Por: Jacqueline Maria da Silva | Sarah Fernandes
Edição: Sarah Fernandes
Publicado em 23.01.2024 | 17:15 | Alterado em 29.01.2024| 15:05
Distrito têm o maior índice de gravidez na adolescência da capital paulista; 12 em cada 100 bebês nascidos vivos no distrito são de mães abaixo de 20 anos
Tempo de leitura: 7 min(s)Ao contrário do que o senso comum pode supor, os sonhos de uma mãe adolescente não deixam de se realizar. Eles são apenas postergados, adaptados e repensados – como os da maioria das pessoas. É o que garantem Odara Akire, 20, mobilizadora social, e Paloma Freitas Silva Gomes, 29, recepcionista. Ambas foram mães na adolescência e vivem em Cidade Tiradentes, distrito no extremo leste de São Paulo, recordista em gestações antes dos 20 anos na capital paulista.
O otimismo, no entanto, não diminui o esforço para realizar o que se sonha – já que, muitas vezes, o empenho precisa ser dobrado, principalmente quando se é mãe solo, negra e periférica, como Odara. Ela queria de ser professora de história e sociologia e hoje planeja outras coisas baseadas no seu novo papel: o de mãe.
“A maternidade em si é desgastante, mas o meu filho é a melhor coisa que me aconteceu. Eu amo ele de todo coração e amo todas as coisas que a gente vivencia juntos”, diz a jovem, que atua como mobilizadora social do Unicef e cursa ensino técnico em farmácia – que acredita ser uma opção melhor para conseguir trabalho. De vez em quando participa de saraus e encontros com amigos, afinal, além de mãe, é uma jovem.
O ECA (Estatuto da Criança e do adolescente) considera a gestação na adolescência a que ocorre entre 12 e 18 anos completos. Já o Ministério da Saúde considera dos 10 aos 20. Conforme o Código Penal, qualquer ato libidinoso envolvendo um maior de idade e um menor de 14 anos, mesmo que consensual, é considerado como estupro.
Cidade Tiradentes é o distrito de São Paulo com maior proporção (12%) de bebês nascidos de mães com menos de 20 anos em relação ao total de nascidos vivos, segundo o Mapa da Desigualdade de 2023, produzido pela Rede Nossa São Paulo. Este percentual é quase o dobro da média da cidade, que é de 6,41%.
Tanto Odara quanto Paloma fazem parte de estatísticas, assim como as mães delas também fizeram: as duas foram filhas de mães adolescentes, que igualmente viviam em Cidade Tiradentes.
A história delas, porém, não tem um final já anunciado: em meio a novos planejamentos, mudanças de rota e combate ao preconceito cotidiano, as jovens conseguem enxergar a maternidade sob outra ótica e dar novos sentidos aos seus planos e sonhos.
Se Cidade Tiradentes apresenta altos índices de gestações na adolescência, esse fato não é uma responsabilidade exclusiva dos jovens, das famílias ou das escolas. Pelo contrário: o dado deve ser lido à luz de outros indicadores socioeconômicos do bairro, os quais podem ajudar a compreender o problema a partir de uma perspectiva ampliada e nunca de forma individualizada, evitando reforçar estereótipos.
É isso que defende Elânia Francisca, 39, psicóloga mestra em educação sexual e doutoranda em humanidades, direitos e outras legitimidades. Ela é criadora do Espaço Pubere, no Grajaú, zona sul de SP, que trabalha temáticas de gênero e sexualidade com público infantil e adolescente.
“É possível fazer uma conexão direta entre menor investimento público, menor renda per capita e maior número de gestações adolescentes. Isso porque a educação e saúde sexual estão diretamente relacionados à garantia de outros direitos”, diz. “O ato sexual na adolescência ocorre em todas as classes sociais, porém adolescentes em menor vulnerabilidade têm mais meios de entender e prevenir a gravidez”.
Foi exatamente o direito à educação sexual que faltou para Paloma, segundo avaliação da jovem. “Eu vivia em um contexto de vulnerabilidade e violência doméstica. Meu pai era alcoólatra, eu poderia ter entrado nisso ou feito algo de ruim pra mim mesma. Minha filha me salvou disso. Talvez eu nem estivesse aqui hoje, se não fosse ela”.
Ela conta que viu a vida virar de cabeça para baixo aos 16 anos, com a gravidez da primeira filha. A notícia chegou exatamente no dia em que recebeu uma resposta positiva para o primeiro emprego, que nunca assumiu. Ela e o pai da criança, o primeiro namorado, foram obrigados a assumir um compromisso por convenções religiosas e sociais.
Nessa fase, Paloma tinha os sonhos de conquistar a casa própria, comprar um carro e se formar em recursos humanos. Nenhum deles foi realizado. Ela tentou concluir a faculdade por três vezes, mas não conseguiu porque acabou engravidando seguidamente por mais duas vezes.
“Eu imagino a adolescência com muitas amigas, estudando, me divertindo… Eu vejo agora minha filha tendo a vidinha dela e eu não tive isso. Eu me privei muito cedo e não tenho uma amiga de infância. Se fosse hoje, eu não teria casado”, desabafa.
Os casos de gravidez na adolescência nas periferias levantam diversos sinais de alerta, sendo o principal deles relacionado às garantias de direitos das meninas que são ou serão mães. Não é incomum que essas jovens sejam mais culpabilizadas por uma gestação indesejada, e que as responsabilidades pelo bebê recaiam de maneira mais intensa sobre elas.
Assim, não raro, meninas que se tornam mães na adolescência ficam mais sujeitas a casos de violência doméstica, pobreza e evasão escolar. O estudo de 2019 “Gravidez na Adolescência” feito pela Fundação Abrinq mostrou que, em 2019, quase 30% (29,9%) das mães adolescentes no Brasil não haviam concluído o ensino fundamental, ou seja, estudaram menos de sete anos. Essa situação pode perpetuar um ciclo de pobreza nas famílias das jovens mães.
“Nossa estrutura social patriarcal, machista, racista e adultocêntrica dificulta ainda mais que adolescentes mães acessem direitos, pois, além do julgamento, é posto para elas a responsabilidade pela gestação, que culmina em sobrecarga e solidão no cuidado com a criança”, pontua a psicóloga Elânia.
Para a adolescente grávida, é garantida a licença-maternidade escolar (Lei 6.202/1975) de três meses a partir do oitavo mês da gravidez, permitindo que a adolescente realize atividades, trabalhos e provas em casa sem perda do período escolar.
Quando Paloma engravidou, ela cursava o terceiro ano no ensino médio, enquanto o pai da criança estava no segundo. A ela coube assumir toda a responsabilidade pelos cuidados com a criança, a administração da casa e o apoio ao então parceiro, o que teve um impacto direto em sua inserção no mercado de trabalho.
Por diversas vezes, ela foi incentivada a interromper os estudos, mas só continuou devido ao apoio de uma professora. “Meu parceiro se formou na universidade e nunca parou de trabalhar. Eu ouvia das pessoas que ele tava sendo um bom pai, que minha obrigação era ficar em casa. Depois, passei a ouvir que eu escolhi ser mãe e que poderia ter me prevenido, mas eu nunca recebi orientação sobre educação sexual em casa ou na escola”.
Quando uma menina adolescente engravida, ela acaba sendo vítima de diversos julgamentos e punições sociais, muitas vezes velados, em espaços que deveriam ser de acolhida, como a escola, a família, a igreja e até mesmo os serviços de saúde.
“A sociedade acaba atuando em uma lógica punitiva, dizendo que ela deve se dedicar exclusivamente ao filho e parar de frequentar espaços que gosta. Por outro lado, para algumas meninas, a gestação pode ser uma tentativa de ressignificar a maternidade ou de ser cuidada pela comunidade que pertence”, diz a psicóloga Elânia.
Ela aponta que é importante não culpabilizar e nem romantizar a gestação na adolescência, mas sim compreender que, embora não planejada, a gravidez tem um significado único para cada mulher. “Não é correto colocar a gravidez como se fosse a pior coisa a acontecer ou a solução para a vida”.
Ações e políticas articuladas para promover educação integral em sexualidade, na prevenção e orientação sobre a gestação;
Projetos em regiões periféricas que promovam cultura, saúde, educação, lazer e esporte, oferecendo perspectivas de futuro e de experimentação dessa fase da vida;
Papo reto, sem tabus, sobre educação sexual em casa, na escola e demais espaços que os adolescentes frequente;
Sem culpa: a gravidez na adolescência não deve ser tratada por uma ótica punitiva, em especial para as meninas;
Em caso de gravidez, é fundamental garantir uma rede de apoio na família e na comunidade, que respeite tanto a fase do desenvolvimento dos pais quanto do bebê;
Para a adolescente grávida ou mãe, é fundamental ter atendimento na UBS (Unidade Básica de Saúde), inclusive de psicoterapia e encontros com outras jovens que vivenciam a mesma situação;
Garantir o direito ao aborto legal para meninas grávidas vitímas de violência e debater o tema socialmente
Debater masculinidade, paternidade e machismo com a juventude, família e sociedade.
Para o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a resposta é simples: a responsabilidade é coletiva, incluindo a comunidade, que teria o papel de garantir espaços seguros de informação sobre saúde sexual; a família, no papel do diálogo e orientação; e o poder público, na execução de políticas de proteção aos direitos reprodutivos das meninas.
Por isso, especialistas concordam que reduzir os índices de gestações na adolescência entre populações mais vulneráveis exige articulação e integração em diversas frentes, como saúde, educação, segurança pública e emprego e renda.
“Esta rede de acolhida deve entender que ainda que a menina seja a mãe e o menino seja pai, eles ainda são adolescentes. Muitas vezes a própria escola tem tabus para trabalhar os temas de sexualidade e gênero e os professores que tentam falar sobre isso sofrem perseguição”, diz Elânia.
A especialista aponta ainda que é necessário aproximar os serviços públicos dos adolescentes, em especial os de saúde, que devem ter programas de acolhimento específicos para os meninos e meninas.
Quando a rotina da maternidade pesa, Odara recorre aos conselhos de um grupo de mães jovens da qual faz parte. Elas se articulam pelo WhatsApp e, nas trocas de mensagens, textos e até memes, encontram histórias parecidas, se sentem encorajadas e acolhem meninas recém-chegadas.
No futuro, elas pretendem criar um podcast para discutir temas importantes para as juventudes periféricas, entre eles desconstruir os estigmas associados à gravidez na adolescência.
“Faz uns três meses que começou. A gente relembra tudo que viveu [na gestação], desabafa sobre as nossas questões de maternidade, fala sobre nossos sentimentos em relação à sociedade, como se fosse uma rede de apoio para as mães”.
Por ora, as políticas públicas parecem chegar de forma muito fragmentada à Cidade Tiradentes, de acordo com as jovens. Questionada, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo afirmou em nota que atua de forma intersecretarial no tema, desde a prevenção até o atendimento das jovens. Além disso, é parceira de organizações da sociedade civil em programas de auxílio financeiro às mães.
Já a Secretaria Estadual de Saúde pontuou, também em nota, que atua no desenvolvimento e acompanhamento de políticas públicas e na qualificação de equipes multiprofissionais voltadas à saúde do adolescente, visando conscientização coletiva, acolhimento e consolidação de serviços específicos para este público.
Fato é que garantir que as adolescentes mães sigam um caminho pleno, de autonomia, saúde e segurança, requer a participação de toda sociedade, com acolhimento e flexibilidade, para que elas possam, juntas, escreverem novas histórias para si.
É o que faz Paloma. Após 12 anos depois da primeira gestação, e grávida pela quarta vez, ela retomou seus planos e afirma que nada interrompe seu sonho refeito: finalizar o curso online de administração para subir de cargo na empresa que trabalha. “Tenho foco em terminar os estudos e conquistar a minha casa. Eu acredito e trabalho para conquistar todos os meus sonhos.”
Academia Carolinas: Coletivo em Guaianazes, zona leste, luta pelo empoderamento de mulheres em situação de vulnerabilidade por meio da inserção profissional e do direito à infâncias periféricas;
Amamentação Igbaya: rede promove palestras, oficinas e debates virtuais e presenciais sobre amamentação negra e antirracista e seus atravessamentos;
Associação Doula Solidária: ONG disponibiliza doulas a preços acessíveis ou gratuitamente para mulheres em situação de vulnerabilidade;
Casa de Marias: espaço dedicado ao cuidado da saúde mental da mulher negra. Possui uma rede de psicólogos especialistas em diversas áreas a preços sociais;
Espaço Pubere: promove informação sobre direitos sexuais e reprodutivos, gestação, masculinidade, voltado para público infantil e adolescente;
Casa do adolescente: centros de atendimento ao adolescente do governo estadual, com unidades em diversos distritos de São Paulo e municípios da região metropolitana;
Favela Psicanálise: clínica popular de psicologia em São Mateus, na zona leste;
Mães do Morro: Coletivo de mulheres mães, no Morro Doce, zona norte, que promove oficinas, cursos profissionalizantes e atividades integrativas para garantir o acesso de mulheres com filhos aos espaços de cultura;
Masculinidade Quebrada: Coletivo no Grajaú, zona sul, que promove oficinas para debater paternidade e adolescência periférica por uma perspectiva de gênero.
Jornalista formada pela Uninove. Capricorniana raiz. Poetisa. Ama natureza e as pessoas. Adora passear. Quer mudar o mundo e tornar o planeta um lugar melhor por meio da comunicação. Correspondente de Cidade Ademar desde 2021. Em agosto de 2023, passou a fazer parte da Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project.
Jornalista e geógrafa, com foco em direitos humanos e ambientais. Reúno mais de 10 prêmios de reportagem, entre eles dois Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Atualmente é Editora na Agência Mural.
A Agência Mural de Jornalismo das Periferias, uma organização sem fins lucrativos, tem como missão reduzir as lacunas de informação sobre as periferias da Grande São Paulo. Portanto queremos que nossas reportagens alcancem outras e novas audiências.
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