No Capão Redondo, zona sul de São Paulo, a supervisora administrativa Elza* foi chamada junto com os colegas para uma reunião em 20 de março. No encontro, foram avisados que, por conta da pandemia, ficariam em quarentena por duas semanas, com algumas pessoas em regime de home office.
Na semana seguinte, a empresa rescindiu alguns contratos de trabalho, deu férias para outros e, no caso dela, ficou de home office, com horário normal, das 8 às 18h, e com redução de 50% no salário. “O restante do valor, a empresa vai pagar quando passar a epidemia e voltar a faturar. Isso ainda vai ser parcelado”, comenta Elza.
Elza ressalta que as mudanças não foram negociadas, mas impostas aos funcionários. “Foi determinado que seria assim. Não sei se é injusto, mas acho que o trabalhador é o elo mais fraco, pois dependemos do patrão”, acrescenta. “Ainda mais quando o próprio governo abre essa possibilidade, aí que o empresário vai fazer mesmo, né?”.
Apesar da desconfiança, ela diz que cumprirá as determinações, sem questionar, já que depende do emprego, onde trabalha desde 2010.
De acordo com Marcelo Melek, professor da Escola de Direito e Ciências Sociais da Universidade Positivo, as mudanças no salário de Elza são inconstitucionais. “Não ‘tem depende aqui’. Não pode o empregador, mesmo com acordo, individual ou coletivo, reduzir salário e manter carga horária de trabalho, e nem parcelamento de salário”.
Nesta situação, a empresa pode ser multada, de acordo com artigos na legislação trabalhista, além das convenções coletivas das categorias pelo não cumprimeiro integral do salário. O empregado pode, inclusive, fazer denúncia ao sindicato ou ao Ministério Público do Trabalho.
MUDANÇAS APÓS A PANDEMIA
A situação vivida por Elza foi um dos efeitos do período que o país vive, com mudanças na legislação por conta da pandemia do novo coronavírus.
O feriado de 1º de Maio, que marca a luta dos trabalhadores por mais direitos, em 2020 chega em um momento de dificuldade em todo mundo.
O Brasil chegou a quase 13 milhões de desempregados, no último levantamento do IBGE. Com a redução do ritmo econômico, o governo federal trouxe propostas que alteram legislações sobre banco de horas, home office, férias, jornada de trabalho, remuneração, feriados e FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço).
A justificativa é tentar evitar as demissões durante a calamidade pública. Com o avanço da pandemia, foram implantadas medidas de isolamento social para evitar o avanço mais rápido da doença, que já matou 5.900 pessoas no Brasil – só na Grande São Paulo, o número beira os 2.000.
A principal mudança até aqui foi a Medida Provisória 936 que permite reduções de 25%, 50% ou 70% nos salários. O restante das remunerações devem ser compensados pelo governo ao trabalhador com o pagamento da parcela de seguro-desemprego, direito que o funcionário teria direito caso fosse demitido.
Quando a redução da jornada e do salário for de 25%, independente da faixa salarial, a negociação pode ser individual, apenas entre o trabalhador e o empregador. No caso de cortes em 50% ou 70%, um acordo coletivo deve ser firmado com participação do sindicato da categoria, determina a MP.
A exceção à essa última regra são os empregados que ganham até três salários mínimos (R$ 3.135) ou os que têm diploma de nível superior e remuneração mensal acima de R$ 12.202,12.
Também foi aberta a possibilidade de suspensão dos contratos para evitar demissões durante o período de calamidade pública causado pela Covid-19. Mais de 2 milhões trabalhadores no Brasil já estão nesse regime
Nesse formato, o governo se torna o responsável pelo pagamento integral do seguro-desemprego aos trabalhadores de empresas que faturem até R$ 4,8 milhões no ano. As empresas com faturamento acima dessa quantia devem se responsabilizar por 30% do salário, enquanto o governo paga outra parte dentro dos limites pagos nas parcelas de seguro-desemprego.
“As novas regras priorizam o acordo individual, feito entre empregado e o empregador. Isso deixa o empregado em uma situação vulnerável, considerando que se o empregador impor alguma medida, empregado acabará aceitando para manter o emprego”, explica o professor de Direito na Universidade Positivo.
Apesar disso, o receio de ficar sem trabalho segue nos moradores das periferias. Também ficou mais claro o quanto o trabalho informal escondia a realidade do desemprego.
SUSPENSÃO E DESEMPREGO
Regina*, 55, mora em Carapicuíba, na Grande São Paulo, e trabalha como piloteira em uma empresa que desenvolve peças para a indústria. Trabalhadora de carteira assinada, ela foi uma das funcionárias que tiveram a suspensão temporária no contrato de trabalho.
Enquanto durar a suspensão, os funcionários não podem fazer qualquer atividade para a empresa. Se houver algum tipo de trabalho, o empregador deverá remunerar, além de sofrer penalidades previstas na legislação trabalhista, como multas, a depender do caso.
Outra determinação da lei é que o tempo de suspensão garante estabilidade pelo mesmo período. Por exemplo, se o contrato foi suspenso por três meses, a pessoa não pode ser demitida nos próximos 90 dias.
Apesar de comunicada sobre como ficaria a situação de trabalho nos próximos dois meses, Regina não foi orientada sobre as datas de recebimento do benefício que substituirá o salário durante o período. “A empresa disse que não sabia, e assim que soubesse me diria”.
Sem salário e sem direito ao auxílio emergencial, outra preocupação da piloteira é a renda doméstica. “As contas não param”. Para Regina, a escolha da empresa soou como um alívio. “No meu caso, acho que foi a melhor opção, pois a outra seria o desemprego”, resume.
Quem perdeu o emprego foi a analista financeira Cristiane Fagundes da Silva, 39, que trabalhava na área financeira de um mercado na Vila Remo, região do Jardim Angela, na zona sul de São Paulo. “A última coisa que me passava na cabeça era ser demitida”, conta, pelo fato da empresa seguir em funcionamento.
Ela tem um filho e o marido segue no trabalho, pois atua na área da saúde. Apesar da pandemia, ela conta que tem enviado currículos para os sites que divulgam vagas de emprego. “As empresas de fato estão com medo de contratar porque é tudo muito incerto. Até então, [dia 1º] seria o fim da quarentena e agora vai ser ampliado”.
“Tenho amigos que reduziram salário, junto reduz também a carga de horário, mas querendo ou não, reduzindo 20 a 30% do salários faz uma diferença gigante”.
PRECARIZAÇÃO DOS EMPREGOS
Para Melek, as determinações do governo visam diminuir os impactos e situações laborais fruto da pandemia, mas chegaram no mercado de forma confusa, e tardia. “Uma das principais críticas é o descompasso entre empresas e governos”, comenta.
Em sua avaliação, as pequenas empresas do comércio foram as maiores vítimas na lentidão de pensar os planos de apoio emergencial, pois a maior parte delas não possui capital de giro [o dinheiro necessário para bancar o funcionamento da empresa] e nem estrutura para se manter sem movimentação diária. A consequência disso foram demissões no setor.
Melek cita que as definições de banco de horas e férias garantiram aos trabalhadores direitos, enquanto as empresas conseguissem adiantar, algo que foi positivo. Por outro lado, o professor aponta que outras desprotegem de forma escancarada o trabalhador, como o teletrabalho.
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Na avaliação de Luiz Carlos Prates, o Mancha, da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas, a flexibilidade das leis trabalhistas neste momento é um ‘forte ataque aos trabalhadores, e serve apenas para que os patrões aumentem a exploração’.“As medidas tomadas têm o objetivo de aliviar as grandes empresas”, critica.
Ele afirma que o rebaixamento dos salários e medidas emergenciais, como a concessão de R$ 600 a trabalhadores informais estão abaixo do ideal. Para ele, a prioridade deveria ser a garantia dos empregos, e de uma renda básica. Muitos moradores têm tido dificuldades para acessar o aplicativo do Caixa Tem ou enfrentaram longas filas sem conseguir o benefício.
Melek e Mancha concordam que o melhor lugar para o trabalhador se informar sobre direitos neste momento de pandemia são os sindicatos. “É por lá que haverá orientações sobre a categoria, a maior fonte de informação”, pontua Melek.
“Agora, os sindicatos têm papel fundamental, tanto que na decisão do ministro Ricardo Lewandowski, do STF (Supremo Tribunal Federal) [em 16 de abril] indica a necessidade do aval de sindicatos para acordos entre patrões e funcionários na suspensão de contratos ou redução de salários e jornadas”, completa.
MEDO DE SAIR
Carla* está desde o mês passado em home-office e não houve mudanças quanto a salário e direitos por enquanto na empresa em que atua. O receio, contudo, é outro. A necessidade de voltar a sair de casa – atualmente um dos riscos que os trabalhadores têm sido colocados.
Profissional de TI (Tecnologia da Informação), ela conta que a empresa em Osasco, na Grande São Paulo, solicitou que voltasse a fazer escalas presenciais.
“Não dá segurança, mesmo que o pessoal esteja afastado, é um ambiente fechado, ar condicionado, não sabe se todo mundo se cuida”, conta. “Está perigoso e o pessoal está se cuidando muito pouco”.
*A pedido das entrevistadas, os nomes verdadeiros foram alterados na escrita da reportagem.