São 11h de um domingo ensolarado e há pelo menos duas horas, Michele Rodrigues, 41, e Rosalina Oliveira, 45, estão limpando um canil improvisado para 42 cachorros, que antes viviam abandonados nas ruas de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo.
A construção do espaço foi idealizada por Michele, que mora nas proximidades e ocupou o terreno de posse da Cohab. Ela afirma que o local estava abandonado e tinha se tornado um ponto de uso de drogas para dependentes químicos.
“A primeira coisa que fiz foi murar o local e colocar um portão. O canil existe há oito anos. Começamos resgatando da rua, castrando e devolvendo para rua, ou aguardando para que fossem adotados”, diz Michele. “Mas os cachorros mais velhos são difíceis de doar e acabam ficando. Hoje, todos têm mais de um ano”
Sem nenhum tipo de ajuda governamental ou privada, Michele afirma que tem o sonho de reformar as baías do canil, espaço pequeno com grades e casinhas onde os animais dormem e, às vezes, comem.
Algumas pessoas abandonam cães na porta do local. Além disso, Michele afirma que espalharam um boato de que ela e Rosalina recebem R$ 3.000 por mês para cuidar dos animais.
“Não se pode simplesmente abandonar um bicho aqui com a gente como se eles não fossem nada”, diz.
A maioria dos animais chegou ao local doente, com traumas por maus-tratos ou atropelamento. Michele compra comida, medicamentos e produtos de limpeza com dinheiro de doações e do salário que recebe trabalhando como segurança.
“Para instalar água e luz no terreno tive que entrar em um processo para abrir um CNPJ do canil e provar que prestava um serviço social cuidando de cachorros abandonados”, explica.
FOME
Perto das 12h, o desinfetante já foi espalhado e o chão começa a ser seco, a limpeza está perto do fim e os cachorros pulam e latem esperando a comida. Com o alimento servido, a inquietação dos animais cessa.
“Tenho que preparar essa panela com arroz de cachorro e fígado todo dia, porque a ração que temos não está dando conta. Eles não têm culpa, não sabem se amanhã terá comida”, explica Rosalina que trabalha como diarista e ajuda diariamente na limpeza e outros afazeres do canil.
“Para botar tudo de pé eu gastei R$ 30 mil. Fiz um financiamento em uma linha de crédito para pagar por vários anos. Quase todo o meu salário fica aqui”, conta Michelle.
“Só compro comida para minha casa com o vale-alimentação do meu emprego. As baías estão caindo, algumas têm buraco nas telhas e alguns animais precisam ficar isolados por temperamento ou por estarem tratando alguma doença contagiosa. Precisamos de ajuda”, desabafa Michele.
Para manter o espaço, ela vende rifas e faz campanhas de doação na página Canil da Michele no Facebook. Também são divulgadas fotos dos cães que aguardam um novo lar.
Alguns cuidados são tomados, antes da doação. “Não dou de primeira para quem mora de aluguel, para quem mora de favor na casa de alguém. Se a pessoa tiver que mudar de casa, como vai levar o cachorro?”, diz. “Há casos de pessoas que pegam e devolvem em uma semana, ou acabam abandonando de novo na rua por ter mudado de ideia”.
CÃO COMUNITÁRIO
Há 2 anos, Michele faz tratamento de um câncer de mama. Hoje a doença está controlada e a terapia medicamentosa é menos agressiva. Mas mesmo no período em que realizava as sessões de quimioterapia ela continuava a limpar o espaço e a alimentar os animais.
“Se eu parar, quem limpa? Não posso me pegar na minha dor”. Ela afirma que está deixando de comer carne por pensar nos animais.
Pelo bairro, casinhas estão espalhadas pela rua onde está localizado o canil. Com base na lei do cão comunitário, alguns animais são tratados na rua por elas, que limpam o ambiente e levam ração.
No entanto, mesmo que os cães despertem a empatia de alguns, enquanto Michele deposita ração nas vasilhas pela via, um homem resmunga na porta de um bar: “Essa ração aí está atraindo ratos para cá”. Michele argumenta que o “chama rato” é o lixo que algumas pessoas descartam irregularmente na rua.
Por fim, outra atividade realizada pelas mulheres é a castração. “Faço uma campanha para uma veterinária de Itaquera de castração a preço popular e ela castra nossos cachorros de graça”, comenta Michele. O momento mais difícil para ela é quando a ração acaba. são necessários 15 kg por dia.
“Esses cachorros são nossa vida. Cada um deles é um pedaço da gente. Fazemos isso pelos bichos, pedimos respeito e queremos conscientização”.
Giacomo Vicenzo é correspondente de Cidade Tiradentes
giacomovicenzo@agenciamural.org.br
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