Cantor e compositor, Aloysio Letra, 39, também atua com teatro, cinema, circo, música e articulação cultural. As diversas atividades que exerce, contudo, não foram suficientes para que a situação financeira não fosse comprometida com as medidas de isolamento físico iniciadas em março para evitar a propagação do novo coronavírus.
Enquanto artistas de destaque nacional, como Gusttavo Lima, cantor sertanejo que faturou cerca de R$ 3 milhões em uma live, Aloysio espera há dois meses o auxílio emergencial de R$ 600.
“O auxílio não chegou a grande parte da população e também não chegou para artistas das periferias, subúrbios, ou seja, para a maioria dxs artistas independentes”, comenta Letra, que tem recebido relatos parecidos de moradores de outros estados.
Um dos motivos dessa dificuldade é que artistas foram excluídos do programa emergencial e aguardam a sanção da Lei Aldir Blanc para começar a ter apoio.
Morador de Guaianases, na zona leste de São Paulo, Aloysio afirma que a sobrevivência da categoria artística nas periferias sofre ainda mais com a pandemia, pois não recebeu apoio da iniciativa privada nem pública. “Há quem tenha caixa e há aquelas e aqueles que trabalham para as contas do mês”.
O problema é que desde o começo da pandemia, artistas tiveram trabalhos suspensos, sendo que a maioria ficou sem perspectiva de renda.
Em março, cerca de 30 coletivos culturais das periferias se reuniram para lançar a ação Manifesta Arte em Rede. “A gente pensou em disponibilizar atividades culturais às periferias, além de contribuir financeiramente com pessoas mais pobres, inclusive os artistas”, comentou Luciana Gandelini, 36, de Santo André, na Grande São Paulo.
A programação online contou com uma ‘vaquinha’ virtual e promoveu apresentações de artistas da dança, circo, teatro e música. Outros exemplos de solidariedade rolaram. Mas com a prorrogação da quarentena e o avanço da Covid-19, vários artistas seguem com dificuldades para almoçar, pagar o aluguel e cuidar dos filhos.
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A atriz e produtora cultural Priscila Guedes Rodrigues dos Santos, 23, lembra que as dificuldades não começaram no início da quarentena, mas a situação se agravou.
“Sobreviver de arte nesse país já era muito difícil. Contamos as moedas para fechar a conta todos os meses, para que esses trocados, cachês baixos e atrasados possam fazer caber alguma comida dentro de nossas barrigas e algum teto sobre nossas cabeças”, conta.
Priscila faz parte do grupo Carcaça de Poéticas Negras, coletivo que pesquisa e cria espetáculos que incentivam a arte preta na cidade. “O trabalho dentro do mercado cultural é distribuído de maneira excludente para artistas periféricos, negros e ainda mais para mulheres e LGBTQI+”.
A produtora afirma que, quando foi decretado o isolamento físico, a Secretaria de Cultura não deu um parecer sobre como ficaria a situação de milhares de artistas desempregados que atuavam em bares, espetáculos em centros culturais, na rua, dentro da comunidade. Também foram poucos os editais para o setor.
“Essas oportunidades causaram briga entre o meio artístico. Arrisco a dizer que na verdade, deram continuidade a manutenção de poder de alguns que sempre estão nas listas de contemplados de editais públicos e privados”, comenta.
Por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação), a Agência Mural apurou que a Secretaria Municipal de Cultura não destinou nenhum valor aos coletivos de artistas nas periferias entre o dia 24 de março até o dia 5 de abril. “Informamos que não houve repasse de valores no período solicitado”.
Questionada, a Secretaria Municipal de Cultura se limitou a dizer que lançou três chamados e um edital para programação online com o objetivo amparar a classe artística com contratações para apresentações online, em formatos de lives.
A pasta também diz que deu continuidade a todo o calendário de fomentos no período de pandemia. Sobre os valores investidos nos artistas das periferias não houve resposta.
LEI ALDIR BLANC
O Plenário do Senado aprovou, em 4 de junho, o projeto de lei que libera R$ 3 bilhões em auxílio financeiro a artistas e estabelecimentos culturais durante a pandemia da Covid-19 (PL 1.075/2020). A lei Aldir Blanc recebeu este nome em homenagem ao compositor carioca vítima da Covid-19 no início de maio.
A proposta se tornou urgente para cantores, atores e outros produtores de cultura, tendo em vista que eles foram excluídos do auxílio emergencial de R$ 600, após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) vetar a inclusão da classe artística na lei.
A lei Aldir Blanc é semelhante ao formato adotado no benefício pago para trabalhadores informais, porém, com diferenças na forma de pagamento. Em vez da Caixa, o governo federal irá enviar o dinheiro para estados e municípios fazerem o repasse.
Segundo a proposta, a renda deve ser disponibilizada na forma de auxílio mensal de R$ 600, pagos em três parcelas. O recebimento está restrito a dois membros de uma mesma família, e mães solo terão duas cotas.
Os trabalhadores devem comprovar atuação no setor cultural nos últimos dois anos, não ter vínculo formal de emprego e não receber o auxílio emergencial federal. Não será concedido a quem receber benefícios previdenciários ou assistenciais, seguro-desemprego ou valores de programas de transferência de renda federal, com exceção do Bolsa Família.
A lei também prevê que os municípios poderão repassar entre R$ 3 mil e R$ 10 mil mensais para manter espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas culturais e cooperativas, instituições e organizações culturais comunitárias que tiveram as atividades interrompidas por força das medidas de isolamento social contra a pandemia.
Enquanto aguarda e tenta driblar as dificuldades, Aloysio Letra avalia que há falta de visão política em relação a políticas públicas de cultura, o que ficou mais evidente quando toda a categoria é limitada a trabalhar via internet.
“Sabendo que nossa estrutura de internet no Brasil é deficiente e que nem todos tem acesso a ela. O problema é a exclusão e a impossibilidade de trabalho a maioria dos fazedores de cultura”, defende.
Se por um lado a cultura se mostra cada vez mais essencial para a população que ouve música, vê filmes e séries, frequenta saraus e lê livros na quarentena, de outro lado, segue sendo vista como como algo descartável, supérfluo, de última necessidade. “O estado não educa a sociedade a entender da importância da cultura, muito pelo contrário”, pontua.