Era domingo, 5 de fevereiro de 1995, quando sir Mick Jagger acenou, com olhos assombrados, para uma multidão de cerca de 500 argentinos que se concentraram nas imediações do hotel Park Hyatt, em Buenos Aires.
O Hyatt fora morada dos Rolling Stones durante uma bateria de cinco shows que fizeram entre os dias 9 e 16 de fevereiro, no icônico estádio Monumental de Nuñez, a casa do River Plate.
Naquele mesmo dia, Antônio Bando, um caminhoneiro de Suzano, na Grande São Paulo, se dirigia para a capital argentina carregado com um dos 37 geradores de energia “de 40 pés”, responsáveis por alimentar toda a estrutura do palco dos Stones.
Acompanhavam Bando, desde o Rio de Janeiro os caminhoneiros Maleta, Fritz e Frangão. “Nós tínhamos pouquíssimos dias para fazer o trajeto até o [estádio do] River Plate. Eu e Maleta, que fazia dupla comigo no Scania 387, chegamos adiantados na Argentina”, lembra.
Antes de desembarcarem na Argentina, os Rolling Stones se apresentaram em São Paulo, no estádio do Pacaembu, nos dias 27, 28 e 30 de janeiro, e no Maracanã (RJ) nos dias 2 e 4 de fevereiro. Era a primeira vez que a banda se apresentava em países sul-americanos. A turnê divulgava o Voodoo Lounge, vigésimo álbum de estúdio do grupo, lançado um ano antes.
A estrutura do palco, vale dizer, contava com uma serpente de aço gigante que flutuava a 30 metros do solo. O telão tinha 16 metros de largura e oito de altura. Ao todo, os ingleses levaram cerca de 500 toneladas de equipamento. Antes da entrega, porém, Bando foi preso pela polícia argentina ao vender caipirinhas na véspera do show.
TIÃO, O ALFA ROMEO E UM CINTO DE COURO
Antônio Bando, 68, é um senhor barrigudo e de espesso bigode branco que vive com a esposa Ivani, companheira dele há mais de 40 anos, e mais duas cadelinhas, na Vila Amorim, em Suzano.
Hoje aposentado, Bando cita com precisão o modelo e o número da frota dos caminhões que dirigiu, como se fossem nomes próprios ‒ isso quando não emenda com o número de eixos e o ano de fabricação. “Na época, eu estava aprendendo a trabalhar num Alfa Romeo, ano 1952, uma carreta de dois eixos e um cavalo mecânico.”
Bando me contava sobre o fatídico dia que não conseguiu manobrar um caminhão ‒ talvez o único desde que se profissionalizou. Aos 17 anos, o rapazote caiu na lábia dos veteranos da empresa onde trabalhava. O pai era caminhoneiro, diziam eles, logo ele também saberia se virar.
Ledo engano. O rapaz travou na hora de manobrar. Bando lembra que o pátio foi tomado por curiosos ‒ num clássico “para ver o circo pegar fogo”. Quando as notícias da “rádio-peão” chegaram aos ouvidos do pai, que trabalhava na mesma empresa, o velho disparou-lhe um olhar fulminante.
“Ele fazia assim”, disse Bando, que tentou reproduzir o olhar do pai. “O velho ficou brabo. Me empurrou para dentro do caminhão, e disse: ‘Olha pra mim! Olha pra mim, porra!’”. “Eu comecei a olhar pra lá e pra cá, e quando me dei conta o caminhão estava lá dentro”.
Sebastião Bando, o pai, fora um caminhoneiro rodado, com 45 anos de estrada. Bando, o filho, o descreve como um homem forte, do tipo que “carregava três sacos de milho, assim, dois entre os braços e o terceiro sobre a cabeça”. Afirma que o velho era “fuçado” no caminhão, na carreta, no guincho, “o que você desse na mão dele ele dirigia”, conta orgulhoso.
O patriarca passava meses fora de casa, às vezes seis, sete deles na estrada, obrigando a esposa, Ana Francisca Lopes, a acender algumas velas e rezar enquanto o marido estivesse fora. Certa vez, “Tião” deixou um dos filhos recém-nascidos em casa e quando finalmente voltou, “maltrapilho e barbudão”, a criança já estava engatinhando, lembra Bando. Dos seis irmãos, ele sempre fora o mais apegado ao pai.
Bando conta que a primeira experiência dentro de um caminhão foi em uma viagem que fez com o pai, em 1956, para o Rio de Janeiro, carregados de repolho. Ele mal completara os cinco anos, mas se recorda que, dias antes de viajarem, o pai lhe comprou um cinto de couro, e lhe segredou: “Agora você é homem, você tem um cinto”.
Naquele mesmo período, o jovem Mick Jagger, já com 14 anos, ganhou o primeiro violão e alguns discos de blues. Cerca de 40 anos depois, a história de uma das maiores e mais bem sucedidas bandas de rock do mundo, e de um caminhoneiro desconhecido da Grande São Paulo, quase se cruzaram.
DE VOLTA À ARGENTINA
Os jornais argentinos estimaram que cerca de 2.000 pessoas participaram do efetivo de segurança (entre agentes da Polícia Federal e agências privadas) durante os cinco concertos que os Stones realizaram em Buenos Aires.
“Em cada um dos concertos haverá um minucioso e estrito controle para o ingresso no estádio”, reportou o periódico Clarín. “Não será permitido o acesso de espectadores que portarem garrafas ou latas, telefones celulares, gravadores, câmeras de vídeo, máquinas fotográficas, walkman, fogos de artifício e/ou quaisquer objetos pontiagudos”.
Todo o esquema de segurança, no entanto, não impediu que um “rio de fanáticos”, conforme descreveu o diário La Nacion, ou simplesmente “aqueles roqueiros loucos”, nas palavras de Bando, circulassem nas imediações do estádio.
Bando chegou adiantado a Buenos Aires. O velho pisou tão fundo no acelerador, que parte da sinalização do contêiner, presa à carreta, voou longe e se perdeu em alguma ruta argentina. “Você é louco”, disse o amigo Maleta, que o acompanhava no carona.
Bando estacionou o Scania 387 próximo ao estádio, e decidiu aproveitar o tempo livre para levantar alguns pesos ‒ naquela época, a moeda argentina equivalia ao dólar americano. “Fui vender caipirinha”, conta.
É sabido que os gringos são apaixonados por caipirinha. Não só os argentinos, mas os próprios Rolling Stones. Que o diga Mônica Santoro, ex-esposa do craque Romário. À época, a modelo foi convidada por um agente, amigo do guitarrista Ron Wood, durante as apresentações no Rio de Janeiro. Ela revelou ao Jornal do Brasil que os Stones “adoraram a caipirinha”. No entanto, continua a publicação, “não conseguiram traduzir a palavra ‘saudade’, ao falarem das recordações que levarão do Brasil”.
Qual a surpresa de Bando quando, ao sair com um caldeirão de caipirinha, fora preso pela polícia “junto com os roqueiros”. “Estava de chinelo e bermuda”, lembra. “Mas os homens acharam que eu era o ‘bom-da-boca’ dos roqueiros. Conclusão: colocaram um bocado de gente num ônibus e nos levaram até o calabouço.”
À época, uma lei nacional proibia o consumo de bebidas alcoólicas em vias públicas. Tanto o Clarín como o La Nacion, reportaram algumas detenções ocorridas naquele período. Alguns fãs foram detidos por estarem “bebendo em via pública”.
Por “calabouço”, Bando se refere ao cárcere para onde foi levado junto com os demais roqueiros. “Não tinha janela nem banheiro”. A memória falha e o velho não soube dizer com precisão quando foi detido. A única lembrança é que passara uma noite na cadeia. A sorte foi que alguns dos presos, uma turma de Bariloche “com muito dinheiro”, foi liberada.
Ao que tudo indica, os argentinos que deixaram a prisão teriam voltado às imediações do estádio e avisado aos representantes da Borlenghi, transportadora a cargo dos geradores de energia, que um dos funcionários estava preso.
“Todo mundo estava desesperado. ‘Será que ele morreu dentro do caminhão?’, se perguntavam”. Por fim, foram ao resgate do companheiro que ainda teria de descarregar a encomenda no estádio.
Àquela altura, Mick Jagger e os Stones eram recepcionados em um coquetel na embaixada britânica, de acordo com informações do La Nacion. Não faziam ideia, claro, de que uma caipirinha poderia ter mudado a história daquela turnê ‒ o atraso na entrega de um dos 37 geradores poderia afetar o desempenho do espetáculo. Nesta história, porém, todas as partes saíram satisfeitas. Até mesmo os Stones.
https://www.youtube.com/watch?v=cxzxBrwkhwM
Antônio Bando trabalhou por mais alguns anos na estrada antes de se aposentar devido a um acidente que lhe tirou a visão de um dos olhos. Hoje se divide entre os trabalhos domésticos, a casa de praia em Bertioga, e rememorar com os amigos as várias histórias que colecionou ao longo dos mais de 30 anos como caminhoneiro.
Diz que ficou “mais famoso que os Stones na Argentina”. Não duvido.
Rômulo Cabrera é correspondente de Suzano
romulocabrera@agenciamural.org.br