Você vai fazer isso “a pulso”. Como ela está “aprumada”, né? Vai tomar uma “chapuleta” se não se cuidar. Aquele ali é “gaiato”. Mãe, dá mais um “tiquim”, de bolo. Foi com expressões vindas do Nordeste e muito presentes no dia a dia da família que a escritora Rosa Alves, 49, decidiu escrever um livro que é também uma espécie de dicionário.
A inspiração para escrever “Ser-tão-Rosa” partiu de uma pergunta comum dos sobrinhos dela, na casa em que viviam no Grajaú, na zona sul de São Paulo. “Tia, a vó falou essa palavra. O que significa?”.
A obra também é uma homenagem à mãe da escritora, que também se chama Rosa. Assim nasceu o livro publicado pela editora Ases da Literatura.
Escritora fez um livro em homenagem a mãe e fez dele um momento de conexão familiar @Arquivo pessoal/Divulgação
Com mais de 300 palavras catalogadas, a obra busca valorizar e divulgar o rico vocabulário nordestino, além de prestar uma homenagem à população que contribuiu significativamente para a construção de São Paulo e mantém viva a cultura, principalmente dentro das periferias.
O Censo de 2010 do IBGE estima que mais de 4,6 milhões de nordestinos vivem em São Paulo.
ALGUMAS DAS EXPRESSÕES ENCONTRADAS NA OBRA
Abilolado: Doido
Afeiçoada: Pessoa bonita, arrumada
Aprumado: é bem vestido ou algo com bons modos
A pulso: significa fazer algo à força
Caritó: Mulheres que envelhecem e não casam
Casa do chapéu: Lugar distante ou desconhecido
Chapuleta: é pancada,
Esbregue: Bronca, repreensão
Espichar: Esticado, esticar
Gaiato: é engraçado e “tiquim” é pouca coisa.
Inté: Tchau
Istruir: Desperdiçar
Peixeira: Faca grande
Quentura: Calor
Torar: Arrebentar com força
Xêro: Usar o nariz para cheirar o rosto
Nascida em Mombaça, interior do Ceará, a escritora e professora de artes chegou a São Paulo aos 12 anos, quando a vida dela mudou significativamente. Já não havia o calor do Nordeste, a escola agora tinha quatro andares, e a morada que antes era um sítio passou a ser uma casa na favela do Sucupira, localizada no Grajaú.
Uma das memórias de infância que ela guarda é que, até chegar à cidade, nunca havia comido chocolate. A irmã, Luísa, chegou a aconselhá-la a mudar o sotaque para comprar pão.
‘Ela disse que, se eu falasse com meu sotaque, as pessoas iam achar engraçado e vir tirar uma onda comigo. Não sei se me saí bem nessa compra do pão com sotaque paulista’
Rosa, escritora
Rosa, mãe da escritora com o mesmo nome, se mudou para São Paulo em 1988, e morou nos bairros do Sucupira e Jardim Lucélia @Arquivo pessoal/Divulgação
Com o passar dos anos, a família cresceu e veio uma nova geração, que passou a ter dificuldade para entender algumas falas da avó. “É que a vovó falou assim: ‘Alana, se acoca aí no quintal mesmo e faz o xixi’. Eu não entendi e acabei fazendo nas calças”, contou uma das netas.
Foi assim que Rosa começou a escrever o dicionário em um caderninho e fazendo desenhos engraçados da própria família.
Conheceu outro artista cearense que também morava no Grajaú, no bairro do Parque Residencial Cocaia. O artista visual Jonatas Rodrigues dos Santos, 43, conhecido pelo nome artístico de Jonato, abraçou o projeto como uma maneira de resgatar também as próprias raízes.
Nascido em Camocim, ele brinca que se considerava um “cearense fake”, já que, apesar de ter nascido no Ceará, veio para São Paulo com apenas 1 ano de idade e só teve contato mais profundo com a cultura nordestina na vida adulta.
“Fui me reconhecer quando comecei a entender melhor a minha relação com os parentes, os avós, e a conhecer a linguagem. Percebi o quanto eu já falava várias palavras porque minha mãe falava, então eu aprendi. Para mim, era natural, mas às vezes a gente nem percebe. Quem reconhece é o outro”, reflete.
Além de assinar as ilustrações com caricaturas, Jonato também criou uma seção de histórias em quadrinhos.
O ilustrador fazia os desenhos da família de Rosa sem conhecê-los pessoalmente, devido à pandemia de Covid-19. “O interessante é que me tornei íntimo das pessoas antes mesmo de conhecer, pois já sabia um pouco da história delas”, comenta.
Na parte da escrita, os parentes também se engajaram e sugeriram muitas palavras. Também é necessário ressaltar que os termos e expressões ditas ali podem ter significados diferentes em outras regiões do Brasil.
“Já existem dicionários muito mais vastos, mas o diferencial [do livro] são as palavras usadas no nosso cotidiano familiar e o significado dela para nós, porque às vezes a mesma palavra significa algo diferente em outro estado”, complementa Jonato.
Homenagem em vida
O processo criativo entre os dois artistas, da escrita à finalização, levou cerca de cinco anos. O título provisório era “Maria, Mamma Mia”, mas depois se tornou “Ser-tão-Rosa”, em homenagem ao nome da mãe da escritora, a personalidade expressiva dela, a cor que expressa feminilidade e uma analogia ao sertão nordestino.
“Ser-tão-Rosa” narra os dialetos usados pela mãe de Rosa e contos engraçados de sua vida @Thayane Pereira Araújo/ Sandro Lima Figueredo
O livro busca ser democrático, por isso, há páginas em branco para que outras pessoas possam participar e escrever as próprias palavras e desenhos.
A mãe de Rosa acompanhou todo o processo de escrita e teve acesso ao exemplar original, mas morreu em 17 de agosto de 2024, aos 84 anos, duas semanas após o diagnóstico de um câncer. O livro foi publicado um ano após o falecimento.
No momento do velório, os sobrinhos levaram o encadernamento original, e todos se emocionaram, relembrando com carinho a vida de Rosa. “O dicionário vem para reforçar o nosso orgulho de ser nordestino, de ser brasileiro. A gente não pode ter vergonha das nossas raízes, sejam elas quais forem”, ressalta a escritora.
“Uma parte bem grande do Nordeste e da cultura está aqui, nas pessoas que vivem nas periferias. Isso fica estampado nas nossas histórias e vivências. Apesar da distância da terra natal, a cultura continua viva”, conclui Jonato.
O livro está disponível em lojas como Estante Virtual, Um Livro e Americanas.
