Por: Patrícia Vilas Boas
Arte: Magno Borges
Edição: Paulo Talarico
Publicado em 23.06.2023 | 12:41 | Alterado em 26.06.2023| 14:28
Três jovens das periferias de São Paulo falam sobre como chegaram em Harvard, seja para estudar, pesquisar ou até para dar palestra sobre a situação do Brasil
Tempo de leitura: 6 min(s)Ingressar no ensino superior já é um desafio no Brasil. O país tem uma média de 15% dos adultos entre 25 a 64 anos com formação universitária, de acordo com um relatório da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico) publicado em outubro do ano passado. Nas periferias, não são poucos os jovens que fazem parte da primeira geração da família a entrar na universidade.
Nesse contexto, marcar presença em uma universidade em outro país é um desafio ainda maior para estudantes dessas regiões, principalmente se estivermos falando de uma das mais prestigiadas do mundo, a Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
No entanto, apesar dos obstáculos, André, Márcio e Amanda passaram por uma Ivy League – como é chamado o grupo das oito universidades de elite norte-americanas. O que os três estudantes têm em comum?
Além de andarem pelos mesmos corredores por onde passaram pessoas como o magnata das redes sociais Mark Zuckerberg, o bilionário Bill Gates e o ex-presidente dos EUA Barack Obama, todos tiveram de superar barreiras sociais, linguísticas e educacionais para chegar na outra ponta do continente seja para estudar, pesquisar ou apresentar estudos sobre o Brasil. É o que mostramos nesta reportagem.
Por conta dos custos, que podem chegar a R$ 500 mil por ano, parecia impossível para André Menezes, 34, do bairro de Pimentas, em Guarulhos, na Grande São Paulo, imaginar que um dia se formaria mestre em administração pela Universidade de Harvard. Hoje, ele atua no serviço de streaming Netflix, mas, antes disso, precisou trabalhar em uma feira livre para conseguir continuar os estudos da língua inglesa.
Na época, a família passava por dificuldades, já que a locadora dos pais – o principal sustento da casa – teve de fechar devido a digitalização dos conteúdos de CDs e fitas cassetes, como séries e filmes.
“Sempre acreditei que a educação ia conseguir mudar a minha vida e a vida da minha família um dia”, diz Menezes, que afirma não se enxergar como um exemplo de meritocracia, mas uma exceção diante de um ensino básico deficitário e de um ambiente de poucas oportunidades para quem vem das periferias.
Menezes estudava à noite e trabalhava de dia, uma rotina incomum para estudantes do ensino médio nos Estados Unidos, onde morou durante os anos de mestrado, e cenário que serviu de referência para despertar a vontade de aprender o inglês enquanto mais jovem.
“Não sei se (foi porque) tive muita influência por causa de filme norte-americano, mas sempre soube que o inglês ia ser um diferencial muito grande”, acrescenta o estudante, que fazia as aulas aos sábados.
Depois da faculdade, fez uma pós-graduação, e depois de consolidado no mercado de trabalho, ele se permitiu sonhar mais alto. “Foi quando falei: ‘acho que agora é hora de eu tentar aplicar para alguma faculdade no exterior, acho que isso vai me dar também uma empregabilidade maior’.”
BRASILEIROS NOS ESTADOS UNIDOS
Apesar da burocracia e dos altos custos, em 2019, o Brasil foi o 9º país no mundo a enviar mais estudantes para os Estados Unidos, com 1,1 milhão de estudantes no ano letivo de 2018-2019, de acordo com a embaixada americana no Brasil, com base no Relatório Open Doors. O órgão, no entanto, não tem informações relacionadas à condição social ou estado desses estudantes.
No relatório de 2022, no pós-pandemia, os três principais países de origem dos alunos internacionais nos Estados Unidos foram China, Índia e Coreia do Sul, com 290 mil, 199 mil e 40 mil estudantes, respectivamente. O Brasil ficou na faixa entre 5.000 a 29.999 estudantes, de acordo com apresentação anual do IEE (Institute of International Education).
Apesar de muito comentada nos filmes norte-americanos que acompanharam Menezes durante a adolescência, Harvard não foi a escolha “de cara”. O ex-aluno fez uma pesquisa ampla que considerou método de aplicação, possibilidade de bolsa de estudo, curso alinhado aos seus objetivos, e outros fatores – coincidentemente, Harvard tinha tudo o que ele procurava.
Ser aceito se tornou um desafio ainda maior quando Menezes percebeu que passaria por todo o processo de aplicação sozinho – estudos para testes de proficiência, testes de nivelamento, redação de cartas de motivação e até mesmo o custo elevado para lidar com as burocracias de traduções e remessas internacionais – tudo sem ter uma referência ou ajuda de uma consultoria especializada. Conta que conseguiu encontrar as informações pela internet.
“Acho que me transformei em uma referência para minha comunidade, de que a educação é uma das poucas e únicas armas que a nossa comunidade preta tem para poder mudar a nossa realidade.”
Márcio Henrique, 24, nascido em Itaquera, na zona leste da capital paulista, é estudante do quinto período da Faculdade de Medicina da UFU (Universidade Federal de Uberlândia), em Minas Gerais, e foi selecionado para fazer uma pesquisa de sete meses em Harvard.
Ao contrário do senso comum, Henrique não era o aluno exemplar que se imagina quando falamos de Harvard. “Não fui um dos alunos mais dedicados na minha escola no ensino médio, eu não via valor nisso”, diz.
O jovem dividia a rotina entre trabalhar numa pizzaria na rua de casa aos fins de semana e atuar como jovem aprendiz no Hospital Santa Marcelina do Itaim Paulista, também na zona leste, nos dias úteis.
Ele conheceu o cursinho popular pré-vestibular MedEnsina a partir de uma professora, e só decidiu que queria estudar medicina no segundo dos três anos que fez cursinho.
Foi por meio do MedEnsina, cujos professores são estudantes de medicina da USP (Universidade de São Paulo), que Henrique teve o primeiro contato com a universidade norte-americana. “Todos os três anos que estive lá (no cursinho), tinham pessoas que davam aula para mim que paravam a graduação para ir para Harvard.”
Sem recursos financeiros e com as dificuldades do dia a dia, a missão tornou-se “um pouco mais difícil” em relação aos demais. Mas Henrique passou no vestibular para medicina em Minas Gerais, tentou o processo para Harvard da UFU, e não conseguiu, até que recebeu o convite de um ex-professor do cursinho, que soube da tentativa frustrada de estudar fora.
Ele ainda precisou fazer uma vaquinha online para arrecadar o valor necessário para custear suas despesas no exterior, método que tem sido usado por vários brasileiros que tentam estudar fora. Mais de 100 menções a Harvard aparecem nos títulos de campanhas das principais plataformas de financiamento coletivo.
“A nossa evolução como espécie beneficia aqueles que têm que lutar pela sobrevivência, aqueles que têm que trabalhar com o que tem, e a gente que nasce e cresce na periferia sabe muito bem fazer isso.”
Mas longe de qualquer discurso meritocrático, Henrique atribui o sucesso a terceiros e diz ser uma exceção, e não a regra.
“Consegui, mas com ajuda de muita gente. Se não fosse todas as pessoas que me ajudaram ao longo da minha caminhada, não estaria aqui”
“Prefiro que as pessoas olhem para essa história assim, porque (desta forma) a gente consegue também fazer nascer outras pessoas que têm capacidade de ajudar e de manter vivo os sonhos das pessoas que vêm das periferias.”
Além dos estudantes, outro espaço que brasileiros buscam ocupar é o de ser referência em algumas áreas e levar as experiências daqui para o mundo.
Da Brasilândia, na zona norte da capital, Amanda Costa, 25, é um desses exemplos. Além de ser referência na pauta climática a partir da perspectiva periférica, foi convidada no ano passado para participar de uma conferência em Harvard.
“Tem uma galera que desde criança é treinada para almejar esses lugares”, diz a ativista em sua coluna no Um Só Planeta. “No entanto, pessoas pretas e periféricas são ensinadas a sobreviver.”
Amanda começou com o ativismo a partir de um incômodo. Ao receber uma bolsa para representar a juventude brasileira na 23ª conferência do clima da Organização das Nações Unidas, a COP23, em 2017, percebeu que as pessoas ali não representavam – e não conheciam – sua realidade no Jardim Almanara.
Foi a partir de então que Amanda começou a pensar em como atuar para mudar esse cenário, e a partir de um edital da organização United People Global, que estava selecionando jovens de países emergentes com ideias transformadoras, fundou o Perifa Sustentável, em 2019.
BRASILEIROS NO EXTERIOR
A Brasa (Brazilian Student Association), maior associação de estudantes brasileiros no exterior, conta com 9.000 membros na América do Norte, Europa e Ásia. 26% dos seus “mentorandos”, isto é, pessoas que procuram a organização para receber mentoria no processo de aplicação para o exterior, são de São Paulo.
Em todo o país, pouco mais de um terço possui renda de até dois salários mínimos, 39%, de 2 a 6 salários mínimos, 20% acima de 6 salários mínimos e 5% preferiram não responder.
“Fui selecionada neste edital, fui para os Estados Unidos, fiquei uma semana desenvolvendo o projeto, entendendo com mais profundidade essas questões sustentabilidade.”
Três anos – e uma pandemia – depois, Amanda estava novamente nos Estados Unidos, à convite de Ana Sanchez, pesquisadora sobre racismo ambiental e consultora no Instituto Pólis, para acompanhar a apresentação de pesquisas no Instituto de Pesquisa sobre América Latina da Universidade de Harvard, o ALARI, na sigla em inglês.
“Não quero apenas ter referências, quero ser a próxima das pessoas que eu admiro”, disse a ativista em sua conta no Instagram, em um vídeo onde relata como foi o contato com professor e ativista norte-americano Benjamin Franklin Chavis Jr., que cunhou o termo racismo ambiental.
Questionada sobre a importância das periferias serem inseridas nos debates globais, Amanda responde: “A partir do momento que a gente participa, a gente coloca nossa narrativa. A gente para de ser apenas um objeto de estudo e começa a ser o ator social que vai contar a história”.
André Meneses conta dos desafios que enfrentou para chegar na universidade @Sara Key
Marcio tem feito pesquisas na universidade estunidense @Arquivo Pessoal
Amanda foi falar sobre os impactos do clima em Harvard @Patrícia Vilas Boas/Agência Mural
Para quem se interessa pelos estudos no exterior, existem instituições no Brasil que oferecem bolsas de mentoria para graduação e pós-graduação fora do país. Entre elas, estão:
Mentoria Brasa: a organização faz uma seleção para bolsistas em todo o Brasil com base em critérios socioeconômicos. No ano passado, a Brasa recebeu 38 bolsistas, sendo 4 de áreas da periferia de São Paulo.
Fundação Estudar: a fundação também disponibiliza o programa Líderes Estudar, que oferece todos os anos mentoria para aplicação a cursos de pós-graduação e graduação no exterior.
Financiamento coletivo: sobre os altos custos, é possível, assim como fez Márcio, iniciar uma vaquinha on-line em sites como Benfeitoria, Vaquinha e Kickante, para ajudar a cobrir as despesas com testes, taxas de inscrição e anuidade.
Jornalista em formação. Curiosa, gosta de sol, praia e um bom livro nas horas vagas. Correspondente da Vila Curuçá desde 2019.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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