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A vida sem um pai para além do dia dos pais

“Demorei muito para entender que tudo era mais difícil por não termos mais o meu pai”, conta Guilherme Silva, correspondente da Agência Mural

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Guilherme Silva/Arquivo Pessoal

Por: Guilherme Silva

Crônica

Publicado em 12.08.2022 | 16:40 | Alterado em 14.08.2022 | 14:36

Tempo de leitura: 3 min(s)

José Silvestre da Silva foi um nordestino nascido em João Câmara, no Rio Grande do Norte, em 1939. Ao longo da vida foi pintor, pedreiro e eletricista certificado. Por volta dos anos 1980, resolveu migrar para São Paulo, deixando uma família inteira para trás para tentar a vida na grande metrópole.

Chegando aqui, passou por alguns bairros até conhecer Edna Maria da Costa e recomeçar a vida na região da Cidade Dutra, zona sul da capital, como porteiro.

Seu Zé, como era conhecido, sempre é lembrado como um homem carismático, educado e muito trabalhador. Quem não o conhecia, se lembra dele por sempre cumprimentar e conversar com todos que encontrava nas ruas com um sorriso no rosto. Seu Zé era meu pai.

Eu e meu pai em uma das poucas fotos que tenho com ele @Guilherme Silva/Arquivo Pessoal

Quando eu tinha 13 anos, meu pai começou a ter uma série de esquecimentos e sofrer algumas quedas na rua por apagões repentinos. Foi aí que ele descobriu que uma pequena pinta no pescoço era, na verdade, um câncer de pele que estava se alastrando pela cabeça.

Os vários choros que compartilhamos são uma das lembranças mais dolorosas que tenho. O tratamento dele foi doloroso e a recuperação lenta e pouco eficaz. Até que em 2010, quando eu tinha apenas 15 anos, ele faleceu.

Perder o meu pai tão cedo deixou muitas lacunas que até hoje tenho que tratar cuidadosamente. Começando que a perda dele me fez automaticamente também perder um pouco da minha mãe, uma senhora que se esforçava muito por um salário mínimo, se desdobrando como diarista para conseguir colocar um prato de comida no dia a dia de dois filhos.

Em seguida, depois de um ano vendo minha mãe sofrer, comecei a trabalhar com 17 anos como atendente do McDonald’s para ajudar nas contas da casa, enquanto muitos dos meus amigos estavam focando nos estudos. E o problema mais recente, o psicológico.

Outros questionamentos que me vêm sempre à cabeça são sobre as lembranças físicas do meu pai. Até certo momento, eu conseguia lembrar vagamente da forma como ele ria, me aconselhava e me abraçava, mas isso foi se apagando da minha memória com o tempo.

Hoje não me lembro de muitos aspectos em relação ao meu pai e, a cada ano que passa, fico com a memória mais apagada sobre ele. Perder um parente antes da era digital e das selfies me faz, além de tudo, ter poucas fotos com ele – e as que tenho são apenas as que tiramos quando eu era criança. Memórias paternais depois de certo tempo passam a ser um exercício.

Carta do meu pai para a minha mãe, de 1988 @Guilherme Silva/Arquivo Pessoal

Além dos corres que uma família que perdeu um membro dessa forma sofre, temos que lidar com vida com o dobro de esforço habitual por medo de passar fome. Por muitas vezes até normalizamos e romantizamos esse “corre dobrado” que temos de fazer para conseguir o mínimo.

Minha mãe sempre dizia que “a gente não pode ficar esperando nada cair do céu no colo da gente”, enquanto trabalhava cinco dias por semana na casa de pessoas diferentes.

Eu mesmo demorei muito para entender que tudo na nossa vida era mais difícil justamente por não termos mais o meu pai, e sei que é uma sensação que todos que perderam alguém tão cedo também sentem.

Por muitos anos, nos dias dos pais, eu chorava muito não só por saudade, mas por querer lembrar do que era estar com o meu pai nessa data. Sempre pensei muito que muitos momentos da minha vida eu não ia poder compartilhar com ele e que ele não ia me ver o filho mais velho (em São Paulo) fazendo coisas que todos fazem, como terminar uma faculdade.

Meu pai com meu irmão mais novo no colo @Guilherme Silva/Arquivo Pessoal

A gente vai crescendo, entendendo como as coisas funcionam e tendo o amparo de “outros pais”, como padrinhos, pais de amigos, tios que nos adotam e preenchem algumas lacunas. As outras lacunas vão sendo preenchidas com o tempo.

Em algumas situações, a memória em relação ao meu pai é a minha pior inimiga. Mas hoje gosto de pensar que, se ele pudesse me ver agora, veria que estou bem. E, no final das contas, faz me sentir orgulhoso em saber que ele ficaria orgulhoso de mim e por eu estar aqui podendo escrever isso para ele.

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Guilherme Silva

Jornalista formado, social media, produtor de podcast e redator. Filho da dona Edna e do seu Zé. Desbravo a conhecer a cidade com minha bicicleta. Amante de livros, músicas emo e Star Wars. Correspondente da Cidade Dutra desde 2022.

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