Por: Patrícia Vilas Boas
Reportagem: Patricia Vilas Boas
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 05.05.2021 | 14:52 | Alterado em 19.12.2022| 13:16
Bairros de São Paulo e da Grande São Paulo tiveram 898 trabalhadores que estavam em condição de trabalho análogo à escravidão encontrados em fiscalizações do Ministério Público do Trabalho, revela levantamento exclusivo obtido pela Agência Mural por meio da Lei de Acesso à Informação
Tempo de leitura: 8 min(s)Poucos dias antes do Governo de São Paulo decretar a quarentena no estado, há pouco mais de um ano, uma equipe de fiscalização do MPT (Ministério Público do Trabalho) tocou a campainha de um sobrado numa rua tipicamente residencial da Cidade Líder, na zona leste da capital.
Embora a fachada não revelasse a atividade, dentro daquela casa na periferia operava uma oficina de tecelagem.
No local foram encontrados 10 imigrantes peruanos, incluindo um menor de idade, que trabalhavam em condições degradantes: jornadas de até 14 horas por dia e dívidas com o patrão que eram descontadas diretamente dos seus rendimentos.
Esses elementos caracterizam o trabalho análogo ao de escravo, segundo o Código Penal brasileiro. A história, contudo, não é uma exceção. Sua localização também não.
A zona leste da capital é a região da Grande São Paulo com mais casos de trabalho análogo à escravidão nos últimos dez anos, segundo dados do Ministério da Economia obtidos pela Agência Mural via Lei de Acesso à Informação.
Os dados mostram que o trabalho em condições de escravidão não são uma característica apenas do interior do país. Ao todo, 898 trabalhadores em situação análoga à escravidão foram resgatados desde 2010 na região metropolitana.
O assunto também foi tema de um episódio do Próxima Parada. Ouça na íntegra:
A maioria eram estrangeiros, sobretudo bolivianos e peruanos, que vieram para a capital em busca de uma melhor condição de vida. Vulneráveis com a situação financeira, sofreram exploração que vão desde a falta de condição de higiene no espaço de trabalho, longas jornadas e risco de acidentes.
A maior parte trabalhava na costura. Sete em cada dez empresas fiscalizadas eram do setor de confecções. A maior operação, contudo, foi em 2013, quando 111 profissionais das obras do Aeroporto de Guarulhos foram resgatados em uma obra da OAS. Na época, a empresa negou ter responsabilidade sobre a situação.
Três em cada dez estabelecimentos onde foram encontrados trabalhadores nesta situação entre 2010 e 2020 ficam na zona leste da capital. Entre os distritos com mais casos estão: Penha, Artur Alvim, Vila Jacuí, Cidade Líder, Cangaíba e Ermelino Matarazzo.
Na sequência aparece a zona norte, com as regiões da Casa Verde, Vila Medeiros e Cachoeirinha. Considerando só a cidade de São Paulo, as duas regiões somam 70% dos estabelecimentos fiscalizados.Entre os anos de 2019 e 2020, foram feitas 234 denúncias de trabalho análogo ao de escravo para a área de atuação do Ministério Público do Trabalho em São Paulo.
Até março deste ano, foram registradas 16 denúncias deste teor. Uma média de 5 por mês.De acordo com dados do Radar da SIT (Subsecretaria da Inspeção do Trabalho), mais de 55 mil trabalhadores foram encontrados em situação análoga à de escravo em todo o país desde o início da contagem, em 1995. Destes, 1.930 no estado de São Paulo.
Segundo o Código Penal Brasileiro, são elementos que caracterizam a escravidão moderna: condições degradantes de trabalho, submissão de pessoas ao trabalho forçado ou jornadas exaustivas, restrição da liberdade, vigilância ostensiva ou apoderamento de documentos ou objetos pessoais do trabalhador com finalidade de retê-lo no local de trabalho.
No caso da oficina em Cidade Líder, os resgatados residiam no local de trabalho e as instalações sanitárias não dispunham de itens básicos como material para limpeza e papel higiênico, segundo relatório do MPT.
Não havia local adequado para que os trabalhadores fizessem refeições com conforto e higiene, as polias [peças] das máquinas de costura estavam desprotegidas, causando risco de acidentes graves que poderiam levar até a amputação. As ligações elétricas eram improvisadas.
Além disso, 9 dos 10 imigrantes não estavam com os documentos regularizados no país. Eles trabalhavam em média 12 horas por dia, podendo chegar a até 14 horas, não tinham registro em carteira, nem direito a férias ou décimo terceiro.
Depois da fiscalização, o MPT determinou que a empresa cumprisse com uma série de providências regulatórias, entre elas: a emissão de documentos dos imigrantes irregulares, regularização trabalhista, adequação da unidade fabril, que foi interditada, e o afastamento dos trabalhadores.
Carlos*, 26, foi um dos resgatados. Peruano, ele conta que veio ao Brasil para conhecer São Paulo e começou a trabalhar com costura para pagar sua estadia. Ele só conseguiu emitir seus documentos 5 meses após sua chegada à Cidade Líder.
“No início, não estava acostumado a trabalhar assim, muitas horas, e isso foi o que me atingiu bastante”, conta.
Carlos recebia R$ 0,80 centavos por peça costurada e só tinha descanso aos domingos. Após ter sido resgatado, decidiu voltar ao país de origem. Apesar do contexto, tem vontade de tentar novamente a vida no Brasil, e diz que no Peru a situação está bem difícil.
A boliviana Laura*, 38, decidiu seguir no Brasil. Ela vive na Cidade Patriarca, na zona leste de São Paulo, há pelo menos 15 anos. Trabalha com costura desde que chegou e, em 2013, foi resgatada por meio de uma operação de fiscalização do MPT.
Assim como Carlos, chegou ao Brasil por intermédio de uma pessoa próxima, um parente que já morava no país. “Todos que chegam da Bolívia, chegam para trabalhar [em oficina] mesmo, porque aqui não tem mais outra coisa. Chega e aprende a trabalhar na máquina de costura.”
Hoje mãe de dois filhos, ela conta que, na época da operação, seu patrão a pediu que dissesse que tinha somente dois anos de trabalho, quando na verdade já tinha seis. Além disso, era pressionada a não sair da oficina até terminar todo o seu trabalho. “Esse tempo era muito difícil. Trabalhamos muito e [a empresa] não pagou bem.”
“Sempre encontramos pessoas jovens trabalhando nas confecções”, diz Grécia Delgado, 30, líder comunitária e assistente-social do Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Migrante), que faz visitas às oficinas de costura em São Paulo. “Nenhum desses trabalhadores escolheram estar nessa situação.”
Filha de imigrantes bolivianos, Grécia explica que a organização procura levar informação a imigrantes que possam estar em situação de vulnerabilidade social nas oficinas de costura.
“A nossa missão é combater o trabalho análogo à escravidão e orientar as pessoas de que existe uma Constituição, que existem leis. Orientar porque quanto menos informação a pessoa tem, mais vulnerável ela fica.”
Recentemente, o centro auxiliou imigrantes a retirarem o auxílio emergencial, benefício concedido pelo Governo Federal em razão da pandemia de Covid-19.
De acordo com dados de 2019 do Sinditêxtil, o estado de São Paulo possui cerca de 450 mil trabalhadores direta ou indiretamente ocupados no setor têxtil, 30% do total do país, que é de 1,5 milhão. O maior polo de confecção no estado é a capital paulista.
Nos últimos dez anos, houve uma explosão no número de pequenas confecções na cidade. Em 2010, havia 979 microempreendedores individuais na área de confecção de roupas e acessórios na capital, segundo dados da Receita Federal. Em 2020, eram 34.377, ou seja, 35 vezes mais.
Muitos destes pequenos estabelecimentos foram se mudando para longe do centro da cidade. “A presença da fiscalização fez com que as oficinas de costura migrassem para as periferias”, afirma Lívia Ferreira, auditora-fiscal do trabalho em São Paulo. “Houve uma decisão empresarial de externalizar a produção para fora do parque industrial, das marcas.”
A gentrificação, processo de valorização de determinada região que leva a saída das pessoas mais pobres, teria sido outro fator. “Os imóveis começaram a ficar muito mais caros no centro”, complementa Lívia.
Os imigrantes, mão-de-obra das confecções, também buscam a periferia. “Vejo que essa questão das famílias imigrantes, principalmente famílias vulneráveis, se locomoverem mais para o extremo, principalmente para o extremo da zona leste, [acontece] por uma questão socioeconômica”, diz Grécia Delgado, do Cami.
“É mais barato viver nesses lugares do que nos grandes centros, como também fica mais difícil a fiscalização autuar”, corrobora a doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp, Sandra Roberta, 42, que estuda as condições de vida e trabalho de costureiras em domicílio e oficinas.
Dariele Santos, 29, é co-fundadora do Instituto Alinha, que trabalha na região de São Paulo e Grande São Paulo assessorando empreendedores de pequenas oficinas a regularizarem seus negócios.
O instituto também conecta marcas às oficinas, com o intuito de garantir relações justas na cadeia produtiva da moda.
Segundo Dariele, de acordo com os dados da instituição, existe uma concentração muito grande de oficinas nas regiões periféricas. A zona leste lidera com o maior índice, representando 31,5%, seguida da zona norte com 27,8%.
“Tem muita gente que pensa que as oficinas estão no Bom Retiro, no Brás, no centro, porque tem essa concentração têxtil no Bom Retiro e no Brás, mas houve uma pressão imobiliária no centro, com o aumento dos aluguéis”, diz. Ela estima que apenas 10% das oficinas estão no centro.
Dariele conta que o trabalho análogo à escravidão dentro da cadeia da moda está mais ligado a um sistema de terceirizações, ou até quarteirizações, e precariedades do que propriamente a uma visão histórica que se tem do termo.
“Quando a gente pensa em condições análogas à escravidão, a gente tende a levar para a nossa antiga visão, o antigo formato, um senhor que escraviza ali as pessoas que estão trancafiadas, acorrentadas”, diz.
“Quando a gente fala de escravidão moderna, já trazendo para o século 21 dentro da cadeia da moda, é muito menos uma figura que escraviza e mais um sistema que escraviza por tantas intermediações e por um valor tão baixo pago por peça.”
Ela comenta a necessidade de se costurar muitas peças para atingir um valor mínimo de subsistência e o tempo que isso leva.
“Trabalhando com ‘fast fashion’ (moda rápida) você acaba trabalhando com custos mais [acessíveis], trabalha, às vezes, por centavos. Não digo só de pequenas empresas, digo também de grandes empresas”, complementa Grécia, do Cami.
“Eles vêm de uma situação muito pior do que o Brasil, então acho que foi uma oportunidade, pela localização, pelas fronteiras”, comenta a cientista social, Sandra Roberta, sobre o movimento migratório para atuar nas oficinas de costura.
Ela também cita os contextos econômicos e as redes de imigrantes, de parentes e colegas, que foram sendo estabelecidas no país ao longo dos anos.
“Quanto menos condições as pessoas têm de vida, mais elas se sujeitam, porque elas precisam comer, elas precisam pagar aluguel”, diz. “Elas precisam trabalhar, então elas vão trabalhar no que aparecer e na condição que aparecer.”
Eloisa Artuso, 38, é diretora educacional no Fashion Revolution, movimento criado a partir da sensibilização acerca do desabamento de um prédio em Bangladesh que vitimou mais de mil trabalhadores de confecção em condições análogas à escravidão, em 2013.
No Brasil, a iniciativa abrange campanhas, mobilizações, fóruns e atividades de conscientização para a transformação da indústria da moda, em combate à precariedade e escravidão moderna nas confecções.
O Índice de Transparência da Moda da organização analisou 40 grandes marcas e varejistas do mercado brasileiro em 2020, com base em critérios sociais e ambientais, como condições de trabalho, trabalho escravo contemporâneo, salário justo, liberdade de associação, descarte de resíduos têxteis, reciclagem e circularidade.
Metade das marcas não conseguiu alcançar mais do que 10% da pontuação máxima, que é de 250.
Por outro lado, Angela Bozzon, 56, gerente do Programa ABVTEX (Associação Brasileira do Varejo Têxtil), que já realizou mais de 36 mil auditorias em confecções e seus subcontratados desde 2010, diz que “a sociedade e os consumidores estão cada vez mais conectados com as questões de responsabilidade social e sustentabilidade ambiental”.
“A gente precisa criar espaço para uma indústria da moda mais ética, sustentável, limpa, justa, segura e transparente para todo mundo”, complementa Eloisa.
*O nome das vítimas foi alterado para assegurar o anonimato das fontes
Esta reportagem foi produzida com o apoio de uma bolsa da Thomson Reuters Foundation
Jornalista em formação. Curiosa, gosta de sol, praia e um bom livro nas horas vagas. Correspondente da Vila Curuçá desde 2019.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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