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Agência de Jornalismo das periferias

Por: Aline Almeida | Cleberson Santos | Gabriela Carvalho | Wellington Nascimento

Arte: Magno Borges

Edição: Paulo Talarico

Publicado em 20.07.2023 | 12:07 | Alterado em 24.07.2023| 23:18

RESUMO

Onda de apostas esportivas, que levaram a escândalos no futebol, se tornaram febre para garotos que acompanham futebol. Mas quais os riscos por trás de entrar nessa jogada? Nesta reportagem especial, com HQ e entrevistas, abordamos como esse tipo de jogo pode influenciar a vida de jovens periféricos

Tempo de leitura: 7 min(s)
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É noite em uma praça da Grande São Paulo e amigos conversam perto de uma barraca de cachorro-quente. Mas nem todos estão atentos ao papo. Há jogos de futebol em andamento e vários deles estão com os olhos nos celulares, em busca das atualizações.

“Gol”, comemora um dos garotos com a camisa do Corinthians. Porém, o gol não é do time dele nem é um jogo de um rival. A mudança de placar foi no Campeonato Mexicano.

O interesse ali não era por ser um fã do que rola em um país distante. O que estava em jogo eram alguns reais que ele havia apostado naquele momento. Não só na partida mexicana, mas em alguns times argentinos e de outros brasileiros que estavam em campo.

Outro garoto da conversa falava da dúvida se tirava o dinheiro da aposta naquele momento ou se esperava mais um pouco. No fim do dia, alguns comemoravam e já miravam a rodada do fim de semana. Outros lamentavam.

Mercado de apostas têm movimentado fãs do esporte, mas por outra torcida @Magno Borges/Agência Mural

A cena tem se tornado cada vez mais comum com a febre de apostas esportivas que tem tomado conta do Brasil e sido um caminho muito comum para jovens nas periferias que têm visto nessa opção uma forma de ganhar dinheiro extra. No entanto, há riscos e especialistas alertam que esse ramo deveria ser um local de entretenimento, não para garantir sobrevivência ou enriquecimento.

Além do gosto pelo futebol que fica em segundo plano, há questões como o risco do vício e a falta de controle nos gastos. Para completar, nos últimos meses, o escândalo de manipulação em jogos do futebol brasileiro mostrou que a situação é preocupante inclusive para os clubes. O tema também pretende ser regulado pelo governo federal, que busca por arrecadar nesse mercado.

Nesta reportagem da Agência Mural, abordamos como as apostas têm pouco a pouco entrado na vida de jovens periféricos e como isso pode afetar inclusive a saúde mental de quem joga.

QUEM É O APOSTADOR

Uma pesquisa do Panorama Mobile Time/Opinion Box publicada em maio deste ano analisou o perfil do apostador brasileiro. Eles identificaram que o perfil médio de um jogador é homem, jovem e de baixa renda. Na análise por faixa etária, o percentual de pessoas que já apostaram em plataformas de apostas esportivas é de 36% no grupo de 16 a 29 anos. Dos mais de dois mil entrevistados, 30% são das classes D e E.

O jogo é outro

No Grajaú, na zona sul de São Paulo, Mateus Silva Pinheiro, 28, trabalha no ramo de auto escola. Ele começou a apostar há três anos ao sentir que era possível conseguir uma renda a mais.

“Imagina eu dentro de casa com minha companheira e sem trabalhar, precisava encontrar um meio de ganhar dinheiro”, conta. Eles recebiam auxílio emergencial, mas o valor não resolvia todas as despesas.

A melhor jogada é outra

O caminho para quem aposta tem sido cada vez mais estimulado. Há propagandas que chegam por todos os lados (na TV, sites, aplicativos de áudios, plataformas), influenciadores que passaram a receber de casas de apostas para divulgar as possíveis vantagens e uma proliferação de cursos que se espalharam pela rede.

Matheus, por exemplo, chegou a comprar seis cursos sobre o assunto e não saiu satisfeito de alguns deles, apesar de avaliar que há bons conteúdos no Youtube.

“Fazer um curso é arriscado, porque pode gerar frustrações maiores. Você está investindo dinheiro para fazer o curso, vai investir mais ainda quando começar a jogar”

Yasmin Lopes de Souza, 24, psicóloga e moradora de São Mateus, na zona leste de São Paulo.

A psicóloga Yasmin Lopes de Souza, 24, indica a necessidade de ter controle sobre os gastos e que, muitas vezes, as pessoas não param de apostar, mesmo quando perdem uma quantia considerável.

Foi o que ocorreu com Matheus. Ele conta que chegou a conseguir um valor significativo, mas perdeu tudo na sequência. Após o episódio ficou seis meses sem apostar.

Apesar disso, ele segue vendo o segmento como uma opção de renda extra. “Tudo o que fazemos são apostas, a vida é uma eterna aposta.”

A torcida com certeza é outra

Há também formas de lucrar antes mesmo do jogo começar, como fazia Lucas Brandão, 26, morador de Diadema, na Grande São Paulo. Ele começou a ter contato com apostas esportivas em 2013, quando se interessou pelo assunto após ver um anúncio em um canal de Youtube.

Desde então, nunca parou de apostar, apesar de que hoje não joga com a mesma frequência. Os investimentos que começaram com R$10 chegaram a valores como R$ 5 mil em 2021, no início da pandemia de Covid-19.

Nesse período, foi convencido por amigos a participar de um grupo de apostas que funcionava em um canal do Telegram. Os ganhos eram executados de uma maneira em que o apostador poderia faturar uma grana antes mesmo do início dos jogos.

“O método cashout era resumido em abaixar as odds da casa de apostas para lucrar com a entrada antes mesmo do evento iniciar. É completamente diferente do que o pessoal conhece como apostas normais”, diz Lucas.

As odds são as chances de um evento acontecer, ou seja, quanto mais baixa, maiores as chances de se tornar real. Era com base nelas e nos estudos do influenciador do ramo, Pablo Tips, que Lucas apostava. Hoje, ele não aposta mais pelo método porque, segundo ele, começou a dar errado em 2022.

“Era a minha fonte de renda no ano. E era também uma forma de ganhar uma coisinha rápida”, diz o apostador que estava desempregado na época.

COMO FUNCIONAM

As apostas esportivas geralmente são realizadas por meio de casas de apostas, também conhecidas como bookmakers ou bolsas de apostas. Os apostadores escolhem um evento esportivo e fazem uma aposta no resultado desejado. Se a aposta for vencedora, eles recebem um pagamento com base nas probabilidades definidas pelas casas de apostas.

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Os esportes mais comuns das apostas eram o futebol e o basquete, apesar de ter períodos em que Lucas arriscava no tênis, tênis de mesa, futebol de salão e de areia.

Para dar conta de tudo isso, chegou a usar 10 contas de CPFs diferentes, já que o site que utilizava não deixava vincular duas contas no mesmo número de documento.

“Era CPF da mãe, avó, de amigos. Só deixava claro que não era para trambique”

Apesar dos ganhos financeiros, as apostas esportivas também trouxeram prejuízos para o rapaz, mas ele não se arrepende. “Quando você começa a ganhar, você fica muito ganancioso”, explica sobre o vício no período.

Mas ainda mantém algumas apostas esporádicas, pelo método tradicional, com valores mais baixos.

MANIPULAÇÃO DAS PARTIDAS

Os moradores que fazem apostas nos aplicativos entendem ser grave o escândalo de manipulação nos jogos de futebol, mas veem naturalidade no problema. Nos últimos meses, investigações mostraram que jogadores receberam quantias em dinheiro para ganhar cartão amarelo e vermelho durante as partidas, além de outras irregularidades.

As suspeitas sempre existiram em campeonatos de divisões inferiores, mas chegaram a elite do futebol brasileiro.

Para Matheus, do Grajaú, não foi uma surpresa. “Sempre teve um jogador que recebia um pouco menos, principalmente em campeonatos de pequena expressão”, avalia. 

Para ele, torneios como a Série C do Campeonato Brasileiro, em que os jogadores têm salários menores, são um prato cheio para esses agenciadores. “Numa aposta ele pode quadruplicar o valor do salário.”

No caso de Lucas, de Diadema, ele critica a atitude dos jogadores e diz que a ética deveria falar mais alto. “Por eu levar o esporte muito a sério, eu não aceitaria esse tipo de acordo”, diz Lucas.

A comemoração é outra

O segmento de apostas esportivas e outros tipos de apostas online têm crescido no Brasil. Segundo pesquisa do Datahub, publicada pela Máquina do Esporte, entre 2020 e 2022, o avanço de novas empresas do tipo foi de 360%. O avanço tem feito o governo buscar formas para taxar o segmento e arrecadar até R$ 15 bilhões.

Um dos que começaram a apostar nisso como negócio é o gestor comercial David Pereira, 24, que desenvolveu uma plataforma própria para apostas por meio de inteligência artificial. Ele é de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, mas hoje vive em Portugal.

Segmento das apostas tem crescido e governo pretende regular setor @Magno Borges/Agência Mural

O jogo que ele trabalha não é o esportivo, mas o de roleta, o DLR Company. “É possível sacar uma quantia e já faturar. Com R$ 30 por dia já dá pra comprar uma pizza, pagar uma conta, comprar um pacote de fralda. E é tudo com cautela e uma parada profissional”.

Apesar de ser otimista sobre as possibilidades de ganho, segundo David, cada vez tem mais gente “vivendo desse cenário” e que chegaram a largar o emprego por conta das apostas. “A gente está nesse século da tecnologia. Então seria uma ignorância não usá-la para poder fazer uma renda extra ou buscar uma liberdade através dela”.

No entanto, David aponta riscos para quem imagina que pode ficar rico da noite para o dia e é bem cauteloso sobre o estímulo descontrolado a entrar no jogo.

“Se não tiver gestão emocional e financeira esquece, é game over, se vim com a ganância. Se vir achando que a parada vai ser fácil já vai começar errado”

David Pereira, 24, criador de um site de apostas

“Você não vai tirar o dinheiro da sua conta, de uma pendência. Se você tiver algum vício, pelo amor de Deus, se cuide, se trate, procure profissionais e não entre”, diz. “Ninguém é obrigado”.

Cuidado com os ‘99% de fé’

A psicóloga Yasmin Lopes de Souza, 24, é de São Mateus, na zona leste de São Paulo, e vê que o aumento sem controle das apostas pode gerar um problema para a sociedade. “É um entretenimento que está mexendo muito no mercado financeiro, onde às vezes a pessoa, no calor do momento, aposta muito alto ou não sabe se comportar diante de uma frustração”, afirma.

Ela aponta o risco de ficar sem controle e perder valores que farão falta para a renda. A especialista compara com a dependência com álcool: mesmo sabendo que a bebida em excesso traz riscos, a pessoa não consegue parar.

“Às vezes o jogo pode gerar uma dependência. A pessoa até quer parar, mas acredita que a próxima dá pra ganhar e acaba agindo compulsivamente.”

TRÊS CUIDADOS PARA QUEM APOSTA

1

É preciso saber que existe essa gangorra, entre perder e ganhar e é preciso saber lidar com isso.

2

Manter uma coerência durante esse processo: quanto você vai gastar no jogo? Esse dinheiro fará diferença?

3

Ter em mente o momento de parar. “A hora de parar é quando você viu que perdeu, que você só tinha aquele dinheiro extra, que se você for apostar mais uma vez pode acabar se comprometendo, acho que essa é a hora.”

Não deveria ser pelo dinheiro

Procuradas, entidades do segmento afirmam que há preocupação sobre a proliferação dos jogos. A ANJL (Associação Nacional de Jogos e Loteria), entidade representativa das casas de apostas esportivas, afirma ter se posicionado a favor da adoção de mecanismos, tanto pelas próprias empresas que atuam no mercado como por políticas públicas a serem implementadas por governos, de combate ao incentivo de participação em apostas esportivas de pessoas propensas ao vício.

Além disso, a ANJL afirma que as apostas esportivas são uma ferramenta de diversão e entretenimento e é contra o incentivo à prática com o intuito de fazer dinheiro.

Segundo a instituição, as casas de jogos associadas à ANJL não estimulam os apostadores a encararem os jogos como forma de produzir renda.

Em junho deste ano, a entidade firmou um convênio com o Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) para a definição de regras para peças publicitárias do setor de apostas esportivas que sigam determinadas diretrizes, entre elas a de responsabilidade social.

Risco de jovens menores de idade entrarem em apostas tem sido uma preocupação @Magno Borges/Agência Mural

Já para o diretor do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, André Gelfi, há uma preocupação por parte da instituição com relação à proteção de menores de 18 anos. O IJBR é composto pelos grupos Bet365, Flutter, Entain, Betsson Group, Betway Group, Yolo Group, Netbet Group, KTO Group,Rei do Pitaco, Novibet, LeoVegas, Grupo OKTO e Pay4Fun.

“Há uma nova cláusula no que proíbe o direcionamento de conteúdo de apostas para o público com menos de 18 anos e também a utilização de imagens de pessoas ou personagens, reais ou fictícios, de relevância ou notoriedade pública que atraem a atenção dos jovens”

André Gelfi, diretor do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável

Ele também enfatiza que o foco das casas de apostas é o entretenimento. “A partir do momento em que deixa de ser uma distração e torna-se um problema, as plataformas precisam alertar o comportamento de risco e o apostador ter autonomia para decidir o que será feito”, explica o diretor.

“A pesquisa concluiu que o grupo mais vulnerável é justamente aquele que mais faz uso das plataformas de apostas. Por isso, é tão importante promover ações de jogo responsável. Não há estimativas confiáveis sobre a quantidade de jogadores no Brasil, visto que é um número em constante crescimento”, completa André Gelfi.

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Esta reportagem foi produzida com apoio daReport For The World

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Aline Almeida

Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Ama livros, música e séries. Libriana apaixonada por pets. Correspondente do Grajaú desde 2022.

Cleberson Santos

Correspondente do Capão Redondo desde 2019. Do jornalismo esportivo, apesar de não saber chutar uma bola. Ama playlists aleatórias e tenta ser nerd, apesar das visitas aos streamings e livros estarem cada vez mais raras.

Gabriela Carvalho

Jornalista, comunicadora visual, mestra em Mídia e Tecnologia e pós-graduada em Processos Didático-Pedagógico para EaD. É correspondente do Jardim Marília desde 2019. Também é cantora de chuveiro, adora audiovisual e é louca por viagens.

Wellington Nascimento

Formado em Jornalismo e pós-graduado em dar boas risadas. Apaixonado por esportes, ex-atleta em atividade e toca violão nas horas vagas. Sonha em viajar o Brasil e o mundo para encontrar e contar histórias. Correspondente da Cidade Ademar desde 2022.

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