“Aqui é um pelo outro”, afirma Claudia Castro, 41, moradora da favela Morro do Piolho e que trabalha com reciclagem. “Se meu vizinho não tiver condição (dinheiro), eu posso ir lá ajudar ele, estender uma mão amiga”. O relato é parte de um documentário que mostra a vida de Cláudia e de outros dois moradores da comunidade que fica na avenida Água Espraiada, na zona sul de São Paulo.
Trata-se do Espraiada Vive, mesmo nome do coletivo que produziu o material, que relata as vivências de uma região afetada pela desigualdade social, além de outros problemas. A comunidade do Piolho, onde Claudia mora por exemplo, sofreu um incêndio no mês de julho de 2022, que marcou mais um obstáculo na espera por moradia,
A antiga avenida Água Espraiada, hoje conhecida com Roberto Marinho, é formada por 24 comunidades, compreendendo uma população estimada entre 5 a 8 mil famílias em situação de grande exposição social, apontam dados do Mapeamento Território Campo Belo, realizado em 2021 pelo Instituto Jatobás e Rede Espraiada.
O distrito do Campo Belo é considerado uma área rica na zona sul da capital, mas além de abrigar o aeroporto de Congonhas, possui parte da população em situação de pobreza.
Há 890 famílias em condição de extrema pobreza com até 1⁄4 de salário mínimo (ano base 2020). Pela escassez de vagas, muitos dos moradores acabam indo para o trabalho informal, com pagamentos diários e sem contratação.
A produção teve origem após uma oficina de audiovisual, em parceria com a TV Doc Capão, para alunos da região. “No curso entendemos que para finalizar precisaria de uma produção que falasse sobre a Espraiada e também mostrasse os moradores”, explica Bruna Caetano, 33, uma das fundadoras do coletivo Espraiada Vive.
Fundador da TV Doc, André Luiz, 26, compartilhou que já na quarta aula eles conseguiram publicar o documentário. “Acho que o ‘Espraiada Vive’ surgiu pelo grupo ser muito conectado com o território, com a história e a valorização das iniciativas que estão presentes. Eles quiseram registrar esse amor que eles têm”, diz André.
O coletivo, responsável pela criação do documentário, surgiu em 2017 com o intuito de valorizar e enriquecer as experiências culturais periféricas dali. Desde então, o grupo tem se envolvido em ações voltadas para o circuito cultural, parcerias esportivas com voluntários e a realização de oficinas de rima. Atualmente, eles produzem a “Batalha da Espraiada” e o “Samba na Toca”.
A voz dos moradores
Além de Claudia também são retratados os moradores Daniel Almeida, 57, e DJ Raskeley, 33.Produtor cultural e líder comunitário, Daniel mora na favela do Campinho e é pai de 8 filhos. O trabalho com arte vem desde os anos 1990, quando começou a participar do movimento de rádio comunitária chamada“Dimensão FM”, que hoje não existe mais.
“Me considero um produtor favelado, sou um favelado mesmo. Quando o dia não está muito legal, eu vou andar na favela, é lá que as pessoas me ajudam, já vem um vizinho perguntando se estou bem. Ser pai de 8 filhos nem sempre é fácil, principalmente na quebrada”, diz Daniel.
“Aqui me fez compreender o sofrimento que as pessoas passam, compreender um pouco mais sobre mim. A quebrada do meu sonho é isso, todos olharem um para o outro”
Daniel Almeida, comunicador e morador da favela do Campinho
A cada 100 moradores da comunidade, 54 são mulheres, uma quantidade acima da média de São Paulo, que é 51. A pesquisa do Mapeamento apresenta que até 2020, 9% dos domicílios eram considerados assentamentos informais, ocupações irregulares e áreas de risco, sem segurança jurídica.
No documentário, Claudia relata as dificuldades que teve desde a infância. A morte da mãe aos sete anos, vítima de violência doméstica, e também a perda do filho. “Com 7 anos fui para a rua com os meus irmãos também menores de idade, voltei para a Rocinha, uma das comunidades entre as 24 da região, em que eu morava, e lá acabei sendo estuprada.”
Claudia explica que após dois anos morando na região conseguiu ter sua casa própria na Água Espraiada.
O coletivo também aborda questionamentos como a violência policial na região, conta Bruno Spindola, 33, pertencente ao coletivo Água Espraiada Vive.
Bruno é branco, ruivo, morador da Favela do Zoião, e conta que mesmo tendo esse perfil, as pessoas que moram fora da favela escondem os pertences quando ele está próximo. “Aqui é uma área invadida dentro de um contexto totalmente elitizado. Há um despreparo policial, a galera olha muito por estereótipo, são consequência do maltrato da polícia com a gente”, explica Bruno.
O documentário “Espraiada Vive” está disponível no canal do YouTube da “Tv Doc Capão“. Eles têm a intenção de continuar produzindo outros trabalhos audiovisuais na região e também está em produção o podcast ‘’Pod Ae’’. Bruno Spindola e Júlio César são os locutores e a ideia é permitir que a comunidade faça propaganda de seus trabalhos e negócios na região.
“Na Espraiada acontecem muitas coisas boas, e não sentimos que estamos sendo representados pela grande mídia, desde as coisas boas e ruins. Precisamos trazer visibilidade para as pessoas que têm iniciativas e unificar a região”, finaliza Bruno.