Entre bancas e sombreiros, os ambulantes da Liberdade, bairro conhecido como um centro popular de Salvador, traçam estratégias para enfrentar uma dualidade provocada pela pandemia desde o ano passado: o esvaziamento de fregueses e o aumento da concorrência no espaço.
O ambulante José Luiz dos Reis, 35, vende óculos solares no local há 16 anos e conta ter mudado sua tática de trabalho neste último ano. Para economizar, ele deixou de encomendar pedidos de “sacoleiros” de São Paulo e passou a viajar para Feira de Santana, a 115 km de Salvador, para abastecer sua banca com novidades.
“Meu trabalho é oferecer uma variedade grande de óculos importados da China. A Liberdade tem o que o comércio de outros bairros não têm, com os preços que todo mundo pode pagar”, diz o ambulante.
Apesar de residir em Paripe, Reis guarda suas mercadorias em uma loja e remonta sua banca todos os dias logo cedo, às 8h, quando o estabelecimento abre as portas. A maioria das lojas começam a baixar as portas às 18h, horário que as bancas do comércio de rua também são recolhidas.
Assim como Reis e a maioria dos ambulantes da Liberdade, a aposentada Solange dos Santos, 70, também monta e desmonta sua banca de bijuterias de segunda a sábado. Vendedora na região desde 1988, ela diz perceber mudanças na configuração local desde o ano passado.
“Essa pandemia veio e as pessoas só podem ir para rua ganhar sua renda. A Liberdade já era atrativa para os ambulantes de outros bairros, com essa crise que estamos o número só aumentou”, diz Solange.
Em contrapartida, o fluxo de fregueses caiu, segundo os comerciantes, e as dificuldades financeiras não permitiram uma pausa no período. “No meu caso, um salário mínimo de aposentadoria não cobre minhas despesas. Continuo trabalhando de máscara mesmo vacinada da Covid-19”, relata Solange.
Com a pandemia, Solange passou a receber o auxílio emergencial de R$ 270 oferecido pela Prefeitura de Salvador para os ambulantes, com mais de 60 anos, cadastrados na Semop (Secretaria Municipal de Ordem Pública).
Ambulantes e feirantes estão entre as profissões reconhecidas pela prefeitura como as mais afetadas pela Covid-19, por lidarem diretamente com o fluxo das ruas e o contato entre vendedores e clientes.
Para se cadastrar e obter a licença de ambulante, além dos documentos básicos, como CPF e RG, o profissional deve apresentar à Semop um croqui (rascunho feito à mão) da localização que pretende ocupar na via pública em uma área de até 1,5 m².
Credenciada, Solange paga uma taxa mensal de R$ 126 por 1 m² da calçada na rua principal da região. Contudo, a vendedora reclama que as promessas eleitorais de projetos de ordenamento público nunca foram concretizadas.
“Eu vi candidato vir aqui em eleições passadas, falar com a gente sobre planos de padronização das nossas bancas, depois de ganhar a eleição para vereador e dar as costas para a situação. Aqui a competição por espaço sempre foi regulada pelos próprios ambulantes e pelo que eu vejo não vai mudar”, comenta a aposentada.
RUA PRINCIPAL
A disputada calçada onde Solange está fica na Estrada da Liberdade, considerada a rua principal da região, que mescla características residenciais e comerciais.
“O bairro apresenta diversos trechos, localidades e comunidades, fazendo com que apareçam características bem distintas em toda sua extensão”, analisa Ana Cláudia Nogueira Maia, doutora em Geografia pela UFBA (Universidade Federal da Bahia).
A via de mão dupla para os meios de transporte conecta outras zonas comerciais e residenciais da Cidade Baixa e Cidade Alta, como a ligação entre a Calçada e o Centro.
Para Ana Cláudia, essa configuração mista da rua é um atrativo potencial para os negócios. “As atividades comerciais desenvolvidas na antiga Avenida Lima e Silva, como muitos ainda chamam a atual Estrada da Liberdade, atraem um grande número de pessoas, conectando, sim, esses diferentes espaços do bairro”, observa.
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O ambulante Genivaldo Lima, 45, é um exemplo de quem aproveita essas duas facetas da Liberdade. Há 25 anos ele mora em uma das avenidas que se conectam à rua principal, onde trabalha vendendo CDs e DVDs, desde 2001.
Com a primeira dose da vacinação contra Covid-19 em dia e utilizando máscara, ele também reclama da queda no fluxo de clientes no período. “O movimento caiu, levando em consideração que minha clientela é idosa e precisa se manter em casa”, avalia.
Lima diz que seu negócio, apesar de parecer um ramo defasado, tem fregueses cativos, como pessoas que não se adaptaram ao uso de pendrives e o consumo de músicas em streaming via Internet.
Por outro lado, ele destaca a solidariedade entre comerciantes formais e informais, um fator que sustenta o bairro como um dos principais centros da economia popular na capital baiana.
“Se eu precisar de troco para uma nota de R$ 50 ou R$ 100, peço ao ambulante do meu lado para olhar minhas mercadorias enquanto saio para trocar com a loja mais próxima. Quando a loja precisa, também troca com um ambulante. Essa é nossa rotina”, comenta Lima.