São 17h e o sol já está se pondo em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. Da praça Juscelino Kubitschek, de frente a estação Engenheiro Manoel Feio, da linha 12-safira da CPTM, é visível a lenta chegada dos passageiros que deixam os trens no retorno para casa.
Na praça em frente, um velho Chevette e um forró são os únicos sons para se ouvir. Mas isso logo muda quando os primeiros jovens chegam. Nesse horário, o local é tomado pela Batalha dos Jardins, uma disputa de rimas de rap que agita os domingos do bairro desde setembro do ano passado.
“Nós tivemos a ideia de trazer uma batalha para Itaquá porque sentíamos que a cidade precisava crescer na área cultural”, comenta Gabriel Freitas, 19, o Yokame, beatmaker (produtor independente), que idealizou o evento em uma conversa com os amigos.
A praça, na periferia de Itaquá, foi estrategicamente pensada. “A maioria de nós mora em outras quebradas da cidade, mas escolhemos a praça pela proximidade com a Estação Manoel Feio. Aí fica mais fácil para todo mundo colar”, diz Davi Alves, 19, o DS, que todo domingo sai do Jardim Paineira e cruza a cidade para ajudar a fazer a batalha.
CULTURA PERIFÉRICA
As batalhas de rima já fazem parte do cotidiano das periferias e das cidades da Grande São Paulo. Há ao menos 19 eventos todas as semanas em regiões como Itaquera, na zona leste, e Grajaú, na zona sul. Pela região metropolitana, as cidades de Osasco, Guarulhos, São Bernardo do Campo, Carapicuíba, Itapevi, Cotia, Embu-Guaçu, Mogi das Cruzes, Poá, Suzano e Rio Grande da Serra têm duelos.
Introduzida no Brasil nos anos 1990, a disputa de rap passou a ganhar notoriedade nacional após o sucesso da Batalha da Santa Cruz, realizada todo sábado em frente à estação homônima do Metrô, na capital paulista.
A Batalha da Santa Cruz é, inclusive, a inspiração do grupo para a criação da Batalha dos Jardins. É de lá que saiu o cantor Emicida, ídolos dos MCs pelo sucesso no Brasil e no exterior.
“Ter a ‘folhinha’ da Santa Cruz é a mesma coisa que jogar futebol e ganhar a Copa do Mundo”, brinca Daniel. A ‘folhinha’ é prêmio do campeão da batalha. Trata-se de uma tabela, onde se pontua quantas rodadas foi vencida pelo MC.
“A folhinha tem muito valor sentimental. Não há premiação em dinheiro, a única arrecadação que fazemos é de alimentos, que posteriormente são doados para quem precisa”, afirma Kauê.
APOIO LOCAL
A Batalha dos Jardins ganhou força graças ao apoio de quem trabalha na região. “Depois que o taxista forneceu a luz de graça para a gente, aí que ficamos por lá mesmo”, brinca Gabriel.
Após o evento se tornar periódico, ele acabou chamando a atenção de um taxista, que passou a compartilhar gratuitamente a energia elétrica do ponto de táxi da praça.
Com a possibilidade de ter energia, os meninos foram em busca do que também parecia difícil de conseguir: os aparelhos.
“Começamos pedindo nos eventos do Facebook para o próprio pessoal que colava”, lembra Gabriel. Agora, pelo menos a caixa é garantida, emprestada pelos professores do cursinho popular da Uneafro.
Com o passar dos meses, a batalha foi se popularizando, e o público, cresceu. Além de Gabriel e Daniel, juntaram-se ao grupo o MC Lucas Fernandes, 22, responsável por divulgar o evento entre os rappers, Kauê Albuquerque, 19, o Albus Kaos, que busca os equipamentos de som, e Thaís Pereira, 19, responsável por fotografar os eventos e agitar os jovens que estão assistindo.
“É o som, é a agitação que faz os MCs se sentirem bem. É o pagamento, a recompensa. Como diz o Emicida, é como estar no ‘solo sagrado’”, comenta Thaís.
COTIDIANO
Para os organizadores, o dia da batalha começa bem antes das 17h. Desde de manhã, Gabriel acompanha pelo celular para saber se está tudo certo. Em outro ponto da cidade, Kauê prepara os materiais, e Lucas contata os MCs.
No domingo em que a Agência Mural acompanhou a batalha, um dos grandes esperados tem sido o MC Marcos Vinícius de Souza, o MK. Também morador de Itaquá, ele ganha a vida apresentando poesias nos trens da CPTM.
“É o meu sustento. Trabalho cerca de quatro dias por semana, das 10h às quatro da tarde”, pontua. “E estou no trem para animar as viagens, por isso não envolvo nem política, nem religião nas rimas”.
Quando começou, não sabia que faria sucesso. Hoje, vive da própria arte. “Sou até filmado pela câmera de alguns trabalhadores nos vagões”, diz.
Atualmente, não é só MK que se aventura pelos trens. “Também rimo no vagão, mas só às vezes. É um modo comum para nós e para os MCs que se apresentam de ganhar a vida”, comenta Daniel. “Mas é um pouco arriscado”, completa.
VEJA TAMBÉM:
‘Sempre haverão negros e negras nos meus clipes’, diz Rincon Sapiência
Criador da Batalha da Leste monta podcast e rejeita rimas preconceituosas
Todos os jovens que organizam o evento sobrevivem do trabalho informal. Nesse momento, o desemprego é a maior ameaça para a continuidade do “solo sagrado” de Itaquá.
“No fim do mês, às vezes falta dinheiro até para custear a passagem de ônibus”, desabafa Kauê. A tarifa na cidade é R$ 4,10. “E o pior é que não temos nenhum incentivo do governo. Nenhum, nenhum. Aliás, a área cultural em Itaquá sofre de falta de incentivos”, lamenta Thaís.
Palmas fortes interrompem o diálogo. Na praça, a noite já avança. Entre rimas e fumaças de narguilé, gritos anunciam MK como vencedor de mais um dia. A folhinha já foi entregue, e a galera já se aglomera nos pontos do terminal de ônibus Engenheiro Manoel Feio.
O solo sagrado, então, se aquieta. Mas os organizadores continuam agitados. Todos já estão pensando na semana que vem.