Marcelo Casal Jr./Agência Brasil
Por: Jacqueline Maria da Silva
Edição: Sarah Fernandes
Publicado em 05.08.2024 | 15:03 | Alterado em 23.08.2024| 15:18
Quem viveu a transição de moeda nas periferias conta os prós e contras e analisa como o Real interfere na vida dos jovens até hoje
Tempo de leitura: 4 min(s)Era final de 1993 quando a confeiteira Jacy Firmina de Siqueira, 70, ouviu no rádio uma notícia que despertou preocupação: uma moeda entraria em circulação no país, o Real, a quarta em apenas cinco anos. “Foram tantas e nenhuma deu certo, porque essa daria?”, pensou.
A mudança de moeda era uma das etapas do Plano Real, implantado pelo ex-presidente Itamar Franco, para estabilizar a economia do país, que na época era marcada por uma hiperinflação na casa dos três dígitos ao ano. Isso fazia com que os preços dos produtos aumentassem muito em questão de horas. Não havia possibilidade de fazer uma poupança, economizar para comprar algo importante ou sequer prever quanto seria a conta do mercado.
Foram seis meses de adaptação para os milhões de brasileiros que viveram a mudança, incluindo Jacy, moradora do Sítio Paredão, em Ferraz de Vasconcelos, na região metropolitana de São Paulo. Eram novas notas, novos valores e uma maneira diferente de planejar as despesas da casa.
Quase 30 anos depois, o temor de Jacy foi substituído pelo alívio de ir ao mercado sem tantas surpresas. “[A primeira coisa impactante] foi o congelamento dos preços no primeiro dia. A gente ficou pensando ‘nossa, não vai subir?’ Às vezes de manhã era um preço e a tarde outro”, diz, lembrando que o salário não acompanhava a oscilação diária dos preços.
Mas todo remédio tem efeitos colaterais. Ao mesmo tempo em que a economia se estabilizou, houve a diminuição de investimentos em políticas públicas, um gasto público elevado para manter a paridade da moeda com o dólar, a diminuição do patrimônio público e gastos elevados com a manutenção do funcionalismo público. A disparidade de renda não reduziu e o Brasil continuou sendo um país marcado pela extrema desigualdade social.
O Plano Real foi um programa econômico para estabilizar a economia e conter a hiperinflação, implantado gradualmente em três fases:
AJUSTE FISCAL EMEGENCIAL
Com a criação de um fundo para aumentar arrecadação, cortar de gastos públicos e flexibilizar o orçamento
ADOÇÃO DA URV (UNIDADE REAL DE VALOR)
Diariamente o Banco Central fazia a conversão da unidade de real para cruzeiro real, como uma forma de adaptação para a nova moeda
IMPLANTAÇÃO DO REAL
Em 1º de julho de 1994, a nova moeda entrou em circulação.
Fonte: Banco Central do Brasil
Não eram só os consumidores que precisavam fazer malabarismos para fechar as contas. Do outro lado do balcão a correria também era grande. “Era uma coisa absurda. A gente precificava [os produtos], mas tinha que mudar o valor no mesmo dia”, conta o comerciante Jaime Gomes Pereira, 61, da Vila Joaniza em Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo.
Na mesma época em que Jacy sentia os efeitos da transição da moeda, ele assumia a padaria JPF Pães, fundada pelo pai e hoje com 58 anos de atividade. Antes disso, a família foi obrigada a vender duas outras padarias, no Capão Redondo e Jardim Santo Antônio, ambos na zona sul de São Paulo, devido à crise econômica.
A implementação do Plano Real, porém, foi sentida de forma diferente por Jaime e Jacy. Para ela já era possível repor a dispensa semanalmente sem gastar todo o dinheiro que recebia como empregada doméstica. O número de itens na cesta básica aumentou e a carne passou a ser frequente na mesa. Era um aumento do poder de compra que permitiu, anos depois, reformar e mobiliar a casa.
“Antes não conseguia ter muita coisa. Comprei um videogame para os meus filhos e tive que devolver porque eu não tinha o dinheiro para pagar. Com o Real a gente pôde comprar a prestação e ter cartão de crédito”.
Jacy, confeiteira
Já para Jaime, o Real trouxe estabilidade no primeiro momento, mas anos depois, impactou os pequenos comerciantes de periferia, sobretudo pela diminuição na circulação da moeda em espécie“. Precisávamos de dinheiro vivo para dar troco, fazer compras e usar no caixa, mas o dinheiro sumiu. Em papel agora é só o comprovante de maquininha de cartão”.
O economista Cleberson Pereira da Silva, 41, integrante do Centro de Estudos Periféricos, era um adolescente de Parelheiros, zona sul da capital, quando o Plano Real foi implantado. Ele vivenciou as mudanças da nova moeda na pele e na sua família.
A Agência Mural fez a ele uma série de perguntas sobre as medidas econômicas implantadas e os efeitos da estabilização da economia e organizou as informações:
A partir da década de 1980, o Brasil viveu um profundo desejo de mudanças na política e na economia, haja vista o movimento das Diretas Já, pelo fim da ditadura e por eleições livres e diretas. Parte da classe política passou a absorver ideais neoliberais disseminados por Ronald Reagan, ex-presidente dos EUA, e Margareth Thatcher, primeira ministra do Reino Unido.
Algumas dessas medidas foram: abertura da economia, privatização de empresas públicas e corte ou congelamento de políticas sociais. A população sonhava com bem-estar social, mas o país tinha uma enorme dívida pública deixada pelos governos militares e sofria com desemprego, instabilidade econômica, carestia dos produtos, violência e empobrecimento da população.
A inflação alta corroía o poder de compra dos trabalhadores e a abertura econômica fragilizou a produção nacional. A indústria não suportou a competitividade com produtos importados e, com isso, o país passou por um processo de desindustrialização e desemprego
A hiperinflação prejudicou a todos, mas em maior proporção os trabalhadores assalariados, porque os que tinham mais posses conseguiram dinamizar investimentos e proteger seu patrimônio. Já para os mais pobres, o salário perdia rapidamente o valor: quando chegava no fim do mês, o poder de compra tinha caído. Isso acentuou o empobrecimento da população.
Um dos motivos para hiperinflação, retratado em charges da época como um dragão, eram os gastos que tinham sido feitos na época da ditadura militar (1964-1985), com alto custo do funcionalismo público e grandes obras, como hidrelétricas, rodovias e usinas nucleares. Isso gerou um grande endividamento público e aumentou a inflação.
No pós-ditadura, quando o Brasil retornou ao sistema democrático, existia a possibilidade de uma nova organização política e o desejo de organizar as contas públicas. O documento que retrata a busca por esse consenso da sociedade é a Constituição de 1988.
Uma das estratégias bem sucedidas do Plano Real foi a criação de moeda de transição, que previa a conversão do Cruzeiro Real para URV. Um URV valia um Real e um Real valia um dólar. Isso deu certa segurança para as pessoas e valorizou a nova moeda. “Moeda representa a riqueza do país. Então quanto mais forte é a moeda, mais a economia do país é forte”, diz o economista Cleberson.
Porém, o controle real da hiperinflação só veio com o tripé Reponsabilidade Fiscal, Câmbio Flutuante e as metas de inflação.
O Plano Real trouxe a estabilidade dos preços. Os trabalhadores sabiam quanto valia o salário e o que poderiam comprar com ele. Também possibilitou a entrada de novos produtos no Brasil e os comerciantes puderam melhorar a qualidade dos produtos que vendiam e não mais praticar o ágio, prática de cobrar acima do valor estipulado.
Além disso, permitiu o acesso a produtos que até então se consumia com menor frequência, como iogurte, biscoito recheado e carnes. Isso porque, os produtos eram muito caros e a compra mensal precisava aguentar o mês inteiro. Hoje, as famílias não têm mais necessidade de estocar alimentos.
Apesar do mercado de trabalho pouco favorável e do desemprego entre jovens, a moeda trouxe estabilidade para planejar a vida.
Hoje é possível pensar em entrar na faculdade, planejar uma viagem, abrir ou ampliar um negócio e fazer um financiamento, o que antes era muito difícil por conta das taxas altas. Houve também a ampliação de bancos, a oferta de crédito e possibilidade de investimentos.
Na opinião do especialista, não. Isso porque o país poderia voltar a um cenário de escassez, imprevisibilidade e carestia, o que reduz o acesso a alimentação de qualidade, moradia e transporte.
Cleberson também aponta que o Plano Real foi um divisor de águas na democracia do Brasil, pois contribuiu para o melhor controle social e transparência nas contas públicas, permitindo a criação de mecanismos como a Lei Responsabilidade Fiscal e a Lei Diretrizes Orçamentárias.
Em contrapartida, o especialista reforça que hoje grande parte dos recursos públicos brasileiros são usados para saldar a dívida pública e isso aumenta as taxas de juros e recai no bolso da população.
“A gente tem esse medo da inflação voltar, porque ela prejudica muito o consumo da família, mas ao mesmo tempo taxas de juros tão altas dificultam o financiamento de um bem, porque às vezes você acaba pagando duas vezes o valor dele em juros. Então não dá para pensar em um Brasil sem o Real, mas sim em um Real que melhore a qualidade de vida das pessoas”, acrescenta.
Se a estabilização da economia facilitou o acesso a bancos e ao crédito, ela também aumentou o endividamento da população e dos pequenos comércios. O PIB (Produto Interno Bruto) não seguiu um ritmo constante de crescimento e o investimento em políticas públicas também não aumentou na proporção devida. Tudo isso impediu que o Brasil conseguisse reduzir a desigualdade social, como resume o economista Cleberson.
“Se o Real trouxe impactos positivos na economia, a população precisou pagar um preço alto, já que para manter a estabilidade da inflação foi preciso um regime de austeridade fiscal na década de 1990”
Como a dívida pública não foi paga, governos optaram por cortar gastos para manter o equilíbrio fiscal e diminuíram os investimentos em áreas importantes para a população, como saúde, educação, cultura e esporte.
“Você vai em um hospital e fica 8 horas [esperando] para passar no médico. Tinha que ter uma melhoria”, reivindica a confeiteira Jacy.
Por outro lado, a estabilização da economia beneficiou diretamente os mais ricos, que conseguiram ter acesso facilitado a financiamentos e a bens de consumo. Já os mais pobres acabaram mais taxados por impostos e com menos acesso a serviços públicos e de qualidade.
“Eu ando lado a lado com a falência. O pequeno comerciante da periferia tá sendo muito sacrificado, cada ano temos que pagar mais impostos, licenças e taxas”, reclama o comerciante Jaime.
O caminho para virar esse jogo, segundo Cleberson, é investir na qualificação da mão de obra e estimular a indústria, a tecnologia e a educação, além de rever as metas fiscais para que o dinheiro público não seja direcionado apenas para pagamento de dívidas, mas para melhoria na qualidade das pessoas.
“A reforma tributária pode ajudar gerando mais equilíbrio na sociedade, cobrando mais impostos de quem ganha mais e construindo a justiça social que sonhamos”, completa o economista.
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World
Repórter da Agência Mural desde 2023 e da rede Report For The World, programa desenvolvido pela The GroundTruth Project. Vencedora de prêmios de jornalismo como MOL, SEBRAE, SIP. Gosta de falar sobre temas diversos e acredita do jornalismo como ferramenta para tornar o planeta melhor.
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