Moisés A. Neuman/Agência Mural
Por Paulo Talarico | 17.08.2021
Reportagem: Lucas Veloso, Jariza Rugiano, Luis Felipe do Nascimento e Moisés A. Neuma
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 17.08.2021 | 10:19 | Alterado em 01.09.2021| 9:30
Conheça as experiências de empreendedores das quebradas da região metropolitana de São Paulo e de Salvador que transformaram as garagens em pontos de venda de serviços para conviver com os impactos da pandemia
Tempo de leitura: 6 min(s)VOCÊ VERÁ AQUI
– Desemprego levou moradores das periferias a investirem em comércios nas garagens
– ‘Informalidade é regra’, afirma vendedora de Salvador
– Negócios do tipo começaram também antes da pandemia
– Redução de custos é um dos estímulos
Em uma garagem no bairro Conceição, na periferia de Diadema, na Grande São Paulo, Francisca Gomes, 54, e Paulo Nascimento, 56, preparam e vendem tortas de morango, mil-folhas, banoffe e bolos.
Abrir o negócio ali foi o jeito que encontraram no começo da pandemia, em março de 2020, quando Paulo perdeu o emprego de confeiteiro após 30 anos.
Esse tipo de negócio se tornou ainda mais comum durante a pandemia de Covid-19. Com a alta no desemprego, espaços destinados para guardar carros se tornaram locais para a venda de lanches, doces, objetos antigos, roupas, verduras, entre outros negócios como lava-rápidos.
De um lado, esses espaços mostram como os moradores das periferias têm se desdobrado e buscado com a criatividade conseguir a renda. Assim como comerciantes que criaram um delivery nas catracas do trem, eles têm conseguido reduzir despesas para garantir a sobrevivência.
Por outro, mostra o peso da crise econômica na população.
Nesta reportagem, conversamos com moradores das periferias de cidades da Grande São Paulo e de Salvador sobre o que são os negócios de garagem.
Segundo a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em julho deste ano, o desemprego atingiu 14,8 milhões de pessoas, representando 14,7% da população até o trimestre fechado em maio de 2021.
Foi a segunda maior taxa da série histórica do levantamento iniciado em 2012. Paulo foi um dos afetados logo no começo da pandemia. Foi quando, ao lado de Francisca, criou a Sayo Doces.
“Resolvemos investir na garagem. Colocamos pia, adaptamos uma cozinha”, relembra Francisca, que ressalta ser um negócio de família.
Os filhos do casal ajudam na divulgação do espaço, o que ajudou os dois que não tinham familiaridade com aplicativos de celular. A atuação se tornou fundamental quando começaram a fazer entregas por delivery, algo comum aos demais empreendedores de garagens.
Outra característica é a liderança de mulheres nesses negócios. Elas também foram as mais afetadas nesse período. De acordo com o IBGE, o desemprego atingiu o recorde de 17,9% entre trabalhadoras, maior do que entre os homens (12,2%).
“Aqui todo trabalho é informal”, afirma Elisangela Ferreira Soares, 34, moradora do Engenho Velho de Brotas, bairro em Salvador (BA).
Ela vende pratos típicos, como o mocofato (receita que leva mocotó bovino, miúdos, linguiça calabresa, carne de porco) e acarajé. Com a pandemia, perdeu o ponto onde mantinha a venda.
“Para substituir o dinheiro que a gente não estava ganhando no nosso ponto, tive a grande sorte da minha vizinha emprestar a garagem dela pra estar trabalhando”, diz a baiana de acarajé que atua junto com o marido no preparo e venda das refeições.
O negócio tem amenizado os problemas, mas não resolvido completamente. “Não temos conseguido tirar um faturamento bom”, ressalta. “O movimento é fraco. Em torno de R$ 1.000, é o que a gente tem conseguido retirar aqui por mês”, informou.
A maior quantidade de pessoas desempregadas no país concentra-se na região Nordeste, com destaque para o estado da Bahia com 21,3% – ou seja, de cada dez pessoas, duas procuraram e não encontraram emprego.
No estado de São Paulo, o desemprego é de 14,6% e 24% trabalha por conta própria.
No entanto, a dificuldade com o emprego já era um problema antes da pandemia.
De acordo com a pesquisa GEM (Global Entrepreneurship Monitor) de 2019, com apoio do Sebrae, havia cerca de 26 milhões de mulheres empreendedoras, enquanto 29 milhões de homens no mesmo ramo.
Segundo a pesquisa, as mulheres, pessoas negras e as de idade entre 34 e 55 anos eram os grupos que mais empreendiam por causa da falta de trabalho em 2019.
Entre eles está Cibele Paschoal, 44, que comanda a pastelaria da Ciba no bairro Jordanópolis, em São Bernardo do Campo, cidade do Grande ABC.
“Na idade que estou, já é mais difícil [conseguir trabalho]”, afirma a pasteleira, que já foi comerciante em um negócio da própria família. Ao conversar sobre a situação com o marido, ele deu a ideia de como driblar o problema. “Faz o que você sabe, bota aqui na garagem, vai indo”, sugeriu.
Ela adaptou um carrinho e começou a fazer a pastelaria com apoio de pessoas próximas. O pai dela deu a geladeira com um balcão e ela foi aprimorando o espaço. “Fui azulejando. Agora está bem como um cantinho, uma lanchonete mesmo, na garagem.”
A renda gerada na pastelaria foi um respiro quando o marido, que é professor de Educação Física, teve o trabalho interrompido pelo aumento dos casos de Covid-19. “O primeiro a parar é ele, porque as academias fecham. Se não tivesse esse negocinho para manter as contas em casa, nós estaríamos perdidos”, reflete Cibele.
Cibele teve de fazer adaptações durante as diferentes fases da crise sanitária, principalmente no que se refere à venda delivery. Com as entregas feitas nas residências, a comerciante alcançou clientes de mais bairros.
“Antes da pandemia eu estava indo gradativamente, boca a boca. Como eu cresci no Jordanópolis, nasci aqui, conheço muita gente. Com delivery, começou a se espalhar bastante.”
Além disso, o rendimento da pastelaria está colaborando ainda mais para a família de Cibele no último ano. Uma prima e um amigo que estavam desempregados começaram a trabalhar na garagem. “A cozinheira é minha mãe. Eu e ela que fazemos as coisas”, detalhou.
Um dos principais motivos para transformar as garagens são os custos. Abrir um novo negócio, com gasto de aluguel, é algo inviável para quem perdeu renda.
“O custo fixo [como contas de luz, de água, salário] e imposto é o que mata [o negócio de] muita de muita gente por aí”, opina José Pedro Seppi, 60, que mantém o Brechó da Su, em Diadema.
“Tenho que pagar uma garagem pra colocar meu carro, mas o custo é infinitamente menor do que pagar aluguel de uma área desse tamanho pra montar um brechó.”
O trabalho ali começou há oito anos, quando ainda trabalhava como assessor de perito da Justiça do Trabalho.
Ele abriu o espaço com a esposa e a ideia inicial era um brechó de roupas. Mas os familiares começaram a mandar itens e chegou a acumular 1.500 peças. Hoje, o negócio é focado em objetos de coleção e decoração vintage.
A crise com a pandemia de Covid-19 não atrapalhou as vendas, apesar da redução no período de funcionamento. “Esse tipo de negócio tende a melhorar em tempos de crise, porque as pessoas partem para coisas mais baratas, mesmo que usadas, do que comprar novas.”
Por outro lado, comenta que é necessário dedicação o tempo todo.
“Não fiquei rico, não mudou minha classe social, mas pago minhas contas sem preocupação. São oito anos sem férias, mas hoje, depois da minha família, o brechó é minha vida”.
Para Luciano Kazuhiko Sunamoto, 33, o período também trouxe uma alta nos negócios. Ele está à frente da Quitanda do Kazu há quatro anos. O hortifrúti inicialmente aberto na garagem foi passando por reformas até se expandir por toda a residência onde ele vivia com a esposa e enteada.
Antes, ele trabalhava como produtor rural em Suzano, cidade natal dele e onde começou o interesse pela produção de verduras, legumes e frutas. O trabalho que tem passado de geração em geração, avós, pai e tios.
Como as vendas não estavam rentáveis na região do Alto Tietê, ele resolveu abrir a própria quitanda em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
“Fui vendendo bem baratinho no começo, porque era a minha produção. Foi crescendo e não conseguia mais produzir. Aí comecei a comprar de fora, fui aumentando os produtos dentro do comércio”, recordou.
Por causa da pandemia, Kazuhiko fez mais uma reforma no espaço para evitar aglomeração em filas e nos corredores. Mesmo no contexto de crise sanitária, social e econômica, o quitandeiro viu as vendas aumentarem em cerca de 60%, ou seja, um acréscimo de R$ 48 mil no faturamento mensal.
“Gosto de vender. Procuro tudo que eu puder fazer preço bom, eu vendo. Muita gente está sem dinheiro mesmo agora. Então o pessoal vai correr onde é mais em conta.”
No caso de Fábio Castriguini, 40, a ideia de montar um negócio na garagem por enquanto está suspensa. Condutor socorrista do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), ele abriu uma barbearia no mesmo bairro Jordanópolis.
O empreendimento funcionou por três anos. período no qual investiu R$ 12 mil em reformas.
Por conta da pandemia, ofereceu descontos para manter o atendimento e até um cartão fidelidade. Porém, perdeu 50% do faturamento nos períodos mais complicados da pandemia, com o fechamento de estabelecimentos.
Em abril decidiu se mudar para Indaiatuba, no interior de São Paulo. “Não só porque diminuiu o lucro, mas por conta que eu já queria mudar para cá pela qualidade de vida”, diz Castriguini.
Apesar das dificuldades, quer voltar às atividades de barbeiro no futuro, mesmo que tenha de se dividir com o emprego atual. “Por conta da crise, o pessoal está segurando um pouquinho mais pra cortar”, avalia. “Mas é um trabalho gratificante [o de barbeiro]. Você acaba trabalhando e meio como psicólogo também. O pessoal desabafa. Vem às vezes com problema de residência, de trabalho”, comentou.
Com a experiência que acumulou, ele sabe que, para recomeçar, ao menos uma porta de garagem será necessário.
Você pode ouvir um pouco mais sobre esses empreendedores no Próxima Parada, podcast produzido pela Agência Mural, original Spotify.
Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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