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Mãe, nossa frequência infelizmente mudou, mas seguimos sintonizadas

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Por Redação | 14.05.2017

Publicado em 14.05.2017 | 11:59 | Alterado em 31.01.2023 | 15:56

Tempo de leitura: 4 min(s)

“Ela me fez enxergar que não é uma geografia na cidade, uma condição social, que vai nos limitar, nos frear”

Arte: Vagner de Alencar/Agência Mural

Tchau mãe!

Tchau minha filha, vai com Deus! Tomou a água benzida antes de sair?

Que Maria te acompanhe!

O copo com água ficava posicionado à frente do aparelho de rádio já velhinho, em cima do armário da cozinha. Todas as manhãs minha mãe o colocava ali e pedia com fé o bem-estar de toda a família. Durante minha infância e boa parte da adolescência presenciei diariamente essa cena; no mesmo horário, já que a emissora não atrasava a transmissão do “momento da oração”.

Geralmente, ficávamos nós duas em casa — meu pai saía muito cedo para trabalhar e retornava só à noite. Apesar disso, o ambiente parecia cheio. As vozes de locutores e jornalistas estavam sempre por lá, preenchendo o ambiente, fazendo parte da nossa rotina.

Ela preferia as estações AM, pelas quais escutava suas músicas e acompanhava notícias, mas também se sentia mais próxima dos locutores e locutoras. Durante as manhãs, caminhava apressada entre a cozinha e a lavanderia, atenta ao feijão fervendo na panela e às roupas de molho no tanque ou na máquina de lavar, sempre “de ouvidos” às informações transmitidas do aparelho antigo. A hora do almoço era a mais divertida. Almoçávamos as três: eu, ela e a voz sintonizada do outro lado.

Quando eu não estava por perto, tratava de me contar posteriormente alguma informação que considerou relevante. “Thaís, você sabia que tanto faz falar tropeçar ou tropicar? As duas formas estão certas. Ouvi no programa hoje à tarde”, informava satisfeita.

O aparelhinho com um botão laranja enorme de “liga e desliga” esteve conosco em momentos históricos, como o 11 de setembro de 2001, atentado às “Torres Gêmeas” nos Estados Unidos. Acompanhamos as notícias concentradas, ouvindo minuto a minuto, impressionadas com as informações dos correspondentes que traziam novidades de terras tão distantes.

Guardo com carinho tudo que essa relação “a três” me ensinou. Minha mãe tinha o rádio como principal meio de informação e gostava muito de acompanhar os programas de defesa ao consumidor. Quando tinha qualquer problema com prestadores de serviços logo esclarecia “eu sei dos meus direitos, viu?!” E quando a situação ficava bem séria, ameaçava “eu vou denunciar na rádio. Isso não pode ficar assim, é um desrespeito!”.

Eu cresci a observando ser “correria”, a lutar para garantir seus — e os nossos — direitos da maneira como conseguia. Ela sempre me dizia que não podíamos afrouxar, porque “eles acham que a gente é boba, que a gente não sabe, e se aproveitam, mas isso não é verdade”. Ficava toda feliz quando alguma solicitação que fazia à profissional que cuidava dos casos de defesa ao consumidor era atendida.

Dona Cida segurando a muralista Thaís Santana, de Anhanguera — Foto: Arquivo Pessoal

A primeira vez em que pisei em um estúdio de rádio ela estava comigo. Eu tinha 9 anos, fomos até a Rádio Capital. O caminho de casa, no KM 24.5 da Rodovia Anhanguera, até próximo à Avenida Paulista, na região central de São Paulo, durou mais de uma hora. Percorremos, de ônibus, alguns quilômetros para que minha mãe pudesse conversar pessoalmente com a jornalista que a estava auxiliando em uma ocorrência de mau atendimento e negligência por parte do convênio médico.

Eu pedi para ver de perto uma das apresentadoras que ouvia diariamente e me deixaram entrar no estúdio de gravação. Dei um tchauzinho pelo vidro, recebi o aceno de volta. Saí toda feliz e, como eu estava contente, minha mãe também vibrou.

E um dia, de tanto ameaçar, ela falou mesmo na emissora de rádio. “Thaís, a jornalista disse que minha voz vai ‘aparecer’ no programa hoje. Vou falar sobre o problema com o nosso telefone”, contou orgulhosa. E assim foi, a voz dela apareceu denunciando o abuso por parte da empresa de telefonia. Do outro lado ficamos satisfeitas, escutando atentamente.

Deve ser por essa paixão nutrida pela informação que ela ficou tão emocionada ao me ver de beca, pronta para minha colação de grau em jornalismo, em janeiro de 2014. A partir daquele momento, a jornalista não estaria mais distante, não seria somente a voz sintonizada à mesma frequência do outro lado do aparelho, mas sim alguém da família. Alguém ali, tão próximo e real. O radinho desde cedo me inspirou, despertou em mim a vontade de descobrir e contar histórias por aí. Pouco a pouco, fui percorrendo esse trajeto e transformando o que, até então, era imaginação em algo palpável.

Neste mês de maio, faz 1 ano e sete meses que não escuto a voz, que não ouço um “Vai com Deus, minha filha” da minha mãe, a Dona Cida, ou Josefa Aparecida Pascoalino Santana. Então, hoje, agradeço por tudo que me ensinou nesses anos todos, agradeço pelo quanto me mostrou que na vida é preciso ser “firmeza permanente” e não esmorecer frente aos obstáculos. Pelas vezes que me fez enxergar que não é uma geografia na cidade, uma condição social, que vai nos limitar, nos frear.

Admiro sua história, todos os seus “corres” e tenho enorme gratidão e carinho por tudo. Fico aqui, tentando ao menos ser uma parte de tudo que você foi e me ensinou a ser. Feliz Dia das Mães! Que, onde quer que esteja, você receba todo amor que sintonizo daqui.

Thaís Santana é correspondente de Anhanguera

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