A cidade de Cotia, na Grande São Paulo, completou 167 anos no último domingo (2), mas para Eduardo Karai Jeguaka, 34, ativista e artista visual, falta reconhecimento do poder público ao papel dos povos originários na formação do município, apesar da forte presença do povo Guarani.
“Sempre estivemos aqui e passamos por todo esse processo de dizimação, que nos forçou a viver na narrativa que vivemos hoje, em um contexto urbano e periférico”, afirma o indígena Guarani em entrevista à Agência Mural.
O artista visual, morador de Caucaia do Alto, explica que isso é fruto de os povos originários terem sido os primeiros escravizados na região. Contudo, ele vê a história indígena deixada de lado, diferente de outras culturas que fazem parte da cidade, como a japonesa.
Segundo o último Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2010, Cotia possuía cerca de 201.150 habitantes, cerca de 223 pessoas se autodeclararam indígenas, “muitas vezes sem a consciência do seu pertencimento originário, ou considerado apenas um descendente”, reflete.
Eduardo afirma que o município carece de mais dados e estudos em relação aos povos originários na região.
Leia a entrevista completa abaixo:
Quais povos originários habitavam a cidade e o que ocorreu para haver esse apagamento?
A cidade de Cotia, desde a origem do nome, tem relação com os povos originários, que vem de Akuxi (pronúncia Acuti) e significa bicho Cutia em Guarani Mbya. Desde a invasão no século 16, lugares como Cotia, Caucaia do Alto (hoje distrito de Cotia), Ibiúna, foram tomadas pelos invasores, os jesuítas, formando aldeamentos, que eram como se fossem campos de concentração de povos indígenas. Em Cotia, nossos ancestrais foram os primeiros a serem escravizados.
Nosso povo foi vítima da miscigenação forçada, nos impossibilitando de falar nossa língua. Nossa relação com a vida e o modo de ser foram demonizados
Qual era a característica da região nessa época?
A cidade era conhecida como um ponto de encontro, pois nela havia vários trechos do caminho Peabiru – importante para os povos, pois eles faziam suas caminhadas em busca da Terra sem males. Após a invasão, o caminho foi usado pelos invasores para percorrer o território, nos escravizar e matar. A maioria das rodovias eram trechos de Peabiru, e hoje levam os nomes de assassinos.
Na cidade, muito antes da chegada do jurua – pessoa não indígena, já tinha uma presença indígena muito grande. Vários povos caminhavam para cá, mas originariamente, foi habitada pelo povo Guarani, que eram chamados pelos juruas de Carijós.
Como essa história é retratada na cidade?
Na história do município, principalmente em Caucaia do Alto, esse povo é lembrado pela sua expulsão e dizimação, se remetendo ao passado. Passamos por todo esse processo de dizimação, de etnocídio, epistemicídio e genocídio, que nos forçou a viver a narrativa que vivemos hoje, em um contexto urbano e periférico, fruto de uma guerra que travaram contra nós há mais de cinco séculos. Porém, o sangue originário sempre esteve aqui.
Não existimos somente no passado distante. Somos a continuação dos nossos ancestrais, mas também somos contemporâneos. Estamos aqui presentes de diversas formas, em diversas atividades, mesmo em um contexto que não nos possibilita de forma plena o nosso modo de ser.
Além do povo Guarani, Cotia possui moradores das etnias Kariri, Kariri Xoko, Pataxó, Tupi Guarani, Xukuru, Xukuru de Oruruba, Bororo, Guayaná, entre outras.
Em fevereiro deste ano, a renomada artista Tamikuã Txihi teve um grafite, com a imagem de uma mulher indígena junto a onças, apagado no centro de Cotia. E, contrariando a Lei da Cidade da Limpa, um grande anúncio de imobiliária foi exposto no lugar.Após críticas na internet, a empresa removeu a propaganda e convidou a artista para fazer uma nova arte. Apesar dos empresários voltarem atrás, qual o sentimento que fica após essa desvalorização?
O sentimento que tenho é de muita dor, pois participei do processo acompanhando a artista, que é nossa irmã. Ela pintou a Arte Empena, símbolo de resistência que, além de sua beleza como mural de arte indígena contemporânea, foi feita próxima à Rodovia Raposo Tavares – cujo nome é de um dos maiores assassinos do nosso povo. Raposo Tavares usava o caminho para ir até o Guairá matar e escravizar os Guarani. Essa rodovia jamais deveria ter esse nome.
Essa arte para mim significava a resistência dos povos originários, das matas e de toda diversidade de vidas sagradas existentes aqui.
Esse apagamento da memória é a violência da especulação imobiliária, que está devorando nossas matas que compõem a Mata Atlântica, cinturão verde que, ao longo dos milênios, foi plantado pelos nossos ancestrais. Não é por acaso que Cotia foi considerada a sétima cidade [da Grande São Paulo] que mais desmatou no estado em 2022.
A total falta de respeito com os povos originários reflete na falta de respeito com a biodiversidade.
Além de ser indígena, você é ativista pela defesa da vida e da preservação da história dos povos originários. Como tem sido essa atuação na cidade nos últimos anos?
Em partes tem sido bom, pois sinto nas pessoas uma vontade muito grande em conhecer sobre o povo. Tem acontecido um despertar, e dentro deste despertar surge uma reflexão sobre a preservação da vida, a relação dos povos com as vidas existentes no bioma. Não somos separados, fazemos parte de tudo isso.
Na questão do poder público, é triste observar a quantidade de empreendimentos da especulação imobiliária na cidade. É muito triste ver que já tem casa próximo à Represa do Morro Grande, mata ancestral, onde tem o afluente do Rio Akuxi (Rio Cotia).
Como isso tem afetado a região?
Ao longo das décadas, rios e nascentes foram assoreados, mortos e poluídos para fomentar o poder financeiro. O clima aqui já está muito alterado, tem feito um calor que não existia na minha infância. É muito doloroso ver um município que ainda tem a mesma prática dos primeiros invasores, que é explorar a terra e toda natureza para obter dinheiro. A vida é vista como um produto.
Quais deveriam ser os deveres da gestão pública em relação à causa neste momento?
Acredito que os governantes precisam ouvir, não somente me ouvir, mas escutar o povo, pois mesmo antes de eu existir, ou até mesmo a cidade, aqui já tinha um povo – e ele precisa ser ouvido e respeitado. A consulta prévia deveria ser algo prioritário, além de muitas outras coisas, para promover a cultura da diversidade de povos.
Que tipo de ação poderia ser feita para avançar nesse sentido?
Ter uma organização que seja capaz de fazer uma gestão promovendo a diversidade, como por exemplo a do MCI (Museu de Culturas Indígenas). Mas ao meu ver, isso seria parte do caminho a ser tomado para se pensar em uma recuperação que abrange a cultura em um todo. Levando em conta que somos mais de 305 povos, falando mais de 274 línguas em Pindorama “Brasil”, a resposta não é tão simples, tendo em vista também a diversidade indígena municipal.
Por que a migração japonesa é levada muito mais em consideração na cidade, pelos próprios governantes municipais, inclusive, do que os povos que já habitavam aqui antes deles?
Eles são lembrados pois formaram uma grande frente econômica na cidade por décadas, principalmente por terem feito uma cooperativa agrícola, além de serem produtores em grande escala de ovos e aves em suas granjas, e hortaliças.
O esquecimento é um projeto de estado. Afirmar a história dos povos originários daqui, tudo que aconteceu, é afirmar todos os crimes contra a humanidade e responder por eles.
Cotia foca em dar visibilidade a outras histórias que foram acontecendo ao longo dos séculos em sua formação – como famílias que foram tomando as terras, expulsando os povos e fazendo toda essa violência. Já passou da hora do poder público tratar com mais respeito a história, a raiz desta cidade, que já era habitada pelos nossos ancestrais muito antes da invasão.