Por Paulo Talarico | 27.11.2020
Reportagem: Brenda Gomes, Eduardo Machado, Gabrielle Guido, Laís Lopes, Lucas Barbosa, Moisés Augusto Neuma e Rosana Silva
Edição: Cleber Arruda
Publicado em 27.11.2020 | 12:15 | Alterado em 27.11.2020| 13:32
Com as limitações provocadas pelo coronavírus, muitos articuladores e produtores tiveram que repensar formatos ou mesmo cancelar eventos anuais. Reportagem especial mostra impactos em vários bairros da capital soteropolitana e foi produzida por correspondentes das periferias de Salvador
Tempo de leitura: 6 min(s)Em Cajazeiras, o GCAM (Grupo de Capoeira Angola Mourão) inicia anualmente as celebrações do evento “Novembro é Negro é de Angola” com o aniversário do mecânico Joselito Francisco dos Santos, 51, o Mestre Véo, no 1º dia do mês.
“A gente já emenda, bota nosso ritmo na rua, fala do que a gente sente. É também quando corremos atrás de patrocínio para que toda periferia possa participar das oficinas sem gastar um tostão”, diz Véo.
Este ano, com as limitações impostas pela pandemia, para que o mês não passasse batido, o grupo adaptou toda a programação da terceira edição do evento para o online. Nela, organizou uma rifa para reformar o quintal onde são realizados trabalhos de permacultura e rodas de capoeira.
“Está rolando a rifa de R$ 5, e também estamos abertos a qualquer doação, mas o evento é ‘0800’. Dá quem quer, não tem faca no pescoço para dar dinheiro não”, explica Mestre Véo.
As lives nos fins de semana contaram com a participação de outros mestres debatendo temas como ancestralidade, gênero e raça, capoeira na periferia, entre outros assuntos.
“O único meio que nós temos de fazer evento é online. Está legal? Está. Mas com o povo seria mais ainda, online nem todos podem participar”, diz Véo.
Já em Pernambués, bairro localizado próximo à Estação Rodoviária, o rapper Negro Davi, 32, que também é empreendedor e apresentador do programa de TV Hip Hop Vai Além, faz da internet sua aliada durante a pandemia.
Nos últimos meses, ele tem produzido e apresentado seu trabalho musical em lives para arrecadar alimentos e verbas para famílias da região.
“Na primeira [live] a gente arrecadou quase meia tonelada de alimentos. Foi alegria para lá, alegria para cá, no sentido de ajudar as pessoas. Entre outros apoiadores, por exemplo, teve associação Renascer Veicular que doou 50 cestas básicas. Um deu um quilo de alimento, o outro deu dois; o outro deu três”.
O rapper conta que nos outros anos a organização dos eventos do novembro negro ocorria por meio do seu projeto de hip hop e também com o apoio de coletivos locais e parceiros. Realizam atividades como caminhadas, debates, concursos e ações em escolas.
“Fizemos a caminhada da Consciência Negra, criamos o concurso de Beleza Negra de Pernambués, com alguns apoiadores. A gente veste as meninas e também tiramos várias fotos”, relembra.
Apesar das lembranças de toda a movimentação realizada em anos anteriores, ele afirma que ainda é preciso cautela para realizar eventos diante do cenário atual.
“É um momento em que a gente precisa ter muito cuidado, principalmente em expor o que a gente está fazendo, porque precisamos ter toda uma estrutura de equipe, ter álcool em gel, a segurança das pessoas. Estamos em um momento em que pode-se contaminar outras pessoas coletivamente”.
O rapper ainda comenta o impacto da pandemia na vida dos artistas da cidade, que não têm estrutura para realizar seus shows, como álcool gel para descontaminar os equipamentos.
No bairro de Sussuarana, região do Miolo de Salvador, a pandemia foi mais cruel com os organizadores do Sarau da Onça, que precisaram cancelar todas as atividades tradicionalmente celebradas no novembro negro.
“Depois de realizar o sarau por mais de oito anos, o que fica é um sentimento de impotência. Principalmente neste mês que celebramos o mês da Consciência Negra, quando, além dos nossos encontros poéticos, realizamos também nossas mesas temáticas”, lamenta o poeta Sandro Sussuarana, 33, um dos fundadores do sarau.
Desde 2011, o grupo organiza um sarau quinzenal, nas noites de sábados, no anfiteatro Abdias do Nascimento, espaço cedido pelo Centro de Pastoral Afro Padre Heitor (Cenpah).
Com poesia e outras performances artísticas, o Sarau da Onça se firmou como uma opção de lazer para os moradores do bairro, além de abordar as questões raciais, sociais e políticas.
Com o último sarau realizado em novembro de 2019, a expectativa era que o evento fosse retomado em março deste ano, o que não aconteceu por conta da pandemia. Para viabilizar o encontro, uma live foi agendada para outubro, mas cancelada pela falta de infraestrutura.
Além do Sarau da Onça, outras atividades que fazem parte da agenda do Novembro Negro em Sussuarana também não ocorreram este ano, como a Noite da Beleza Negra e a Caminhada da Consciência Negra.
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No Nordeste de Amaralina, as atividades desenvolvidas especialmente para o mês da Consciência Negra na escola da professora Marieli de Jesus Pereira, 43, ficaram apenas no papel.
Todos os anos, ela e outros educadores do Colégio Estadual Polivalente de Amaralina elaboram ações com música, dança e poesia a partir da temática racial.
“Percebo os efeitos desse trabalho na mudança de postura das alunas e alunos com relação à elevação da sua autoestima e à consideração de outras possibilidades de futuro que não sejam aquelas impostas socialmente para os jovens negros”, conta.
Com o ano letivo comprometido, as portas da escola estão fechadas. Marieli conta que o governo do Estado da Bahia disponibilizou uma plataforma para a postagem de atividades, mas percebe que grande parte dos alunos não possuem acesso à internet.
Para continuar o trabalho contínuo de desenvolvimento da consciência negra em seus alunos, ela descobriu uma forma de acessá-los.
“Fiz uma pesquisa via Instagram e descobri que aqueles que têm smartphone acessam redes sociais porque é o que o pacote de dados da operadora permite. Então, numa tentativa de manter o vínculo, com pelo menos parte do alunado, eu, uma professora e dois professores do colégio decidimos fazer uma gincana online com tarefas”, conta Marieli.
Uma questão que sempre vem à tona nesta época do ano para muitos dos soteropolitanos é o fato do dia 20, dia da Consciência Negra, não ser considerado um feriado oficial na cidade conhecida como a capital negra do país.
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), de 2019, 79,3% da população se declara como negra ou parda em Salvador.
Segundo o doutor em história Carlos Francisco da Silva Junior, 37, tanto o dia 20 da Consciência Negra como o mês de novembro são importantes para refletir posturas.
“O legado da escravidão e sua principal consequência, que é o racismo, ainda operam de uma maneira muito presente, muito forte, em suas várias instâncias, seja o racismo sistêmico, estrutural ou religioso, no interior de nossa sociedade”, explica.
O historiador integra o projeto colaborativo Salvador Escravista, que conta com a participação de especialistas em diversas áreas com a proposta de aprofundar os estudos relacionados aos impactos da escravidão na sociedade soteropolitana.
“O espaço público é ocupado por homenagens a personagens que defenderam a escravidão e que se concentram no centro e antigo centro de Salvador e, do contrário, como as homenagens de pessoas que lutaram contra a escravidão, abolicionistas e episódios de resistências, se concentram nas periferias” – CARLOS FRANCISCO, HISTORIADOR
Para Silva Junior, as discussões sobre a data devem prosseguir. “É preciso avançar ainda mais no debate pois as justificativas sobre termos feriados demais; de que a cidade não tem como ter um outro feriado demonstra que se tem de fato um poder simbólico e o quanto o racismo está em suas instituições públicas”.
Para o poeta Sandro Sussuarana, o racismo está entrelaçado ao debate sobre o feriado para a população de Salvador.
“Eu acredito que esse feriado em especial tem uma relevância muito significativa para nós, povo negro, e que não ser feriado no estado, em que a sua capital tem a maior população negra fora da África, mostra o quão esse estado/país é racista e não tem nenhum interesse em reconhecer esse fato.”
Para a professora Marieli, o entendimento do significado da Consciência Negra passa pela amplificação do seu conhecimento.
“É importante expandir a consciência negra para um exercício diário, e futuramente usaremos esse dia apenas para comemorar”.
Questionada sobre o fato do dia 20 de novembro não ser feriado na cidade, a Secretaria Municipal da Reparação Informou por meio de nota que:
“Tendo em vista a importância das datas simbólicas, o 20 de novembro é o principal marco nas mobilizações. Focamos na perspectiva de trabalhar as ações de sensibilização, conscientização, enfrentamento ao racismo e promoção da equidade racial, todos os dias do ano, com programas e ações estabelecidos no Planejamento Estratégico para a viabilização e articulação de ações concretas realizadas continuamente”.
Diretor de Treinamento e Dados e cofundador, faz parte da Agência Mural desde 2011. É também formado em História pela USP, tem pós-graduação em jornalismo esportivo e curso técnico em locução para rádio e TV.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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