Maristela Mafei/Arquivo Público do Estado de São Paulo/Memorial da Resistência
Por: Cleberson Santos
Notícia
Publicado em 28.03.2024 | 18:56 | Alterado em 29.03.2024 | 9:05
Uma das histórias mais conhecidas sobre a atuação da ditadura militar nas periferias de São Paulo é a vala comum do Cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona noroeste da capital. 1.049 ossadas foram encontradas lá no ano de 1990 e muitos desses corpos permanecem sem identificação até hoje.
Contudo, uma pesquisa pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade, publicado em dezembro de 2014, mostra que a presença dos militares nos bairros foi muito mais ampla. Ele indica o uso de outros cemitérios para enterrar perseguidos como indigentes, e de delegacias e até casas clandestinas como lugares de torturas.
O relatório da Comissão da Verdade é dividido em três volumes e possui um total de 3.388 páginas. O documento detalha a estrutura e os métodos dos militares, a história dos mortos e desaparecidos, mas também a resistência da sociedade civil no período. No domingo (31), o golpe militar completa 60 anos.
Um dos cemitérios usados para “enterrar presos políticos mortos até o ano de 1971” foi o da Vila Formosa, na zona leste. Ele foi utilizado pelos militares antes da inauguração do Dom Bosco, em Perus: “Ao menos 11 vítimas de desaparecimento foram enterradas como indigentes no Cemitério de Vila Formosa entre 1969 e 1970”, afirma o relatório.
“Ainda em São Paulo, o Cemitério Campo Grande [zona sul] foi também usado, em menor escala, para a ocultação de corpos de militantes […] Suspeita-se que outro cemitério, de Parelheiros [também na zona sul], também tenha sido usado para ocultar corpos. Lá foi descoberto poço que abrigaria ossário clandestino, com restos mortais não identificados”, indica o documento em outro trecho.
Em depoimento à CPI da Comissão da Verdade, o ex-diretor do Departamento de Cemitérios do Município de São Paulo Fábio Pereira Bueno explicou que a “certeza da impunidade e o tratamento usual de desrespeito dado aos corpos de pessoas pobres na cidade” foram fatores que fizeram os militares adotarem o cemitério de Perus como principal local para ocultação de cadáveres na cidade.
“Não sabemos o que foi mais bárbaro: transformar oponentes do regime em indigentes ou tripudiar ainda mais a indigência para dar fim aos corpos de oponentes do regime”, afirmou.
Quando pensa-se nos lugares usados para a tortura de perseguidos políticos, automaticamente surge à mente o DOI/CODI (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), que funcionava na Rua Tutoia, na região do Paraíso. Foi ali que foi morto Vladimir Herzog, então diretor de jornalismo da TV Cultura, em 1975.
Contudo, vários outros espaços (oficiais ou não) também serviram para reprimir quem tentava resistir aos militares. É o caso do 41º Distrito Policial, na Vila Rica, distrito de Aricanduva.
O relatório da Comissão da Verdade cita que a delegacia foi um dos lugares usados para torturar Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN). Ele foi preso no Rio de Janeiro em agosto de 1970 e passou por 109 dias de tortura em diversas instalações entre Rio e São Paulo, incluindo a 41ª DP.
Outro lugar citado é o Presídio do Barro Branco, que fica na região da Vila Albertina, na zona norte. O espaço foi criado para recolher policiais militares que cometeram crimes, mas passou a receber também presos políticos.
Em 1975, um documento assinado por 35 reclusos denunciaram à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) as práticas de tortura que eram realizadas no local, além do nome de 233 torturadores que atuavam ali.
Além dos espaços institucionais que foram usados para tortura, chama a atenção também os espaços clandestinos, como a Casa de Itapevi, que ficava em uma estrada que liga Itapevi a Barueri, na Grande São Paulo.
De acordo com o relatório da Comissão, o local é apontado “como centro clandestino utilizado pelo DOI-CODI do II Exército e o CIE para tortura e execução dos presos da Operação Radar”.
Havia também a Fazenda 31 de Março, cujo nome fazia referência direta à data do golpe militar. Localizada em Parelheiros, no limite entre São Paulo e Embu Guaçu, o imóvel pertencia ao empresário Joaquim Rodrigues Fagundes, que emprestava o espaço aos militares.
Por conta da “generosidade pelo empréstimo sistemático do imóvel aos órgãos repressores, [Joaquim] foi agraciado com a Medalha do Pacificador” em 1977.
O advogado e ex-deputado Affonso Celso Nogueira Monteiro foi sobrevivente da Fazenda 31 de Março. Ele contou como foi a chegada dele ao local em uma carta escrita em terceira pessoa em 1975 e que está presente no relatório da CNV:
“Chegando ao destino, foi retirado do carro por alguém que, chamando-o pelo nome, disse estar em poder do “braço clandestino da repressão do governo”, do qual ninguém poderia tirá-lo e que havia chegado a sua hora”.
Enquanto o Volume 1 do relatório da Comissão Nacional da Verdade dedica-se a detalhar o funcionamento da repressão institucional, o segundo volume trata de como as violações de direitos humanos aconteciam nas mais diferentes esferas.
O segundo texto deste relatório conta como aconteceu a perseguição aos trabalhadores. Um exemplo encontrado no bloco fala sobre “listas com nomes de trabalhadores demitidos por razões políticas e cuja admissão em outras empresas se queria evitar”, que circulavam entre as áreas de recursos humanos das fábricas.
“No que se refere às prisões ilegais e arbitrárias, ressalte-se que a violência exercida pelo Estado ditatorial atingiu os trabalhadores não apenas individualmente, mas também de forma coletiva ou massiva”, afirma o relatório, citando a prisão de João Chile, que trabalhava em uma fábrica de Guarulhos.
‘Algumas ações visavam aterrorizar e paralisar os trabalhadores, como as prisões dentro das fábricas’
Relatório da Comissão Nacional da Verdade
O texto também cita o depoimento de Lúcio Bellentani, que relata ter sido torturado dentro da fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, em 1972: “estava trabalhando e chegaram dois indivíduos com metralhadora, encostaram nas minhas costas, já me algemaram. Na hora em que cheguei à sala de segurança já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”.
Há também a menção a prisão de 600 trabalhadores numa greve em 1968, no Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Osasco, e um dos casos mais emblemáticos de repressão aos operários, o assassinato de Santo Dias da Silva.
A morte ocorreu em 1979, época em que houve a greve dos metalúrgicos da capital e a ação foi repreendida pelo regime que usou agentes públicos para invadir os Comandos de Greve nas subsedes do sindicato.
“Na zona sul da capital, foram presos quase duas centenas de operários, entre a noite de um domingo e segunda-feira. […] Nessa greve, há registros da prisão de 334 trabalhadores”, cita o texto.
“No segundo dia, foi assassinado, pelo soldado da Polícia Militar Herculano Leonel, na porta da fábrica Sylvania, o líder sindical Santo Dias da Silva”, aponta o relatório.
Santo Dias, morto aos 37 anos, morava na Vila Remo, na região do Jardim Ângela, zona sul. Além de metalúrgico e líder sindical, ele também era membro da pastoral operária. No dia 31 de outubro de 1979, cerca de 30 mil pessoas compareceram ao velório que saiu da Igreja Nossa Senhora da Consolação à Catedral da Sé, no centro da capital.
Além das conhecidas greves, com destaque para a do ABC, que estima-se ter paralisado cerca de 200 mil trabalhadores, outras iniciativas vindas das periferias de São Paulo tiveram como missão resistir à repressão militar. A “resistência da sociedade civil às graves violações de direitos humanos” tem um capítulo à parte no Volume 2 do relatório.
O documento destaca a atuação das associações de amigos de bairros, que “mobilizavam a população na luta por conquistas locais” e o Movimento do Custo de Vida, que recolheu um milhão e meio de assinaturas, “sobretudo dos moradores da periferia paulista que se indignavam com a excludente política econômica dos militares”.
Esses movimentos nas periferias “pressionavam as autoridades” por meio de reuniões, petições, comícios, assembleias, marchas em direção à prefeitura.
“É uma politização do cotidiano dessas pessoas, a partir de uma conscientização da necessidade imanente de se organizar. Várias tarefas eram realizadas coletivamente – os ‘mutirões’ – para melhorar aspectos da comunidade como um todo”, afirma o relatório.
Correspondente do Capão Redondo desde 2019. Do jornalismo esportivo, apesar de não saber chutar uma bola. Ama playlists aleatórias e tenta ser nerd, apesar das visitas aos streamings e livros estarem cada vez mais raras.
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