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Periferias contam a história de São Paulo para além do Pátio do Colégio

Por: Cleberson Santos

“Tem muitos 25 de janeiro. Esse dia de São Paulo é o de qual São Paulo?”, questiona Adriano Sousa, 34, historiador e articulador cultural. “É um dia para a gente ficar celebrando a matança indígena pelos jesuítas, pelos bandeirantes? Por que não tem um 25 de janeiro para as aldeias guaranis do Jaraguá, de Parelheiros?”

Adriano faz parte do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação Histórica) Guaianás, um coletivo da região de Guaianases, zona leste de São Paulo, que busca ser “um espaço de referência de pesquisa, produção teórica, formação popular e difusão da memória, história e cultura dos trabalhadores”.

O grupo é uma das várias organizações locais que existem nas periferias da capital paulista promovendo o resgate da própria história local. Os estudos mostram que é possível ir além da narrativa da fundação no Pátio do Colégio, centralizada e focada nas elites paulistanas.

“A gente tem muitos territórios e muitos grupos sociais na cidade que são apagados. São Paulo é múltipla”

Adriano Souza

Adriano reforça que o 25 de janeiro é insuficiente para a reflexão sobre o que é a capital. “Não existia São Paulo até o final do Século 19. Essa cidade foi se aglutinando e o poder que emanou dos industriais e do pessoal do capital do café foi espezinhando os outros passados, dos outros grupos”.

Neste aniversário de 468 anos da cidade de São Paulo, a Agência Mural apresenta o trabalho de memória histórica feito por coletivos e escolas em periferias da cidade, seja por meio da pesquisa, da arte ou da produção de conteúdo.

Integrantes do Nos Trilhos, que aborda a história do Jaraguá no bairro Ira Romão/Agência Mural

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A primeira igreja

Além de ser o dia do santo católico que dá nome à cidade, 25 de janeiro é a data do aniversário de São Paulo por ter sido nesse dia em que foi fundado, com a celebração de uma missa, o Pátio do Colégio, local criado para tentar converter a população indígena ao catolicismo.

Contudo, a primeira igreja da cidade fica a cerca de 30 km dali, em São Miguel Paulista, na zona leste. Erguida em 1560, seis anos após a fundação da cidade, a Capela de São Miguel Arcanjo existe até hoje, ao lado da estação de trem, como patrimônio histórico tombado e com boa parte das características iniciais mantidas.

“Quando eu comecei a estudar foi uma grande novidade. A gente sempre conta a história [de São Paulo] a partir do Pátio do Colégio”, conta Renata Eleutério, 36, cientista social e co-fundadora do CPDOC Guaianás, mesmo coletivo que o Adriano participa.

“Mas toda pesquisa de arqueologia que a galera fez na igreja de São Miguel identifica que ela foi o primeiro lugar. Toda essa centralidade foi modificada e a história foi contada a partir de uma região central.”

Frente da Capela de São Miguel Arcanjo, uma das primeiras construções do país @Eduardo Silva/Agência Mural

O CPDOC se aprofunda também no desenvolvimento de São Mateus, Lajeado e Cidade Tiradentes. Esses dois últimos possuem relação próxima com a história de Guaianases, como explica Renata:

“A história de Guaianases é a história do Lajeado”, explica. Guaianases tem 161 anos, mas a primeira missa da região foi rezada no bairro vizinho, do Lajeado, em 1861. A chegada da ferrovia mudou o que era então a região mais movimentada, onde está a atual estação de Guaianases.

Cidade Tiradentes cresceu quando houve as construções de conjuntos habitacionais na região nas décadas de 1970 e 1980, mas 65 anos a vida começava no local com uma das primeiras indústrias de farinha de mandioca do Brasil, uma fazenda onde havia extração de madeira e uma linha férrea para um bonde.

História dos trabalhadores

Um fato comum das narrativas é que a história oficial dos bairros costuma ser narrada pelas “famílias desenvolvedoras do bairro”. O CPDoc tenta mostrar que há outros fatos importantes na construção desses bairros.

“Era o nome dessas famílias que estavam nas ruas, na avenida principal, na escola. A gente não tinha a história dos trabalhadores”

Renata Eleutério

“Meus pais são migrantes, os pais de todo mundo são oriundos de outros lugares, a gente não tinha essa noção”.

Ir além dessa história oficial remonta até as origens do nome do bairro e do próprio coletivo. Os guayanás eram indígenas considerados nômades que viviam da caça, pesca e coleta de frutos silvestres. O nome inspirou o nome do distrito de Guaianases, mas não há não há vestígios de aquilombamento ou de uma aldeia indígena na região. “Muito provavelmente não faziam esse processo”, diz Renata.

Detalhe de uma das imagens criadas no projeto ‘Passagem Funda’, exposição a céu aberto com imagens de trabalhadores de Guaianases @Lucas Veloso/Agência Mural

Tendo como “desejo maior” a criação de um museu que reúna essas histórias, o CPDOC usa a fotografia e a oralidade para fazer esse trabalho de resgate. O grupo participa da Jornada do Patrimônio, evento anual promovido pela prefeitura de São Paulo, e já produziu uma série de vídeos de relatos dos moradores.

“Entrevistando moradores do território, pude perceber que eles não se viam como agentes da história”, diz Adriano. No entanto, a versão dos moradores sobre a história tinha importância e um entrelaçamento com o território.

“Essa ideia de valorizar a vida no próprio território em tudo, como atividade econômica, comércio, indústria, mas sempre do ponto de vista do trabalhador, que é a principal questão”, reforça o historiador.

Do ouro ao trem

Enquanto os jesuítas têm influência direta na história de São Miguel Paulista, o Jaraguá, na zona norte, conta com a interferência de outro grupo controverso, mas exaltado pela elite paulista: os Bandeirantes.

Além de dar o nome à rodovia que corta a região, os Bandeirantes foram responsáveis pela descoberta de ouro nos arredores do Pico do Jaraguá, décadas antes do ciclo de extração em Minas Gerais.

Uma das figuras mais importantes desse período foi Afonso Sardinha, cujo casarão está preservado no Parque Jaraguá até hoje.

“O que a gente também tem de registro é que até o Afonso Sardinha conseguir ter a casa dele, ele sofreu um bocado, e ainda bem”, conta Vanessa Correia, 25, sobre a resistência indígena na região. “A presença indígena [no Jaraguá] é muito anterior ao que a gente imagina, que remete ao século 16 e 17, até anterior a isso, mas não tem registro”.

Vanessa é professora, atriz e integrante do coletivo “Nos Trilhos”, que desde 2017 estuda e divulga a história do Jaraguá por meio de espetáculos teatrais e intervenções artísticas.

O nome do coletivo remete a outro ponto histórico e importante da região, a estação de trem, fundada em 1891. A primeira peça do grupo se chamava “Rubi” e era encenada dentro dos trens da linha 7 (que também leva o nome de Rubi), que vão da Barra Funda à Jundiaí, passando pelo Jaraguá.

“Foi com Rubi que a gente começou a perceber que tinham temáticas que eram muito caras para a gente. Falar sobre a cidade, a constituição de uma estrutura racista, essa divisão entre periferias e centros. Tudo isso começou a surgir como temas para além da questão histórica”, lembra Vanessa.

Já a segunda peça do grupo, o Cavas de Memória, mergulha na história do Jaraguá: “A gente vai atrás de referências, de imagens, de materiais audiovisuais, de textos, livros, documentos que falam sobre o território do Jaraguá”.

Além das apresentações teatrais, o grupo promove caminhadas históricas e também participou da Jornada do Patrimônio.

O coletivo destaca que uma das características dessa caminhada é não seguir a cronologia da história do Jaraguá, optando por começar o roteiro na estação de trem e terminá-lo no Pico.

Quando o grupo realiza as caminhadas históricas, o ator e produtor cultural Breno Andreta, 22, gosta de misturar o conhecimento que vem da ancestralidade, por meio dos relatos das mães e avós do grupo, com o alerta do passado escravocrata das pessoas que moravam nos casarões antigos.

“São essas histórias que a gente dá preferência ao contar, eu acho que isso é muito importante na criação da narrativa que é essa caminhada”

Breno Andreta

Muitas dessas histórias que eles escutam dos moradores também deram origem a um “mapa afetivo”, em que os moradores compartilham memórias do bairro. Cada ponto no mapa sinaliza uma história do passado.

“Tinha uma pessoa que falava que em Taipas rolavam muitos bailes. Tem uma memória de um clube de bocha que existia com muitos senhorzinhos, ali próximo à estação. Esse clube não existe mais, mas existe a memória dele sim”.

Um país chamado Grajaú

A proposta do “mapa afetivo” também está presente no projeto “Um País Chamado Grajaú”, desenvolvido por professores e alunos da escola municipal Padre José Pegoraro, no Grajaú, bairro mais populoso da capital situado na zona sul.

O projeto propõe a pesquisa do território e a apropriação da cartografia local, características que, segundo a professora Lucidalva de Azevedo Ribeiro Gonçalves, 38, são características que já estão presentes no dia a dia da escola.

“A escola tem essa referência de ser uma escola de projetos e estar envolvida com a comunidade. O território está presente o tempo todo”, conta Lucidalva, que dá aula de Ensino de Arte nesta escola há 12 anos.

Além dela, oito professores estão envolvidos no projeto – que foi premiado em 2019 pelo Instituto Tomie Ohtake -, além de cerca de 70 alunos do nono ano do ensino fundamental.

Divididos em cinco frentes (assistência social, educação, meio ambiente, saúde, e arte e cultura), esses alunos tiveram a oportunidade de conhecer os espaços culturais e equipamentos públicos da região e conhecer mais sobre a história do bairro.

“O nosso espanto é que eles não conheciam os espaços da comunidade, de arte, de lazer, onde ficava uma UBS, onde eles podiam procurar serviços. É um mapa afetivo, mas a gente brinca que fizemos um guia turístico do Grajaú”.

O mapa conta com espaços para praticar esportes, serviços, lazer entre outras instituições.

Junto com o mapa afetivo, o site do “Um País Chamado Grajaú” conta também com um vídeo apresentando uma linha do tempo do distrito, puxando desde 1827, quando imigrantes alemães começaram a se instalar na região, até o desenvolvimento do polo industrial de Santo Amaro, na década de 1980.

A etapa seguinte do projeto, para 2020, seria definir qual o aniversário do Grajaú, com base em uma pesquisa sobre o imóvel mais antigo da região.

Um país chamado Grajaú foi realizado por estudantes

O professor Carlos Amorim, de Geografia, é o responsável por essa parte do trabalho: “é uma pesquisa de documentos mesmo, de pesquisar imóveis, ir até espaços e lugares muito diferentes do quais estamos acostumados. Nenhuma escola costuma visitar cartórios de imóveis”, conta Lucidalva.

Apesar de querer chegar a essa conclusão junto com os alunos, a professora tem uma previsão de qual pode ser o imóvel: “provavelmente é a igreja da Ilha do Bororé”.

A Capela de São Sebastião, presente na península, data de 1904 e é um patrimônio tombado pelo Compresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).

Por conta da pandemia de Covid-19, os professores e alunos da Padre José Pegoraro tiveram que se dedicar a outro projeto, que não envolvesse encontros presenciais. Foi assim que surgiu o “Padrecast”, um podcast que também tem o território como tema.

“O Um País Chamado Grajaú nasceu pra ficar na rua, isso é uma certeza que nós temos, que a gente não quer tocar o projeto, do jeito como ele nasceu, no meio remoto. Com certeza o Padrecast vai continuar, mas a nossa vontade é voltar para a rua com os nossos estudantes, é continuar essa pesquisa e alimentando nosso site”, afirma Lucidalva.

Próxima Parada

Outras histórias das periferias

Pedimos aos entrevistados para sugerir outros coletivos que também investigam e divulgam a história dos bairros periféricos da capital, veja abaixo as dicas que eles deram:

PARA SABER MAIS:

1

Bloco do Beco (Jardim São Luís)

Além de um bloco de carnaval, o Bloco do Beco também é uma associação cultural que tem o objetivo de preservar os patrimônios imaterais da comunidade localizada na zona sul de São Paulo.

2

Centro de Memória das Lutas Populares Ana Dias (Jardim Ângela)

Coletivo promove o resgate das histórias de vida e luta das moradoras e moradores das periferias da zona sul de SP. 

3

Centro de Memórias Queixadas (Perus)

Trabalha em prol da recuperação e preservação de memórias relacionadas à Fábrica de Cimento Portland Perus e ao bairro de Perus. 

4

Coletivo Salve Kebrada (Taipas/Jaraguá)

Coletivo cultural com a missão de contar sua própria história, valorizando expressões artísticas e culturais do território na zona noroeste de São Paulo.

5

Grupo Ururay (Penha)

Coletivo que atua na zona leste de São Paulo, ligado a memória, história e patrimônios culturais.

6

Quilombaque (Perus)

Movimento político étnico cultural com 15 anos de atuação na zona noroeste de São Paulo.