23 horas. Chegavam as primeiras notícias com os resultados da chuva que durou mais de oito horas na quinta-feira (10). Ruas alagadas e barro escorrendo pelas vielas no breu mostravam as consequências trágicas que, no fundo, já podiam ser esperadas. Mairiporã, na Grande São Paulo, mergulhava em tragédias àquela hora.
A luz oscilava em casa e a rua vizinha foi interditada, após um deslizamento. Não moro em um local distante da região central ou em uma área rural como tantas outras na cidade. Estou quase ao lado da prefeitura e, mesmo assim, me sentia isolado como nunca antes.
Da janela via os morros sem luz, ouvia os bombeiros de longe ao som da chuva que não cessava. Melancolia sonora. Contive as lágrimas, a tensão e passei a acompanhar o noticiário da madrugada. Creio que levado pelo choque ou instinto de noticiar pelas redes sociais o que acontecia na cidade.
A cada hora, um novo deslizamento. A lista de bairros afetados crescia; a de mortos também. Muitos foram os atingidos pelos alagamentos. Um riacho transbordou ao lado da Rodovia Fernão Dias e inundou um pequeno bairro chamado Votorantim. Na Rua Imirim, moradores perderam tudo.
Ninguém esperava por isso. De 20, 40 ou 60 anos, a fala dos moradores era a mesma. Nunca havíamos passado por nada parecido.
DESASTRE ATINGE TODA A REGIÃO
A essa altura, o caos já se espalhava por Caieiras, Franco da Rocha e Francisco Morato, cidades vizinhas também da Grande São Paulo, onde vivem amigos e familiares. Um dia fomos uma só cidade chamada Juquery, ainda fazemos parte do vale formado pelo rio que leva esse mesmo nome.
Com o amanhecer, a grande mídia dava uma nova dimensão ao desastre, saíamos do boca a boca para conferir imagens desoladoras da região.
Durante a madrugada, a barragem da represa de Mairiporã (Paulo de Paiva Castro) tinha sido aberta para começar a dar vazão aos mais de 140 mm de chuva que caíram durante a noite.
Franco da Rocha repetia a enchente histórica de 2011. Naquela época acompanhei a limpeza da cidade. Nunca esqueço o que vi por lá e não queria acreditar que estivesse acontecendo novamente. Nessa hora, chorei pela primeira vez.
SOLIDARIEDADE MARCA PÓS TRAGÉDIA
Creio que não é algo que se possa controlar a essa altura dos acontecimentos e precisava disso para enfrentar a cidade lá fora. Fui então para a rua conferir com meus próprios olhos o que meu coração já me dizia.
Pelas ruas de Mairiporã imperava o silêncio, o barro, barrancos caídos, vizinhos que se olhavam sem trocar palavras, muitos estavam sem dormir. Com o passar das horas o silêncio foi se dissolvendo em uma onda de solidariedade envolvente, contagiante.
Mairiporã é uma cidade famosa pelas suas divisões territoriais históricas (Mairiporã, Terra Preta e Serra da Cantareira) e, por um momento, se tornava uma só.
Ao chegar ao local onde foram concentradas as doações acompanhadas de um amigo, ficamos surpresos com o trânsito congestionado de veículos trazendo doações na porta do Ginásio Municipal de Esportes Florêncio Pereira, na Vila Sabesp.
Por lá, soube de histórias como a da pizzaria Cantarar, recém inaugurada na serra, que doou pizzas para os voluntários e posteriormente a do restaurante Velhão, que com o apoio de moradores do Tremembé, zona norte da capital, doou marmitas para os bombeiros durante o resgate de domingo.
Soube até dos atacadistas do bairro do Pari, na região central da capital, que estavam fazendo doações também.
Não estávamos mais sozinhos.
Em uma das salas do ginásio conheci a manicure Maria do Socorro, 47, que organizava roupinhas de bebê. Ela me contou que saiu de casa mesmo sem luz para ajudar com as doações. “A gente vê essas coisas acontecendo em outros locais. Não imaginamos que pudesse acontecer aqui, mas temos que ajudar”.
Assim, como Maria, a professora Kátia Souza, 32, priorizou o trabalho voluntário. Deixou o trabalho em São Paulo para ajudar no ginásio. Moradora de Mairiporã, se dizia preocupada com a situação na cidade vizinha de Francisco Morato. “Trabalhei lá, tenho ex-alunos, pessoas queridas, mas não consigo contato com eles. É desesperador, mas tenho que ajudar aqui, fazer o que for possível”.
Por todo o espaço, ouvi histórias emocionantes, como a da família que estava para se mudar quando foi soterrada, dos desaparecidos, dos que perderam tudo. Ali, todos encontravam um pouco de atenção e cuidado. As crianças corriam atrás da bola sem dimensionar o perigo que passaram.
VÍTIMAS, CARINHO E SIMPLICIDADE
O “misto de carinho e simplicidade”, escrito por Athos Campos na letra do hino de Mairiporã, estava presente em todos os gestos. Não existiam divisões ou brigas pessoais, estavam todos lá por um único ideal. Difícil não se emocionar com tamanha movimentação. Vizinhos, amigos, muitas pessoas que às vezes sequer tem o que oferecer, estavam por lá doando o que fosse possível.
Mais de 70 horas depois do ocorrido, o município de Mairiporã, que decretou estado de emergência e luto oficial de três dias, contabiliza 10 mortos na Rua Primavera, bairro do Parque Náutico. Na região, oito pessoas morreram em deslizamentos em Francisco Morato e uma pessoa morreu em Franco da Rocha, cidade que permaneceu por quase três dias com sua área urbana alagada pela abertura da barragem Paulo de Paiva Castro.
Em Mairiporã são 133 imóveis interditados, nove famílias desabrigadas e 532 pessoas desalojadas. Muitas foram para o ginásio municipal; outras para casa de parentes. Por toda a cidade os problemas são visíveis. Foram mais de mil deslizamentos, segundo a defesa civil. Oitenta trechos de estradas ainda tem interdições, em bairros afastados ainda falta luz e ônibus circulam com dificuldade.
A defesa civil trabalha para convencer a população, ainda em choque, a deixar suas casas.
Humberto Müller, correspondente de Mairiporã
humbertomuller@agenciamural.org.br