Das 39 modalidades presentes nos Jogos Olímpicos, poucas são realmente acessíveis à população que vive nas periferias e marcadas pela presença de atletas de origem mais humilde. Podemos citar o futebol que é praticado universalmente, o atletismo que exige ter certa habilidade para a corrida, e o boxe.
Nesta Olimpíada, o Brasil conta com 10 boxeadores competindo e todos possuem uma origem nas periferias, nos mais diferentes cantos e contextos do Brasil. São dois atletas nascidos na região metropolitana de São Paulo, Abner Teixeira (Osasco) e Luiz Oliveira “Bolinha” (nascido em São Caetano, mas que já viveu em São Mateus, na zona leste de São Paulo).
A delegação conta também com mais cinco atletas baianos, muitos de regiões periféricas de Salvador, como é o caso de Beatriz Ferreira. Ela é uma das principais esperanças de medalha de ouro olímpico para o Brasil em Paris.
Mas a relação do boxe olímpico com as periferias de São Paulo já vem de longa data. Em 1968, Servílio de Oliveira (avô do Luiz Oliveira) conquistou a medalha de bronze nos Jogos da Cidade do México. Servílio, que cresceu no distrito da Casa Verde, na zona norte, foi por décadas o único medalhista do boxe brasileiro em Olimpíadas.
Esse jejum de medalhas acabou quando os irmãos Esquiva e Yamaguchi Falcão conquistaram medalhas de bronze nos Jogos de Londres 2012. Os dois capixabas vieram jovens para Santo André, na Grande São Paulo, para se dedicarem exclusivamente ao pugilismo.
Além deles, o livro “Atletas Olímpicos Brasileiros”, da professora Katia Rubio, lista 25 boxeadores olímpicos que nasceram ou viveram na região metropolitana de São Paulo: desde Éder Jofre, ex-morador do Peruche que disputou os Jogos de Helsinque 1956; Deusdete Alves, que saiu de São Miguel Paulista para a disputa de Montreal 1976; e Roseli Feitosa, do Parque Regina, na zona sul, e que também competiu em Londres 2012.
Medalhistas brasileiros no histórico dos Jogos Olímpicos:
Cidade do México 1968 – Servílio de Oliveira – bronze
Londres 2012 – Adriana Araújo – bronze
Londres 2012 – Yamaguchi Falcão – bronze
Londres 2012 – Esquiva Falcão – prata
Rio 2016 – Robson Conceição – ouro
Tóquio 2020 – Beatriz Ferreira – prata
Tóquio 2020 – Hebert Conceição – ouro
Tóquio 2020 – Abner Teixeira -bronze
Fonte: Confederação Brasileira de Boxe
Origem negra e periférica
O antropólogo Michel de Paula Soares, 44, apresentou uma tese de mestrado em que explica porque ele vê o boxe como um esporte ligado às periferias. Formado pela USP Michel é da Vila Fátima, em Guarulhos, na região metropolitana, e também um dos treinadores do Boxe Autônomo, academia popular de boxe localizada no Bom Retiro, região central de São Paulo.
Para ele, o trabalho dos projetos sociais é um dos pilares que explica porque o pugilismo é um esporte racializado. Michel conta que essas academias têm o propósito de oferecer uma atividade no contraturno escolar, mas também de “garimpar” e formar potenciais talentos: “E esses espaços estão nas periferias, nas favelas”, afirma o antropólogo.
‘Onde quer que ele esteja, o boxe é um esporte de periferia, é um esporte onde o corpo que vai se tornar majoritário é um corpo negro, racializado. Ele é quem detém o protagonismo da modalidade’
Michel de Paula Soares, antropólogo
Ele conta que em alguns esportes, a presença do corpo negro é mais aceita que em outros. “Ninguém estranha ver um homem negro lutando boxe, mas todo mundo vai estranhar um homem negro na piscina, por exemplo”, compara.
Michel defende que o boxe se alinha com o que ele chama de “ética rebelde” da população negra: “A ética rebelde parte de você se entender no mundo, que ele não foi feito para você. Isso favorece com que a pessoa se revolte em sua condição individual, desenvolvendo uma habilidade esportiva. O boxe não deixa de ser uma prática de revide”.
Um exemplo disso é Robson Conceição, campeão olímpico em 2016. Ele procurou uma academia de boxe em Salvador aos 13 anos para melhorar a habilidade em brigas e “trocações de soco” durante o carnaval.
Porém, Michel reforça que há uma visão antiga de agressividade atribuída a modalidade que não é real, pois existe ética e um regulamento rígido para a prática.
“O senso comum de que o boxe é um esporte de pessoas negras e agressivas é uma visão muito antiga, que nunca refletiu a realidade. A gente sabe que não é sobre isso. Trocar socos dentro de um ringue não tem nada a ver com violência”, defende Michel.
“Mas continua sendo uma modalidade que é muito racializada. Acho que é isso que impede que ela entre nos quadros de investimentos nos estados. O que mantém o esporte social hoje são os projetos sociais e os treinadores, pessoas que vivem disso e que abdicam da vida pessoal pelo projeto coletivo”.
Ivan de Oliveira, 42, é um exemplo disso. Ele é filho do medalhista Servílio e pai do atleta Luiz “Bolinha”, que está em Paris. Há 12 anos ele montou uma academia de boxe na própria casa da família, em São Mateus, na zona leste de São Paulo, a The Oliveira Brothers. Os primeiros alunos foram justamente Bolinha e o irmão dele, João Vitor.
A iniciativa começou a receber garotos até de outros estados. “Conheciam nosso trabalho pela internet, pelos vídeos que a gente postava, não só de treinamentos, mas de levar os garotos ao psicólogo, a gente sempre trabalhou com multidisciplinaridade. Viam que nosso grupo tinha um potencial bacana”.
Ivan conta que ele mesmo quem acomodava os alunos, contando com o apoio da esposa para cuidar deles em São Paulo. Há três anos Ivan vive nos Estados Unidos, como treinador de boxe para uma tradicional equipe de MMA do país, a American Top Team. Ele pretende levar alguns dos alunos para lutar como profissionais por lá.
DIFERENÇA ENTRE BOXE OLÍMPICO E PROFISSIONAL
O boxe olímpico (ou competitivo, ou amador) é disputado apenas em três rounds, em um torneio curto que vai da fase preliminar à final (os dois derrotados na semifinal ficam com o bronze). Nas lutas femininas, as lutadoras usam protetores faciais.
O boxe profissional é o modelo mais famoso, com grandes eventos e lutas mais longas, com até 12 rounds. Nele, os lutadores somam vitórias no “cartel” para buscar uma oportunidade de lutar pelo cinturão.
Enquanto o boxe olímpico é gerido pelas confederações, os responsáveis pelo boxe profissional são os empresários dos atletas e as empresas que organizam os eventos.
Até 2016, quando um lutador se profissionalizava, ele não podia voltar a disputar uma Olimpíada.
Ivan está em Paris torcendo pelo filho de perto. Para o treinador, o Brasil está muito bem representado e deve superar a quantidade de medalhas que alcançou em Tóquio 2020.
‘Acredito muito na medalha da Bia [Ferreira], que para mim é o carro chefe do Brasil. Se tudo correr como o previsto, a Beatriz é campeã olímpica sem sombra de dúvidas’
Ivan de Oliveira, pai do atleta “Bolinha”
Ele também cita acreditar em Bolinha, Keno Machado e no próprio Abner com chances de medalha. “O time do Brasil tá realmente muito forte, e eu chuto no mínimo três medalhas, mas estou pensando em umas cinco”.
Para Ivan, o que fez o boxe brasileiro evoluir tanto da época do pai [Servílio de Oliveira] para a geração de agora, do filho dele [Luiz “Bolinha”], passa pelo investimento financeiro, como também da dedicação que a equipe olímpica exige dos atletas.
“Estamos chegando nas competições e as pessoas estão respeitando o Brasil. Hoje, nós estamos entre as três maiores potências das Américas”, completa.
O treinador Ivan lembra que a virada na qualidade do boxe brasileiro se deu também a partir dos anos 2000. “Melhorou a qualidade dos treinadores a partir da metodologia dos cubanos que chegou por volta de 1995 no Brasil”.
De acordo com a programação dos Jogos Olímpicos, Abner, que busca a sua segunda medalha olímpica pela categoria +92kg, fará a sua estreia em Paris na segunda-feira (29), às 16h20. Ele enfrenta o equatoriano Gerlon Gilmar Congo.
Bolinha, que luta pela categoria até 57 kg, estreará no dia 31 (quarta) às 11h contra o norte-americano Jahmal Harvey.