 80 por dia por trabalhar fixamente no estabelecimento.
No entanto, seja em apps de entrega ou via delivery das pizzarias, Ridomir acrescenta que a profissão continua precarizada e desvalorizada nos dois campos de atuação. “Sofri um acidente de moto e o patrão [de uma pizzaria em que trabalhava anteriormente] só me perguntou se eu estava bem e se iria conseguir fazer as entregas normalmente no dia seguinte.”
‘No iFood ou trabalhando de motoboy fixo para os bares, restaurantes e pizzarias, eles não querem nos escutar ou entender como foi o acidente, só querem mesmo saber do lucro da entrega e já era’
Ridomir, motoboy
Para o morador de Heliópolis, as plataformas de foodtech e os restaurantes que fazem uso do delivery, deveriam implementar nos modelos de negócio um apoio financeiro aos entregadores.
“Falta pelo menos um auxílio, que é justamente para fazer alguma coisa na nossa ferramenta de trabalho, para a manutenção da moto ou até para comprar um pneu. Só um pneu é R$ 450”, ressalta Ridomir.
No dia 4 de março de 2024, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) direcionou ao Congresso Nacional o PLP n. 12/2024 (Projeto de Lei Complementar), que visa regulamentar o trabalho de transporte por aplicativo, a fim de viabilizar a “inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições” dos trabalhadores da Uber, 99 e outros aplicativos.
No entanto, a legislação que ainda está em tramitação restringe-se apenas a veículos automotores de quatro rodas.
Neste primeiro momento, o PLP não contempla uma regulamentação especificamente voltada aos aplicativos de entrega (iFood, por exemplo). Deste modo, a atuação dos motoboys e motogirls segue sem uma previsão de respaldo governamental oficial.
Paralelo a isso, Camila Carvalho, advogada, especialista em Direitos Trabalhistas e presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Itaquera, reflete sobre como a justiça está posicionada em relação aos trabalhadores de entrega de comida.
Segundo a advogada, parte dos motoboys e motogirls trabalham na modalidade autônoma. Isso significa que, caso esses mesmos trabalhadores estejam em dia com os pagamentos obrigatórios dessa categoria, os mesmos passam a ter direito à previdência social.
No entanto, a especialista em Direitos Trabalhistas também afirma que, na situação da pessoa entregadora não realizar a efetivação das guias de pagamentos, os benefícios não poderão ser recolhidos.
“Infelizmente, se vier a falecer, a família consegue uma pensão por morte. Mas tudo depende deles estarem inscritos no INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) e realizando os pagamentos com regularidades”, aponta.
No entanto, na grande maioria dos casos, Carvalho relata que nem todos os entregadores se categorizam profissionalmente, seja como CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) ou autônomo.
‘Se o motoboy só recebe aquele valor da hora e do dia dele, sem realizar nenhum pagamento ao INSS, infelizmente ele não tem nenhuma segurança financeira. Atualmente, eles realmente estão desprotegidos [pela lei]’
Camila Carvalho, advogada
“De modo geral, não dá para falar [que os aplicativos de entrega de comida] só prejudicaram os entregadores. Mas vejo que foi uma forma de precarizar o trabalho deles”, afirma a advogada.
A iniciativa do programa ‘iFood Acredita na Favela’ foi pensada pela empresa junto com a Favela Holding, grupo mantenedor da Cufa (Central Única das Favelas). Segundo a empresa, o programa vai capacitar empreendedores negros a partir de consultorias voltadas à gestão de negócios e linha de crédito.
O projeto teve início em Salvador (BA) como piloto e agora chega para atender cerca de 100 empreendedores.
Em resposta à Agência Mural, o iFood afirma que o projeto destinado aos microempreendedores das favelas ajudará também os entregadores.
“A gente, de certa forma, consegue melhorar o ecossistema que está ao redor daquele restaurante, da própria comunidade e do próprio iFood, dos entregadores que estão fazendo ali também o trabalho”
Johnny Borges, diretor de Impacto Social do iFood.
A ideia é que como os restaurantes vão poder vender mais, isso ajudará tanto a ter mais entregadores ali, quanto a mais recursos para as favelas. A empresa cita ainda que criou um programa chamado Chega Junto, com o valor de R$ 1 milhão para projetos criados por entregadores em suas comunidades.
Sobre a discussão relacionada à regulamentação, a empresa diz que “apoia publicamente a regulamentação do trabalho intermediado por plataformas digitais no Brasil.” A empresa tem participado dos grupos de discussão criados pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Porém, o iFood afirma que a regulamentação não pode ser a mesma apresentada para os motoristas de aplicativos de transporte.
“Não devem ser aplicadas as mesmas regras e modelos para as duas categorias. A principal diferença é o tempo de dedicação na plataforma, que é menor no caso dos entregadores”, diz a empresa.
“Se aplicado o modelo de previdência proposto no PLP de motoristas, 100% da base de entregadores ativos no iFood seriam tributados, mas menos de 7% deles atingiram a contribuição mínima exigida para se ter acesso aos benefícios. O resultado seria uma tributação do entregador e das plataformas sem inclusão efetiva.”
Disse também que possui mais de 170 pontos de apoio, dois deles com investimento 100% iFood, um em parceria com o poder público e dois em parceria com empresas privadas. Há 150 com apoio de restaurantes. “A gente precisa, durante a rota que o entregador está fazendo, mostrar onde tem ponto de apoio. Isso é um processo que estamos olhando no campo das melhorias internas”.
Moradora de Paraisópolis, jornalista, produtora audiovisual e co-fundadora do estúdio 7 Notas, espaço que acolhe artistas locais e movimentando artes
Graduanda em jornalismo pela UAM, com bolsa integral pelo ProUni. Atua na produção de reportagens com foco em diversidade e inclusão, cidadania e direito à cidade. É correspondente do Heliópolis desde 2023.
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