Cerca de cem famílias enfrentam a ameaça de perderem as residências no bairro Panorama, em Cajamar, na Grande São Paulo. Trata-se da Ocupação Queixadas, iniciada em 2019 em um terreno que estava vazio e tem a posse discutida na Justiça. O episódio é mais um em meio uma série de despejos espalhados por cidades da região metropolitana.
O juiz Renato dos Santos, da 1ª Vara Judicial da Comarca de Cajamar, determinou em 5 de setembro uma ordem de despejo e que a desapropriação ocorra em 60 dias corridos após a notificação do oficial de justiça.
“Procuramos todos os meios possíveis, fizemos atos, panfletagens pelo direito à nossa moradia, mas [a gestão atual e a anterior] nunca se manifestaram em atender nossa reivindicação“, afirma Bianca Francisco, 41, filha de Maria Zélia do Nascimento, 64, uma das primeiras moradoras a erguer um barraco na ocupação.
Família de Zélia na Ocupação Queixadas @Ingrid Fernandes
Nos últimos meses, os moradores iniciaram a campanha “Para não despejar, só falta o Kauãn assinar”, direcionada ao prefeito de Cajamar, Kauãn Berto (PSD). Eles citam que o impasse também não teve avanços com o antigo prefeito Danilo Joan (PSD).
Após a mobilização e repercussão do ato em frente a sede do partido do prefeito de Cajamar, eles participaram do podcast PodPah, apresentado pelos influenciadores Igão e Mítico.
A jovem Manuella Eloá Nascimento da Silva, 16, uma das várias adolescentes da ocupação, contou a situação atual das famílias. Porém, a situação não foi resolvida.
“Nós realmente construímos do nada. Cada um sua contribuição, sua história, sua forma de viver. Cuidamos de tudo aqui, desde a defesa uns dos outros até dos espaços”, explica Bianca.
‘Se vierem tirar, vão ter que me dar moradia. Não vou ficar no meio da rua. Até os barracos de madeira o povo está deixando cair. Só trocam quando a parede desaba’
Zélia, uma das primeiras moradoras da ocupação
Segundo ela, o barraco está cedendo. “Meu quarto ficou uns sete meses com a coluna de madeira entortando. Até que eu vi que ia cair em cima de nós e troquei todas as folhas em volta”, complementa.
Dona Zélia caracteriza a comunidade como uma grande família, e, mesmo com os problemas do dia a dia, quer procurar pertencer à comunidade @Ingrid Fernandes
A Ocupação dos Queixadas leva um nome que faz referência tanto ao som de defesa do animal silvestre quanto ao histórico movimento grevista dos trabalhadores da Companhia de Cimento Portland Perus, que, na década de 1970, paralisaram a produção por mais de sete anos. As primeiras famílias da atual ocupação realizaram atos de luta por moradia em Caieiras, onde ficava a sede da multinacional, em 2018.
A polêmica sobre a propriedade
A ocupação atual enfrenta disputa pela posse do terreno desde o início, quando Vera Lúcia Zanotti, que se apresenta como herdeira da área, ingressou com uma ação de despejo na primeira semana de ocupação. Ela alega que o terreno foi adquirido pelo próprio pai e que, posteriormente, construiu uma chácara ali.
Apesar de apresentar uma escritura de compra e venda de 1988, Vera não conseguiu regularizar a posse e entrou com um processo de usucapião em 2016, que ainda não foi reconhecido judicialmente.
Cerca de 100 famílias vivem na região @Ingrid Fernandes
A Justiça concedeu uma liminar em 2019 a favor de Vera, mas a decisão foi suspensa durante a pandemia de Covid-19 devido ao avanço da campanha Despejo Zero. Em 2021, a ordem contra os moradores foi retomada, com a imposição de multa por qualquer construção ou alteração na moradia.
Ainda durante a pandemia, o STF (Supremo Tribunal Federal) suspendeu as desapropriações em todo o Brasil até outubro de 2022.
Um dos argumentos dos moradores é que uma legislação municipal de 2008 classificava a região como uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social), uma tipificação destinada à regularização fundiária e urbanização de áreas de baixa renda.
No entanto, em 2019, a região passou de Zei-5 (Parque Panorama 1), para integraruma ZMU (Zona Mista Urbana) vizinha que tem divisa com o município de Santana de Parnaíba.
Ocupação fica na região da rua Borá onde no passado era considerada uma ZEI @Reprodução
Jesus*, 36, morador da ocupação, afirma que o secretário, Leandro Arantes, apresentou o compromisso de levar ao Executivo as demandas da comunidade. Contudo, desde 2023, foram três tentativas de conversa, e ela nunca ocorreu.
Segundo ele, desde o início, as famílias procuraram o diálogo com o poder público. A impressão, cada vez mais consolidada entre os moradores, é de que a prefeitura se nega a construir soluções — não por incapacidade técnica ou legal, mas por decisão política.
“Auxílio nenhum foi apresentado formalmente, nem tampouco qualquer tipo de encaminhamento específico ou avaliação técnica individualizada”, afirma Irene Maestro, advogada da Ocupação dos Queixadas.
Ela afirma que, “não podemos falar somente de política de assistência social, mas também em política habitacional”.
Moradores criaram horta comunitária no espaço @Ingrid Fernandes
Na decisão, o juiz Renato dos Santos rejeitou que quem vive na região receba auxílio-aluguel e disse “que os ocupantes não atendem aos requisitos para o percebimento”, apesar de viverem há sete anos na área.
Segundo os ativistas, as famílias da Ocupação dos Queixadas são contra o recebimento de quaisquer benefícios em prol da desapropriação ou medida favorável à requerente Vera Lúcia Zanotti.
Atualmente, a maioria da comunidade, mulheres e mães solo, vive apertando as contas no final do mês, trabalham nos galpões de logística da cidade ou como diaristas nos condomínios da região. “Incentivamos os moradores a estudar, a buscar trabalho. Tivemos muitas pessoas inscritas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) durante o período”, conta Chico Tonho, morador e coordenador da ocupação.
”A gente não queria viver numa comunidade como as outras, por isso criamos espaços como a biblioteca, deixamos espaço para a horta, para o barracão”, completa.
Local possui comércio e outras estruturas criadas por moradores @Ingrid Fernandes
As crianças da ocupação sempre estiveram incluídas nas atividades e projetos na ocupação @Ingrid Fernandes
Horta comunitária recebeu o nome de antiga moradora mais velha da ocupação, a biza Cecília @Ingrid Fernandes
Em julho, os moradores se organizaram para festejar o aniversário de seis anos da ocupação @Ingrid Fernandes
Galpão construído pelos alunos da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo) é utilizado para os moradores realizarem atividades de carpintaria e engenharia @Ingrid Fernandes
Durante o período também tiveram o apoio de ativistas, sindicatos, coletivos e outras organizações, como o Conlutas. “Na pandemia, o pessoal do MST vinham aqui e entregavam os kits de alimentação, de roupa, de cobertor. Tanta coisa que a gente conseguia distribuir para todo mundo e ainda organizar distribuição para outras comunidades”, conta Cristian.
Outros moradores disseram ter optado viver na ocupação pela mesma condição: não conseguiam mais arcar com aluguéis em áreas urbanas. “90% das pessoas que vivem de aluguel quando veem uma terra abandonada talvez não tenham a mesma coragem que a nossa, mas a mesma vontade têm”, afirma Chico Tonho.
A comunidade buscou alternativas para que a Prefeitura implementasse um processo de realocação ou urbanização da área.
Despejos pela Grande SP
A Ocupação dos Queixadas não está isolada nesse cenário. Ela faz parte de uma onda de despejos que atinge todo o estado de São Paulo.
Segundo a Campanha Despejo Zero – SP, há atualmente 686 comunidades, ocupações e favelas ameaçadas por processos de remoção, onde vivem cerca de 504 mil pessoas. Entre elas, 126 mil famílias estão sob risco direto, e 12.865 já foram despejadas.
Os dados apontam que 62,6% das pessoas ameaçadas são mulheres, 17,1% são crianças, 16,8% são idosas e 66,3% são pessoas negras.
Mais da metade dos casos está concentrada na capital paulista, seguida por municípios da Grande São Paulo como Guarulhos, Osasco, São Bernardo do Campo e Francisco Morato.
O levantamento apresentado foi realizado por meio de uma metodologia colaborativa com dados fornecidos por movimentos e organizações que integram a campanha, pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O que dizem os citados
A prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Habitação, afirma que “está em elaboração o Plano Local de Habitação de Interesse Social, que visa consolidar um diagnóstico atualizado do déficit habitacional e orientar a formulação de políticas públicas de habitação com base em dados técnicos”.
Lucília Coutinho, amiga e atual moradora da chácara onde Vera Lúcia viveu, diz que é falsa a afirmação de que o terreno era área abandonada. “Pode ter havido o interesse na área, mas, atualmente não, por isso pode partir para o registro do imóvel”, afirma.
Faixa com os dizeres Ocupação Queixadas Fica @Ingrid Fernandes
Sobre a reintegração de posse, ela explica que a prefeitura era responsável por apresentar o plano de ação da desapropriação.
“Levou um ano e oito meses e só fizeram porque o promotor indicou que o descumprimento poderia enquadrá-los em crime de responsabilidade.”, lembra.
De acordo com ela, ninguém quer enfrentar o problema de fato. “Teria como enfrentar esse problema? Sim. Eles tentam marcar uma reunião com ele, mas não conseguem. Então, que ocorra para que eles tenham moradia digna”, exclama.
*Nome mudado a pedido dos entrevistados por receio de perseguição
