Seja o carro do ovo ou uma inusitada moto adaptada com cabine de som, passando pelas músicas tradicionais das ganhadeiras ou o coro dos ambulantes, cada modo de negociar tem trilha sonora própria no bairro de Itapuã, em Salvador.
Nesse universo de empreendedorismo ritmado, o autônomo Daniel França, 34, usou a criatividade para ganhar dinheiro e chamar atenção por onde passa. Com uma “moto de som”, ele circula pela região divulgando serviços e comércios locais através de jingles e banners.
“Por onde passo, chamo atenção e todos ficam em alerta, perguntando o que é aquilo. É também uma segurança para as pessoas, por exemplo, quando eu passo em uma rua deserta”, diz o empreendedor, que planejou e recriou o seu veículo.
Daniel é contratado principalmente por comerciantes, já fechando roteiro e o tipo de divulgação. O circuito combinado também é elaborado estrategicamente para economizar combustível. Sobre o anúncio, ele explica que ajuda o cliente a planejar e compor os jingles pelo whatsapp. “Já sei o que funciona para cada região e para cada tipo de serviço”, diz.
Durante esta época de pandemia, ele afirma que as músicas têm alegrado as pessoas confinadas em quarentena. “Elas lembram que não é o fim do mundo. Muitos estão completamente desanimados, desesperados, e quando eu passo, olham para a rua, para ver o que está acontecendo; isso ajuda a distrair”, diz.
Apesar do diferencial, o veículo integra o circuito de carros que comercializa variadas mercadorias pela região. Um desses é conduzido pelo comerciante Flávio Antônio, 43, que há dois anos sai diretamente do bairro 7 de Abril, onde mora, para vender ovos e outros produtos em Itapuã.
“É um bairro propício para as vendas. A galera compra bem em Itapuã. Sabem que na nossa mão, além de ser mais barato, é mais cômodo. Afinal, a gente traz o mercado para a porta da casa das pessoas”, diz.
O jingle para alertar que o carro do ovo está passando na rua já ganhou remix e paródias. Para ele, a música cumpre apenas seu papel comercial. “A gente acaba se acostumando com o que a gente tem. Na realidade, tem que gostar daquilo que faz. E eu gosto de trabalhar dirigindo e me comunicando com pessoas diferentes”, afirma.
A sonoridade profissional de Itapuã também está relacionada ao surgimento do bairro, onde pescadores, lavadeiras, baianas de acarajé, entre outros, utilizavam o canto como ferramenta de venda. Atualmente, essas canções são conhecidas como “música de ganho” e relembradas pelas Ganhadeiras de Itapuã.
“As ganhadeiras são o símbolo maior do empreendedorismo aqui na Bahia. Vendiam tudo que encontravam e que podia ser consumido, da culinária afro-brasileira ou indígena, peixe, beiju, frutas… Conseguiam juntar dinheiro e comprar mais alforrias de outras irmãs”, explica Ivana Muzenza, 38, baiana de acarajé e produtora cultural.
Ivana é baiana de acarajé desde os 13 anos, trabalhava em um ponto fixo e com eventos; durante a pandemia passou a vender por delivery. Para ela, as ganhadeiras só mudaram de formato ao longo do tempo, pois a prática ainda resiste. “Tem umas que vendem o chip de celular, o pen drive. Você passa na rua e ouve ‘olha o chip, olha o chip’. Elas são ganhadeiras também”, exemplifica.
Já Verônica Santana, 36, é artesã e artista do grupo Ganhadeiras de Itapuã. Nasceu em Periperi, bairro do subúrbio de Salvador, mas mora em Itapuã desde criança com a família.
Ela explica a relação comercial do bairro como principal fonte de renda da população. “Itapuã sempre esteve relacionado ao empreendedorismo, desde a pesca, a lavagem de roupas, os bordados, as costuras, as iguarias e muitos outros ofícios que eram pensados a partir do que se tinha de matéria prima”, acentua.
Para a ganhadeira, o termo empreendedorismo é algo novo em nosso vocabulário e um sinônimo para o velho e conhecido ganho. “É preciso ter uma explicação de que o empreendedorismo é o sistema de ganho. Quando se explica isso para as pessoas, elas se identificam e passam a assumir essa identidade”, avalia.