A plateia ali pronta pro show parecia fisicamente com o artista e comigo também: meninos e meninas pretos
“Mlk, o seu cabelo tá quase igual o do Rincon, héin!”, essa frase foi dita por um dos meninos que fizeram como eu: feriado da Consciência Negra numa segunda-feira chuvosa aqui na zona leste, mas nem tudo estava perdido, pois às 16h tinha um show do Rincon Sapiência no Sesc Itaquera. Levantei cedo, resolvi algumas coisas, e recebi mensagens de uns amigos que estavam planejando o mesmo rolê. E fechamos 14h na estação de trem em Guaianases — nós e nossa mania de combinar coisas na catraca, né?
Fomos para o show sem a chuva dar trégua. No caminho, pensamos que íamos chegar atrasados e que poderíamos ter nos programado melhor, mas de qualquer maneira a gente ia pro Sesc, com ou sem atraso. Em Itaquera, a perua estacionada estava cheia já, mas entramos mesmo assim, afinal de contas, não dá pra contar com transporte público funcionando bem no feriado. Dentro da perua, com tantos meninos e meninas de blacks, cachos, tênis da moda e portando bilhete-único, percebi que íamos todos pro mesmo lugar. A perua demorou uns 25 minutos até o Sesc. Desceu todo mundo, como eu imaginava.
O show ia ser numa pequena praça de eventos, ao lado da comedoria. De longe e faltando 25 minutos pro show, vimos o lugar com poucas pessoas sentadas no chão e outras em pé. Entre meus amigos, comentamos que o show seria sossegado, com poucas pessoas, e não precisaríamos ficar bem na frente. Mas com o passar daqueles minutos, aquele espaço começou a encher rapidamente. As pessoas chegavam em grupos, com isso fomos bem mais pra frente. Deu o horário marcado e Rincon apareceu na lateral do palco, debaixo de um guarda-chuva, com o cabelo preso com dois elásticos, camisa africana, uma saia estilo tropical nas cores preta, branco e laranja, uma meia listrada de azul e preto, e fechando o visual com um tênis, além de uma calça cinza também. “Tá ali, no estilo”, alguém disse.
Rincon Sapiência se chama Danilo Albert Ambrósio, cresceu na zona leste, na Cohab I no bairro de Artur Alvim, vizinho de onde fica o Sesc, onde havia uma programação especial do mês da consciência negra. O locutor anunciou o show, deu boas vindas a todos. Ali, o rapper junto com sua banda ia cantar seu disco Galanga Livre.
A plateia ali pronta pro show parecia fisicamente com o artista e comigo também: meninos e meninas pretos, portando os tênis e os “kit”, ou como canta o Mc Juninho em ‘Bonde da Oakley’: “Oakley Teeth, Air Strip, Flack Low ou Flack Jack / bermuda, camisa com O estampado na meia o titânio, no pé o Flack Jack, boné da gascan, pulso blade 2, com a lente transition é o Juliet / Romeo 2 x metal, Juliet com a lente ruby, XX de Ecko ou Oakley, muleque zika só anda assim”.
A coisa tava preta. O show começou, eu estava na linha de frente, mas não tanto para não sentir os esbarrões e as encostadas que levei dos meninos que me cercavam pulando a cada batida das músicas. Quando começou a tocar “A coisa tá preta”, comecei a pensar que os meninos que são seguidos dentro das lojas, que sofrem perseguições mais severas da polícia por ‘serem suspeitos’, que são mortos com mais frequência que brancos porque nasceram com a pele escura, os mlks que tem menos oportunidades de estudar, trabalhar, que moram longe, muito longe para conseguir emprego no centro, são aqueles que estavam ali pra cantar “Ei, pela minha raça não tem amor /Lava a boca pra falar da minha cor”.
“Corpo não para de mexer dá até calor” é a frase que pode definir aqueles minutos do show. O dia tava um pouco frio, chovendo, e a gente ali, espremido embaixo de uma barraca com um calor que era físico, mas que também de identificação. Eu tava ali, ao lado de quem mais entende nesta sociedade o que é andar sozinho na rua depois que anoitece, de quem sabe o que é ver uma viatura diminuir a velocidade quando te vê, de quem vê as pessoas desviando de você na rua porque viu seu cabelo, te viu inteiro e não teve confiança de seguir o caminho pela mesma calçada.
Num certo momento, só consegui pensar que debaixo dos caracóis daqueles cabelos tinham muitas histórias tristes para contar, mas também resistência, música e melanina. Do palco, tenho certeza que Rincon sentiu a ‘vibe’ daquela galera reunida ali pra cantar suas músicas e as coisas que sofrem na pele e que não deviam ser mais dessa forma. O músico parecia inspirado e como um professor, puxava os passinhos que todo mundo acabou seguindo. Rincon ainda deu uma aula sobre o escravo Galanga Livre, que conseguiu matar o senhor de engenho, que havia cometido crueldade com ele e com os seus.
Com certeza, se tivessem senhores de engenhos ou capangas ali, eles seriam mortos, mas não com violência, mas pela intensidade daquelas vozes que fizeram ecoar várias coisas que temos vontade de falar no dia a dia para as pessoas, mas acabamos calando, bem diferente daquele show, daquela energia que quanto mais alto era, melhor ficava.
Ver uma multidão bem parecida comigo me fez muito bem hoje. Isso foi coisa de preto. Quero todo dia. “Ei, nóis tem o poder!”, já diria Rincon. Essa é a nossa revolução.
Lucas Veloso é correspondente de Guaianases.
lucasveloso@agenciamural.org.br