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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Jacqueline Maria da Silva

Edição: Sarah Fernandes

Publicado em 19.09.2025 | 11:08 | Alterado em 16.10.2025| 8:01

RESUMO

São Paulo tem quase todas as unidades básicas de saúde geridas por organizações sociais

Tempo de leitura: 7 min(s)
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Era março de 1986. Milhares de pessoas se reuniram por dias no Ginásio Nilson Nelson, em Brasília, em clima de muita expectativa. Quem via de longe podia pensar que era uma final de campeonato, mas na verdade era a 8ª Conferência Nacional de Saúde.

O evento foi convocado pelo Ministério da Saúde para a estruturação de uma das políticas mais importantes do país: o Sistema Único de Saúde (SUS), que nesta sexta-feira (19) completa 35 anos.

Iara em uma das ações de vigilância em saúde. Em 35 anos de SUS, ela já atuou em diversas frentes @Acervo Pessoal

Durante os encontros, do outro lado do país, em um posto de saúde na periferia de Tremembé, zona norte da capital, estava Iara Maria Ferreira, 65, moradora do distrito. Entre consultas, vacinas e curativos, a enfermeira exercia o ofício, enquanto torcia pela criação do SUS. Ela sonhava com a ampliação do acesso à saúde para todos, e na época era acessada por quem podia pagar, funcionários públicos ou por quem tinha carteira assinada.

Foram mais de 40 anos dedicados à saúde, em que Iara acompanhou importantes transformações. Uma delas foi no ápice da epidemia de AIDS, na década de 1990, na qual passou a atuar com tratamento de pacientes e prevenção. Depois foi convidada para organizar a vigilância sanitária da região de Santana, na zona norte de São Paulo, onde trabalhou por mais 20 anos, até se aposentar.

“Sou apaixonada pelo SUS! Minha geração vinha da ditadura militar. As pessoas tinham garra de luta, eram politizadas. Foi um grande movimento da população que culminou na Conferência de Saúde”.

O Sistema Único de Saúde foi idealizado em 1986 na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Ele foi previsto na Constituição de 1988 e lançado oficialmente em 1990.

Antes dele, quem podia pagava por consultas e atendimento. Os mais pobres tinham acesso à saúde gratuita apenas se fossem trabalhadores formais, atendidos pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social. Quem não tinha carteira assinada, recorria a instituições filantrópicas, hospitais universitários ou a reduzida rede pública existente na época.

A detecção precoce ou tratamento para doenças graves, como câncer, não era uma realidade para classes mais baixas e a mortalidade por doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, eram altas.

“No Brasil, essa luta veio muito das periferias, organizada por donas de casa, mulheres que lutavam para ter um postinho, para ter atenção primária, acesso a cirurgias e parto cesariano, pois a mortalidade materna era muito alta”, explica Gastão Wagner Souza Campos, médico de família e comunidade, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e pesquisador em saúde pública.

O especialista chama a atenção que o SUS não é inédito e que outros países foram pioneiros em programas de saúde pública, como a Inglaterra, na década de 1940, com National Health Service, ou Serviço Nacional de Saúde. O modelo inspirou o sistema brasileiro, a partir de um debate encabeçado por partidos de esquerda, pela opinião pública e por movimentos populares.

Propostas populares compuseram a Constituição de 1988, que possibilitou a criação do SUS em 1990 @Revista Radis – Comunicação em Saúde/ENSP/Fiocruz

A consolidação do SUS trouxe consigo a reorganização dos serviços de saúde por níveis de complexidade, garantiu o apoio à prevenção de doenças que antes levavam à morte (como sarampo e difteria), a ampliação das vacinas e a criação do programa de transplante.

Quatro fatos sobre o SUS

1

Todos os brasileiros são usuários do SUS, de forma direta e indireta. Qualquer pessoa em território nacional tem direito a atendimento gratuito e universal.

2

Sete em cada 10 pessoas dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde. A cada 10 internações no Brasil, seis são feitas pelo SUS. 

3

Em 1991, foi criado o Programa de Agentes Comunitários, em que profissionais visitavam as casas fazendo monitoramento de saúde. Em 1994 ele foi renomeado como Estratégia de Saúde da Família, que incluiu médicos e enfermeiros neste cuidado. Em 2024, o país contava com 52 mil equipes, em 70% do território nacional. 

4

O SUS engloba serviços de odontologia, farmácia popular, remédios de alto custo, práticas integrativas, vacinas, vigilância sanitária, doação de  sangue, bancos de leite, doação de órgãos e SAMU, além de fiscalizar o restaurante à vacina do cachorro. 

Fontes: Centro de Cultura do Ministério da Saúde, IBGE e Radis

Viva o SUS, mas até quando?

Mas o que aconteceria se o SUS fosse privatizado? Para a enfermeira Iara vale refazer a pergunta: “quando o SUS começou a ser privatizado?”. Isso porque, em São Paulo, diversos serviços já são geridos por cooperativas ou organizações sociais, as chamadas OSs.

O movimento começou na década de 1990, na gestão do ex-prefeito Paulo Maluf (então do Progressista), com a criação do Plano de Assistência à Saúde, o PAS.

As cabines no estádio, na 8ª Conferência, onde conselheiros de saúde, populares, gestores se reuniram para decidir sobre o futuro da saúde propostas. @Revista Radis – Comunicação em Saúde/ENSP/Fiocruz

Esse programa municipal dividiu o município de São Paulo em módulos por territórios, na qual a gestão da verba e contratação de funcionários para hospitais e postos passou a ser feita por cooperativas de profissionais de saúde. Na teoria, qualquer pessoa com cartão do PAS poderia passar nos serviços, mas na prática, elas eram barradas quando não pertenciam àquele território.

Em 1999, o PAS foi transferido para gestão direta da prefeitura, mas deixou o legado da privatização. Iara lembra que esse processo foi marcado por terceirizações e realocação de funcionários concursados.

Mais tarde, em 2006, com o Decreto 47.453, houve outro baque para a saúde pública. O ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) autorizou que equipamentos públicos de saúde passassem a ser geridos por organizações sociais, as OSs.

Apaixonada pelo SUS, ela vivenciou diversas fases como o nascimentos dos centros de tratamento para AIDS e a vacinação durante a pandemia de Covid-19 @Acervo Pessoal

Quem vive essa realidade na pele é a psicóloga Fernanda Gomes Torres da Silva, 31, da Brasilândia, na zona norte de São Paulo. Ela atuou em um CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) até 2024, como contratada por OSs.

Com o avanço do modelo de gestão na saúde pública ela foi surpreendida, em 2022, com a Portaria Municipal número 333, que estabelecia metas numéricas para validação dos serviços prestados pelos profissionais de saúde, como quantidade de atendimentos.

“Com a privatização, você busca um mecanismo de controle de orçamento, uma tentativa falsa de mensurar para onde que o dinheiro vai. Na prática, fazer um número muito alto de atendimentos não é garantia de qualidade”, pontua a psicóloga.

Para questionar o modelo, Fernanda e outros profissionais de saúde integram, desde 2022, o Movimento Viva SUS, que cobra organizações sociais com petições e informam a população sobre os riscos da privatização.

‘Nós não somos contra as metas, somos contra esse tipo de meta que não vai mensurar nada. Somos a favor de metas qualitativas, em que se preza o olhar integral’

Tatiana Vasconcellos Anéas, coordenadora da Associação Paulista de Saúde Pública, explica que a terceirização se refere à transferência de algumas atividades para a iniciativa privada, enquanto que a privatização é a entrega total da gestão. Nesse sentido, ela acredita que o município de São Paulo passa de fato por uma privatização do SUS.

Isso porque a maior parte dos serviços que compõem a Atenção Básica, porta de entrada para o sistema, está sob gestão das OSs, que recebem recursos públicos para administrar equipamentos de saúde. Das 479 unidades básicas de saúde da capital paulista, 469 (ou 98%) são administradas por organizações sociais, segundo a Secretaria Municipal da Saúde.

Iara sempre atuou na periferia em que vive, no Tremembé, quando só tinha acesso à saúde porque era funcionária pública @Acervo Pessoal

“Há a entrega da autonomia dos serviços para as OSs, com pouca regulamentação. Uma grande fatia do orçamento público vai para estas instituições sem a devida fiscalização”, aponta. “A experiência de São Paulo mostra que a privatização gera precarização do trabalho, que repercute no funcionário e no usuário da saúde”.

Um levantamento da Agência Mural de 2020 mostrou que 6 em cada 10 UBS eram geridas pelo terceiro setor, sendo que 12 subprefeituras tinham mais de 80% dos serviços terceirizados. Agora esse número chega a quase 100%, conforme dados da prefeitura.

São Paulo não é um caso único. Na Região Metropolitana, Santo André e Embu das Artes têm 100% das UBSs geridas pela iniciativa privada (19 e 15, respectivamente). Em Suzano, das 23 unidades, 12 são terceirizadas (52%), segundo dados das prefeituras.

Riscos da privatização do SUS

Perda da autonomia profissional e adoecimento 

Em prol do cumprimento de metas, as decisões sobre o cuidado passam a ser verticalizadas, segundo profissionais ouvidos na reportagem. Eles relatam perder autonomia, sofrer com adoecimentos ou até desistir da carreira no SUS.

“Não fiquei 4 anos no CAPS à toa. Eu gostava de trabalhar lá. Havia supervisão institucional, que é um direito do trabalhador, um espaço para se falar sobre o trabalho, mas que já foi usada para demitir trabalhador”, desabafa. Ela acabou deixando a saúde pública.

Ameaça à qualidade

São incentivadas condutas previamente definidas, muitas vezes prescritivas, e distantes da realidade dos territórios, sem prezar pela integralidade, escuta ativa e a humanização do atendimento, segundo profissionais. 

“Se você não trata como é orientado, corre o risco de ser demitido”, diz Fernanda.

Burocratização e barreiras de acesso aos serviços

Com diferentes gestões para os serviços de saúde, o trabalho acaba fragmentado, gerando barreiras de acesso.

Um exemplo é o uso do prontuário eletrônico, já existente no SUS. Ele unifica as informações dos usuários, mas na prática é pouco utilizado pelas OSs, aponta Fernanda. Isso impede a atualização correta e dados sobre a saúde do paciente. 

“Já vi pacientes serem negados em serviços porque eram de outras OSs, ferindo o princípio da universalização”, diz a profissional da saúde.

Perda do controle social 

Iara sempre atuou nos conselhos de saúde, órgãos criados com SUS para planejamento e controle das políticas públicas, mas afirma que com as OSs os conselhos têm sido invisibilizados.

Os conselheiros não são mais ouvidos, nem respeitados. A gente passou por uma situação no mês passado em que foi lido  um documento jurídico falando que seria proibido visitar unidades de saúde, na tentativa de acabar com o controle social”, diz.

Para os próximos 35 anos

Sete em cada dez brasileiros dependem do SUS para acompanhamento em saúde, segundo o último Censo do IBGE. Iara, Fernanda e milhões de outras pessoas compõem estas estatísticas.

“Eu tenho uma avó com Alzheimer. O fato de uma fisioterapeuta do SUS ter ido a casa dela, identificado que ela está com dificuldade de andar e indicado os exercícios foi extremamente importante”, conta Fernanda com emoção.

Daqui a 35 anos, ela deseja que a saúde seja pensada não como um projeto, mas como um direito que engloba outros, como moradia, alimentação e saneamento.

“As pessoas têm direito à saúde, à educação, à habitação, ao saneamento básico e à segurança pública. Tudo isso é política pública e o SUS é uma delas. Não dá para uma empresa privada fazer isso, porque ela não faz uma cobertura universal”, pontua Gastão.

A 8ª Conferência Nacional de Saúde tinha como tema ‘Saúde como direito’, prevendo a criação de um sistema público para todos @Departamento de Arquivo e Documentação/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Fotógrafo: Álvaro Pedreira

Um dos gargalos, porém, é que a execução de políticas públicas depende do governo que esteja no poder. Logo, apesar da consolidação do SUS, seu futuro também depende de interesses políticos.

Algumas ações já têm enfraquecido e contribuído para desconstrução do SUS. Uma delas é a redução no orçamento, sobretudo nas gestões de Michel Temer (2016 a 2018) e de Jair Bolsonaro (2019 a 2022).

Em 2015, o orçamento total da saúde foi de R$195 bilhões. Em 2016, o montante caiu para R$175 bilhões. Nos anos seguintes, reduziu ainda mais, chegando a R$167 bilhões em 2022. Só voltou a crescer em 2023, indo para R$201 bilhões, com previsão de R$233 bilhões para 2025.

Os dados são do Instituto de Estudos para Políticas e Saúde e demonstram a oscilação do orçamento federal para saúde, contanto despesas obrigatórias, não obrigatórias, emendas e o Programa de Aceleração do Crescimento.

Além disso, existe uma flexibilização na destinação de verba por emendas parlamentares para saúde, e os projetos de lei que propõem menor intervenção do Estado nas políticas públicas.

Em 2016, foi promulgada a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um novo regime fiscal por 20 anos, até 2036. A medida previa um limite no teto de gastos para despesas primárias da União (educação, saúde, previdência, segurança pública), impedindo a expansão de programas e a realização de concursos públicos.

Há um grandes desafios pela frente, mas com esperanças. A Resolução 757 de 2024, da ex -ministra da saúde Nísia Trindade, implanta mecanismos para tentar reduzir o processo de privatização da saúde pública.

O documento propõe, por exemplo, avaliação dos modelos de gestão e a adoção de medidas para coibir a precarização das relações de trabalho.

Além disso, o governo avança na elaboração de uma proposta para criar uma carreira única interfederativa com possibilidade de progressão e promoção. Enquanto isso algumas medidas são importantes:

Como aumentar a qualidade da saúde pública?

1

Garantir estabilidade dos funcionários por meio de concurso público.

2

Qualificar de mão de obra e garantir mais autonomia nos processos de trabalho

3

Maior investimento em atenção básica, sobretudo na Estratégia de Saúde da Família

4

Promover a educação popular para que os usuários se apropriem de discussões políticas sobre o SUS

5

Melhorar a comunicação entre população e trabalhadores da saúde

6

Fortalecer os conselhos de saúde e ampliar as fontes de financiamento do SUS

Fonte: Tatiana Vasconcellos Anéas,
coordenadora da Associação Paulista de Saúde Pública

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Jacqueline Maria da Silva

Jornalista, vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.

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