Navegue pelo mapa
Por: Ingrid Fernandes | José Florentino | Paulo Talarico
Colaborou: Isabela do Carmo | Glória Maria | Jacqueline Maria da Silva
Arte: Magno Borges
Publicado em 01.11.2023 | 12:41 |
Os trabalhadores que construíram a cidade de São Paulo se instalaram e ocuparam áreas da capital paulista. Em muitas dessas regiões, formaram-se as favelas. Hoje, se todas as áreas ocupadas por domicílios em favelas de São Paulo fossem reunidas em um só lugar, equivaleriam a uma cidade maior do que João Pessoa, na Paraíba, e outras 11 capitais do país.
Em um ranking geral, seria o 19º município brasileiro com mais domicílios, com 390 mil residências.
Mas isso é apenas uma parte da história sobre a desigualdade social nas moradias existentes na cidade mais rica da América Latina.
Nos últimos anos, com o avanço da pandemia de Covid-19 e da crise econômica, esse tipo de moradia improvisada cresceu na cidade e se espalhou por diversos distritos. Os mapas mostram como essa característica está espalhada por toda a capital.
Neste especial guiado por dados, nos debruçamos sobre os domicílios em favelas da capital. Na definição da Prefeitura, “assentamentos precários que surgem de ocupações espontâneas feitas de forma desordenada”.
Definir o que é uma favela é mais complexo do que pode parecer. Os dados utilizados nesta reportagem são do HabitaSampa, sistema da Secretaria de Habitação da Prefeitura de São Paulo que atua na formação de políticas habitacionais. No entanto, este é um dos recortes possíveis para a definição do que são as moradias em favelas, que toma como base o planejamento das cidades.
Ao longo do tempo, a Prefeitura de São Paulo criou algumas classificações, como se fossem degraus do status de precariedade.
Além dessas 390 mil residências em favelas, há alguns núcleos, que a gestão aponta como “favelas dotadas de 100% de infraestrutura de água, esgoto, iluminação pública”. Há assim uma divisão em diversas áreas de São Paulo, onde termina a “favela sem direitos” e começa uma favela que recebe um pouco de serviço público.
Há ainda mais cortiços e assentamentos irregulares que compõem os domicílios da cidade. Esses vários graus indicam que a situação para garantir moradias dignas e regularizadas ainda tem um longo caminho pela frente.
Mas essa é a definição prevista em São Paulo. “Existe uma diversidade muito grande do que é a favela”, aponta o arquiteto Pedro Henrique Rezende Mendonça, 27, pesquisador do LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo).
O IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), por exemplo, possui uma definição que é utilizada para sua metodologia de levantamento, enquanto a secretaria municipal avalia o que faz sentido para a criação de políticas públicas. “A gente tem uma dificuldade de definir o que são as favelas. Quando a gente usa um dado estatal específico para dizer o que é favela a gente está usando um recorte específico”, afirma Pedro.
“Favela e loteamento irregular são dois jeitos de ocupar que a prefeitura reconhece territórios que são diferentes, mas que fisicamente passam pelo mesmo tipo de precariedade de serviços públicos”, diz. Porém, ele adverte. “Quando a gente coloca tudo num balaio só, corremos o risco de apagar essas especificidades locais.”
Essa diversidade de territórios pode ser vista nas duas maiores favelas da cidade: Paraisópolis e Heliópolis. Localizadas na zona sul da cidade, elas são responsáveis por colocar os distritos da Vila Andrade e do Sacomã como alguns dos que têm maior proporção de domicílios em favelas da capital paulista.
Mas ambas são muito mais do que favelas, apontam os moradores. Vanda Maria da Silva, 75, migrou para Paraisópolis entre 1977 e 1978, quando veio de Recife, no Pernambuco. “Morar nessa comunidade me fez aprender sobre empatia e amor quando o próximo mais precisa.”
A época em que Vanda chegou marca um avanço nesse tipo de moradia na cidade. Entre os anos 1960 e 1990, ocorreram 77% das ocupações das favelas presentes em São Paulo.
Moradora da principal via do bairro, a Pasquale Gallupi, ela lembra que o início da vida na região era de um tempo mais tranquilo e que ainda havia vegetação. Hoje, ela vê como um lugar muito agitado, com gente nas ruas 24 horas. “Fico exposta aos barulhos de motos e carros que passam o tempo todo.”
Estima-se que há 14 mil estabelecimentos comerciais, como mercadinhos, lojas de roupa, marcenaria, adegas e seis bancos em Paraisópolis. Esse crescimento trouxe ganhos econômicos, mas impacta em garantir qualidade de vida para a população estimada em 100 mil moradores.
“A comunidade precisa de respiros, nem o vento sentimos mais, por causa do número de casas amontoadas”, afirma. Ela também cita as ruas estreitas que dificultam a caminhada, sobretudo para pessoas idosas ou com dificuldade de locomoção.
“Meu sonho é uma Paraisópolis organizada, com praça, lazer para os idosos e crianças. Também sonho com um hospital para essa população, que é grande”.
Coordenador da Rádio Comunitária Heliópolis, Israel Jesus Silva, 45, está há 25 anos na maior favela da cidade, mas sempre viveu por perto em bairros ao redor da comunidade. Assim como Vanda, a ideia de solidariedade entre as pessoas que vivem e construíram o bairro é o que ele usa para descrever a região.
"Antigamente, tínhamos a perspectiva de um ajudar ao outro, em uma época que não tinha saneamento básico, não tinha rua asfaltada”, relembra, apontando pontos que chegaram ao bairro. “Mas, mesmo assim, era um lugar bom de se viver [justamente pelo senso de coletividade entre a vizinhança].”
Com mais de 50 anos, a favela da zona sul tem a história marcada pela luta por moradia digna para as milhares de famílias que vivem no local. A própria rádio comunitária, criada há 30 anos, surgiu em uma época em que os moradores se viravam com alguns alto-falantes para levar informação sobre o que era interessante para o bairro.
Apesar das conquistas e do crescimento do bairro, com mais de 200 mil habitantes, há ainda desafios. Badega destaca a necessidade de áreas de lazer, mais praças e quadras esportivas. “E, principalmente, falta ainda solucionar o problema de saneamento básico em Heliópolis. Têm córregos que não foram canalizados, têm famílias que ainda sofrem com problemas de chuvas e enchentes [dentro da favela]”.
Entre as regiões com mais favelas, oito estão na zona sul da capital. Essa característica se dá pela formação dessas regiões e por um outro tipo de ocupação realizada em outras áreas da cidade.
Nos anos 1950, existe uma transformação de áreas rurais em áreas urbanas e o surgimento das favelas. “São uma forma das pessoas acessarem uma área que é urbana, ou seja, que tem uma vantagem de localização”, explica o arquiteto Pedro, do LabCidade.
A zona sul recebia grandes obras nesse período e, em meio ao aumento da população da capital, muitos foram criando moradias nessas regiões.
Uma diferença marcante é Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. Apesar de ser uma das áreas mais populosas da cidade com 237 mil habitantes, por lá há uma proporção bem menor de moradias em favelas. No entanto, isso não significa uma falta de relação. Por lá foi construído um grande conjunto habitacional em uma área onde não havia nada.
“Cidade Tiradentes é produzida no meio da zona rural nos anos 1970. A intervenção pública chega muito antes da urbanização”, explica Pedro. O processo realizado nesse território causou complicações, como a falta de transporte público para a população. “A população do distrito foi removida de outros lugares da cidade. Elas moravam em favelas que eram melhor localizadas na cidade e foram transferidas para área rural.”
Sobre a melhora da condição de moradia dessas famílias, Pedro aponta que é necessário que alguns passos sejam tomados. O primeiro é reconhecer que apesar de estarem sobre o mesmo guarda-chuva (o nome favela), esses territórios não são a mesma coisa, são diversos. “As necessidades são específicas.”
Dentro disso, a política habitacional precisa responder às necessidades dessas regiões e que não envolvam apenas o incentivo à construção de mais prédios na cidade. “A gente precisa de planos que ouçam a população local, que entenda essas necessidades e desenhe uma política habitacional para responder ao que é preciso em cada um desses territórios.”