Nasci em 98 e durante a minha vida toda morei – e moro – na Favela da Torre, no bairro do Canhema, em Diadema, na Grande São Paulo. Sou cria desse território tanto quanto sou cidadão do mundo, cria de Berlin. Eu me considero um “moleque-ponte”, já que cresci na última rua do município, que faz divisa com São Bernardo do Campo.
Mesmo que eu tenha passado a minha vida inteira em Diadema, uma cidade precarizada, tive acesso a uma educação de melhor qualidade. Tive acesso não somente aos centros culturais, mas também ao transporte público de SBC, a nossa cidade vizinha considerada “prima rica”. Transitar por entre mundos sempre esteve no meu DNA.
Hoje, aos 23, estou consolidando a minha carreira de escritor , mas a minha trajetória não foi uma linha reta, uma ‘escada para o sucesso’ como os gurus da internet gostam de vender. Fui aprendiz na Renner. Limpei privadas em um hotel de luxo na Oscar Freire – foi lá que aprendi inglês. Estudei a minha vida toda em escolas públicas e nunca fui o melhor aluno da turma.
Por que a Alemanha?
Em setembro de 2016 conheci a minha companheira de vida, Jessica Küttner, na Baía de Todos os Santos (estado da Bahia). História de filme que está inspirando meu próximo livro, aliás. E depois que nós nos conhecemos e nos apaixonamos, vivemos cerca de três anos de um relacionamento a distância.
E minha história com a Alemanha foi assim: uma história de amor e ódio.
Amor, porque fui procurar bolsas – de estudo, de trabalho social, de trabalho voluntário, de qualquer coisa – só para estar ao lado da minha companheira.
Os meus dois primeiros anos na Alemanha foram resumidos em: limpar bunda de criança, visitar a minha companheira no final de semana, e doar sangue para ganhar 20€ e conseguir pagar as contas do mês. Nada romântico, né?
Fui aprender alemão na Horst-Koesling-Schule, uma escola que mistura o ensino primário e médio para crianças e adolescentes com as mais variadas singularidades e/ou necessidades especiais. E o que no começo parecia um pesadelo – estar sozinho em uma cidade do interior da Alemanha, e além de aprender a língua ter de trabalhar mais de 40 horas semanais – na verdade se tornou o aprendizado mais belo da minha vida.
Aprendi que não existem pessoas “deficientes”, mas pessoas plurais, com individualidades, desejos, sonhos. E as necessidades especiais, ou dificuldades, são somente mais um aspecto da vida linda que pulsa do peito delas.
Por conta da pandemia, o meu plano de “um ano na Alemanha depois volto para casa” se transformou completamente. Minha bolsa acabaria em agosto de 2020, e acabei ficando.
Aprendi a entender que a Alemanha é tão quebrada – de coração aberto, calorosa e humanista – quanto as tiazinhas que entregam marmitas aqui na Favela da Torre.
Foi assim, aberto a ficar mais um tempo na Alemanha, com medo de voltar para o nosso país no meio da pandemia com um monstro no controle, que eu comecei a procurar possibilidades.
E senti ódio. O ódio pela desigualdade.
Era outubro de 2020. Fazia frio lá fora. Eu estava sentado procurando bolsas de estudo em inglês para continuar estudando na Alemanha. Quase desistindo, cliquei na aba “faculdades privadas” no pesquisador, e foi aí que encontrei o Bard College Berlin. Uma faculdade americana em Berlin que cobra €28.000por ano (!!!) de seus estudantes. Quando eu vi aquilo eu fiquei p*** da vida.
Fiquei me lembrando que meu pai – Antenor Gomes Barros Filho, que descanse em paz – trabalhou mais de vinte anos como segurança de firma para deixar uma “herança” (o FGTS) de R$20.000 para nossa família. Dez mil para mim e dez mil para a minha irmã. Quando eu era moleque achei que estava rico com aquele dinheiro. Uma. Vida. Inteira. Do. Meu. Pai.
E enquanto isso, uma faculdade tinha a pachorra de cobrar de um estudante €28.000 (aproximadamente R$172.000) por ano (!!!). Fiquei revoltado. Com sangue nos olhos lembrando dos meus irmãos que foram ou mortos ou presos, para chegar ali e ver, de novo, um mundo que jamais ia considerar a minha existência. Entretanto…
O amor divino, que às vezes se disfarça em poema, que às vezes se disfarça em teimosia, atentou minha curiosidade. Fui lá e cliquei na página da faculdade. Logo na página inicial havia um título: “70% dos nossos alunos são bolsistas”. E o resto, hoje em dia que posso contar com um sorriso no rosto, se tornou história.
Para além da “sorte”
É claro que hoje em dia eu tenho uns choques culturais pesados. Eu trabalho como entregador de aplicativo para arcar com os custos de vida da faculdade e na minha sala debato em inglês com filhos de embaixadores, de celebridades. Mas é sobre isso. E é pela educação.
Pelo acesso dos “underrepresented” (termo em inglês que representa noiz, de quebrada, os “pouco representados” mesmo sendo a maioria da sociedade) que vamos transformar as estruturas sociais
Sabe por que eu contei toda essa história? A realidade por trás de uma bolsa de estudos que pode facilmente virar manchete, mas em geral são histórias focadas nas vitórias, não nos desafios e nas dificuldades.
Esse texto é de um “realista esperançoso”, como dizia Ariano Suassuna, que enxerga que não é necessário ser um gênio ou uma gênia para alcançar os objetivos e transformar a sua realidade, a realidade da sua família e da sua favela. O que é necessário são oportunidades e trabalho duro quando elas chegam.
E se não der para trabalhar duro porque a cabeça tá zuada, vai dar um descanso. Se cobrar não ajuda em nada também.
Uma bolsa de estudos para nós hoje é o sonho de gerações e gerações de ancestrais. E eu sei que quando eu chego sozinho a favela não venceu, então essa leitura aqui é um convite. Vamos comigo nessa? É #DaQuebradaProMundo.
*Toda mês, um autor ou autora das periferias será convidado ou convidada para escrever neste espaço