Por: Cleberson Santos | Carlos Pires | Carol Lima
Edição: Paulo Talarico
Arte: Magno Borges
Reportagem: Colaboraram: Jucinara Lima, Danielle Lobato, Kethlyn Mieza e Amanda Oliveira
Publicado em 12.08.2025 | 6:46 | Alterado em 14.08.2025| 22:43
A cada no máximo 3 horas, um ambulante tem uma mercadoria apreendida por seguranças da CPTM ou da Viamobilidade, indica levantamento da Agência Mural. Segundo marreteiros ouvidos pela reportagem, muitas vezes com truculência. O número é grande, mas já foi maior. Em 2019, auge de operações do tipo, em média oito produtos eram apreendidos por hora nas linhas da Grande São Paulo.
Tempo de leitura: 7 min(s)“A CPTM informa: pedir esmolas e o comércio ambulante são práticas ilegais. Não incentive essas ações”. Quem usa o transporte sobre trilhos na Grande São Paulo está tão familiarizado com esse aviso quanto com frases como “a porta fechou, o shopping trem chegou”, “só hoje é 3 chocolate por 5”, “teste o fone na hora”.
Mesmo com a legislação e a constante fiscalização dos seguranças, o famoso “shopping trem” faz parte da realidade do transporte ferroviário da região metropolitana.
Os produtos são os mais variados possíveis. O chocolate “para adoçar a viagem” já é um clássico, tal como as pomadas massageadoras. Há os que acompanham as necessidades tecnológicas, como os fones de ouvido ou carregadores portáteis. Café a um preço “mais acessível” ou até macarrão instantâneo, com direito à água quente para consumir no vagão, já foram vistos por correspondentes da Agência Mural .
Não existe uma estimativa, mas são muitas as pessoas que encontram no comércio ambulante nos trens da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e Via Mobilidade, uma forma de sobrevivência.
Samir vende fones de ouvido e busca juntar dinheiro para mudar de ramo. No entanto, apreensões têm atrasado o plano Carlos Pires/Agência Mural
Os agentes das estações, o famoso “rapa”, tentam inibir o comércio. O marreteiro Afonso Oliveira, 33, atua com a venda de produtos nos vagões há 17 anos e compara essa relação entre comerciantes e seguranças com a clássica animação “Tom e Jerry”.
“Não tem como falar se é certo ou errado as vendas no trem. Mesmo eu fazendo um serviço correto, com cartão e garantia, sempre vai ter essa briga”.
Ao longo dessas quase duas décadas, Afonso conta que já teve prejuízos com apreensões que dariam para ele adquirir um carro. “Se eu for te falar o quanto já perdi, já teria comprado um Uno antigo”, brinca.
Nesta reportagem especial, a Agência Mural revela dados do “rapa” e como marreteiros enfrentam esse dia a dia para conseguir renda. Também abordamos os conflitos existentes e o que tem rolado nos vagões.
Ainda que frequente, a CPTM já não apreende mais tanta mercadoria quanto há cinco anos. Levantamento da Agência Mural com base nos dados divulgados mensalmente pela Companhia, além de informações obtidas via LAI (Lei de Acesso à Informação) a respeito das apreensões nas linhas operadas pela Via Mobilidade, mostram uma redução desde o começo da pandemia de Covid-19.
Durante todo o ano de 2024, CPTM e Via Mobilidade contabilizaram 3.290 apreensões de mercadorias de comércio ambulante nas sete linhas que fazem parte do transporte ferroviário da Grande São Paulo. Ou seja, diariamente, em média, 9 vezes algum ambulante perdeu os produtos que vendia nos vagões.
O número é grande, mas já foi maior. O total representa menos de 10% do contabilizado pela Companhia nos seis primeiros meses de 2019. Uma reportagem feita pelo UOL naquele ano destacava que a CPTM registrou a marca de mais 35 mil apreensões naquele primeiro semestre.

Venda de produtos em vagões é rotina e fonte de renda para marreteiros @Magno Borges/Agência Mural
Enquanto em apenas seis meses, no primeiro semestre de 2019, foram feitas 35 mil apreensões de mercadorias dos marreteiros (como são conhecidos os comerciantes ambulantes dos trens), nos últimos cinco anos, de 2020 à 2024, contabilizou-se um total de pouco mais de 45 mil apreensões.
O ano de 2020, mesmo com a pandemia do Covid-19, registrou quase metade das 45 mil apreensões registradas nestes últimos cinco anos. Foram mais de 22 mil ocorrências, que caíram para quase 3.3 mil em 2024.
Os meses de janeiro e fevereiro costumam ser os de mais tensão para os marreteiros, por liderarem as apreensões em quatro dos cinco anos analisados.
Por outro lado, nos últimos dois anos, o mês de dezembro foi o que menos registrou apreensões, sendo dezembro de 2024 o menor número de toda a série analisada, com 191 produtos confiscado em todas as sete linhas do transporte ferroviário da Grande SP.
Correspondentes da Agência Mural aproveitaram as viagens que fazem pelas linhas da Via Mobilidade e CPTM para contar o que viram à venda. Ao todo, foi testemunhado o trabalho de 22 marreteiros em cinco das sete linhas.
Nas linhas Jade e Rubi (contrariando os dados sobre as apreensões) não houve comércio dos vagões durante as viagens feitas pelos correspondentes.
Afonso trabalha com um desses produtos favoritos nos vagões do transporte ferroviária, a faca multiuso.
Ao longo desses 17 anos de trabalho nos vagões, Afonso foi desenvolvendo técnicas que o ajudam a ter mais sucesso de vendas.
Ele faz questão de estar bem vestido, aprendeu marketing digital e oferece garantia e até um cartão aos passageiros com QR Code para as lojas que ele possui em plataformas de e-commerce como Mercado Livre e Shopee.
‘Amo o que faço, gosto de trabalhar com vendas, tenho a liberdade e tempo que se trabalhasse em uma empresa não teria’
Afonso, marreteiro em SP
Na viagem em que a Agência Mural o acompanhou, Afonso vendeu dez facas aos passageiros.
Já Samir*, 48, trabalha com outro hit: os fones de ouvido. Atuando nos vagões há quatro anos, o ex-técnico de enfermagem conta que é perceptível essa tendência de queda nas apreensões, conforme apresentado nos dados da CPTM e da Via Mobilidade.
“Diminuiu, mas ainda rola. Quando eles fazem as grandes operações, aí roda muita gente, levam muita coisa, embora às vezes ocorram essas grandes apreensões também por falta de respeito de alguns camelôs”, relata Samir.
A Agência Mural questionou a CPTM sobre qual o fim das mercadorias apreendidas. Segundo a companhia, “os materiais perecíveis apreendidos são destruídos e os não perecíveis são encaminhados ao Fundo Social de Solidariedade do Governo do Estado”.

Fones de ouvido são um dos aparelhos mais vendidos @Carlos Pires/Agência Mural
Entre os passageiros, há quem não veja problema nenhum na atuação dos marreteiros, mas também quem não incentiva a prática de jeito nenhum.
A publicitária Amanda Cordeiro, 33, faz parte do primeiro grupo. Moradora de Caieiras, ela costuma comprar doces com os marreteiros, mas já adquiriu também brinquedos ilusionistas e utensílios domésticos, como o famoso descascador de legumes e colheres de pau.
“Assim como todos nós, eles estão tentando conseguir da maneira que podem suprir a renda deles. Para mim, é um trabalho como qualquer outro”, afirmou Amanda, que já testemunhou episódios de truculência por parte de funcionários da CPTM.
“Já vi eles pressionando um comerciante que implorava para não levar a mercadoria, acho isso exagerado. É sabido das regras sobre o comércio ambulantes, mas poderia ter oportunidades para legalizar. É bem problemático para ambos”.
A CPTM possuía um programa de apoio aos marreteiros, o “Nos Trilhos do Empreendedorismo”. Em parceria com Sebrae, a Companhia oferecia “capacitação e geração de oportunidades a vendedores ambulantes que atuavam informalmente no Sistema Ferroviário”.
Aparelhos eletrônicos estão entre os produtos do Shopping Trem @Arquivo Pessoal
Placa de proibição em estação de trem em SP @Carol Lima/Agência Mural
Marreteiro segura produto antes da venda @Carlos Pires/Agência Mural
Caixa de som de marreteiro @Carol Lima/Agência Mural
Comércio ambulante é regulamentado em estações @Carlos Pires/Agência Mural
Além das aulas focadas em empreendedorismo, o programa também oferecia a possibilidade de aluguel por valores reduzidos de um espaço regularizado nas estações de trem. No entanto, o projeto foi descontinuado em fevereiro de 2024, após formar 250 alunos.
Já para Karina Helena Correia, 35, moradora de Santana de Parnaíba, o que pesa é o barulho que os marreteiros fazem ao vender os produtos deles nos vagões.
“Acho que atrapalha quem está indo e vindo do serviço. Aquelas pessoas que ficam gritando, anunciando. Às vezes a pessoa está cansada, com dor de cabeça, e vem as pessoas fazendo comércio”, explica Karina, que prefere comprar nas lojas das estações do que no vagão.
“Aí não é um problema, eles pagam aluguel, acho justo. Mas dentro do trem ou do ônibus é uma coisa muito incômoda. Fora eu não conhecer a procedência do produto, tipo água que pode estar violada”.
O decreto federal nº 1.832 de 1996, que regulamenta o transporte ferroviário no Brasil, prevê que em caso de violação do artigo 40, sobre a proibição do comércio nos trens, é dada uma advertência por escrito. Em caso de reincidência, há a previsão da aplicação de multa.
Contudo, a conduta mais comum por parte das empresas de transporte ferroviário é a apreensão da mercadoria que seria vendida.

Truculência em operações nos trens é reclamação constante @Magno Borges/Agência Mural
De acordo com Samir, o principal problema dessa prática é o prejuízo financeiro que ele tem. “Se você não tiver outra grana para pôr no lugar, o seu sonho vai ser, não digo interrompido, mas vai ser atrasado. As suas contas vão atrasar, tá ligado?”
Segundo ele, nesses quatro anos de vendas nos vagões, ele já deve ter tido mais de R$ 1 mil de prejuízo com a apreensão dos produtos que vende. A situação compromete os planos para o futuro, inclusive o de buscar outra profissão.
‘É a forma que eu tenho hoje de levantar minha grana, vender meu fone. Não tenho outra. Estou tentando trocar de carro pra sair da marreta. Então, se eu perder a carga, esse carro vai demorar pra chegar’
Porém, há outra questão que incomoda Samir: a truculência dos seguranças ao abordar os comerciantes.
“Tinha uma guarda feminina que graças a Deus tiraram ela da linha. Ela tratava a gente que nem bandido. Metia a mão no bolso da gente, coisa que nem pode. E na frente de todo mundo, uma exposição do cacete, não tem necessidade”.
“Às vezes ocorre também por falta de respeito de alguns camelôs. Tem uns que desrespeitam, afrontam, querem sair na mão”.

O vendedor Afonso atua com facas multiuso @Carol Lima/Agência Mural
A postura de outros comerciantes, “que se acham os donos da linha”, também é algo que incomoda Samir: “Tem hora que você tem que rugir, rugir alto, mostrar que você está para qualquer coisa também. Senão você não trampa. Não é só os guardas que atrapalham, às vezes é o próprio camelo também”.
Afonso, que também teve grandes prejuízos com as apreensões, entende que faz parte do trabalho dos seguranças conter o comércio, mas concorda com Samir no que diz respeito ao uso da força para isso.
‘Quando tiver uma disciplina, tanto da parte do vendedor quanto do guardinha, ficará um trampo 100%. Muitos deles não sabem se impor e são agressivos. Mas os vendedores também’
Afonso, vendedor ambulante em SP
Com a experiência adquirida nessas quase duas décadas como marreteiro, Afonso sonha um dia ter a própria loja. Evangélico, ele confia que Deus irá permitir a realização desse objetivo:
“Eu e minha esposa estamos caminhando nisso, e não tem como dar errado, logo mais vai acontecer porque a gente trabalha de forma correta. Buscando a Deus e fazendo as coisas certo, não tem como dar errado”.
Entre as linhas operadas pela CPTM, a maior quantidade de materiais confiscados no período entre 2020 e 2024 foi a Linha 7-Rubi, que opera entre Barra Funda e Jundiaí. Foram 11.029 ocorrências.
A Rubi também apresentou uma tendência de queda, mas não tão expressiva quanto nas linhas da Via Mobilidade. Saiu de 4.678 em 2020 para 1.247 em 2024.
Desde que a Linha Diamante passou a ser gerida pela Via Mobilidade, ela deixou de ser a linha com a maior quantidade de apreensões por ano para a Rubi assumir a liderança.
A Linha 8-Diamante, hoje operada pela Via Mobilidade, foi a que teve mais apreensões em cinco anos. O ramal, que vai de Júlio Prestes, em São Paulo, até Itapevi, somou 12.305 apreensões no período, porém metade delas (6.835) foram registradas somente no ano de 2020.
A Via Mobilidade assumiu a operação da Linha Diamante em janeiro de 2022, quando a linha já apresentava uma tendência de queda no número de materiais confiscados. Em 2021, no último ano cheio de operação da CPTM foram 3.486, enquanto em 2024, a Via Mobilidade informou ter feito apenas 110 apreensões.
Também operada pela ViaMobilidade, a linha 9-Esmeralda, que liga a região do Grajaú à Osasco, viu as apreensões caírem de 1507 em 2020 para somente 53 em 2024.
A Linha 10-Turquesa, que vai da estação da Luz (São Paulo) à Rio Grande da Serra, registrou 333 apreensões em 2024. O número é 77,5% menor que o registrado em 2020, quando período em que houve 1481 apreensões.
A linha operada pela CPTM deixará de ter operação integrada com a Linha-7 Rubi no final do mês de agosto. A partir de 28 de agosto, o ponto final da linha Turquesa será a estação Barra Funda.
Os números de apreensões na Linha 12-Safira, que vai da estação do Brás (São Paulo) até Calmon Viana (em Poá), caíram 88% no período entre 2020 e 2024. A linha saiu de 4592 apreensões em 2020 para 548 no ano passado. O número representa 16% das apreensões nas sete linhas do transporte ferroviário de São Paulo.
No extremo oposto está a Linha 13-Jade, que vai da região central de São Paulo até o Aeroporto de Guarulhos. Com apenas três estações em sua operação (sem considerar o Expresso Aeroporto, com saída na Barra Funda), a Linha Jade registrou apenas 29 apreensões ao longo do ano de 2024.
A Agência Mural questionou a CPTM quais motivos levaram a uma redução tão expressiva nos números de apreensões ano após ano. Também foi perguntado se há algum tipo de protocolo na abordagem dos ambulantes e quais os produtos mais apreendidos.
Em nota, a CPTM informou que “realiza ações constantes em todo o sistema contra o comércio ambulante por meio da atuação dos agentes de segurança em estratégias variadas que envolvem rondas e atendimento a denúncia de passageiros” e reforçou que atua respaldada no já citado Decreto Federal nº1832/96.
Os mesmos questionamentos foram feitos à Via Mobilidade, porém a empresa não respondeu à reportagem. O espaço segue aberto.
Correspondente do Capão Redondo desde 2019. Do jornalismo esportivo, apesar de não saber chutar uma bola. Ama playlists aleatórias e tenta ser nerd, apesar das visitas aos streamings e livros estarem cada vez mais raras.
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