Karoline Oliveira, 19, divide a casa onde mora em Heliópolis, na zona sul de São Paulo, com mais sete pessoas. Desde o início da pandemia do novo coronavírus e as medidas de isolamento adotadas para conter o avanço da infecção, a renda mensal da família sofreu uma queda.
“A firma do meu pai não está pagando o salário dele e minha irmã foi demitida”, conta Karoline, cujo pai é armador de obras e a irmã trabalhava como operadora de telemarketing.
No momento, a única renda fixa na residência vem da bolsa-auxílio que ela recebe —e que corresponde a menos de um salário mínimo.
O pai da jovem, de 60 anos de idade, faz parte do grupo de risco de pessoas mais vulneráveis à Covid-19. Por necessidade, ele ainda tem saído de casa para trabalhar. “Meu pai tem uma horta e circula de bike pela comunidade vendendo legumes. Mesmo sabendo que é arriscado por causa da pressão alta e diabetes, ele continua indo atrás do dinheiro porque a gente precisa”, diz.
Nas últimas semanas, sete em cada dez famílias (68%) que vivem na favela de Heliópolis, que é a maior da capital paulista, também tiveram perdas no rendimento mensal. Além disso, hoje, 20% delas já não têm nenhuma renda.
Os dados são da pesquisa “Heliópolis contra o Coronavírus”, divulgada nesta semana pelo Observatório De Olho na Quebrada, projeto da Unas (União de Núcleos e à Associação dos Moradores de Heliópolis e Região), onde Karoline é bolsista há um ano.
O levantamento, feito com 514 respostas de moradores de Heliópolis no final de março, mostra ainda que 63% das famílias do bairro vivem com renda mensal de até dois salários mínimos e que 65% dos entrevistados deixaram de trabalhar e/ou estudar após as orientações de isolamento social.
VEJA MAIS:
Confira a cobertura especial sobre o coronavírus e as periferias
Empregadas narram rotina de trabalho e precisam escolher entre emprego e risco a Covid-19
Nos trens e nos ônibus: os cuidados para quem não pode evitar o transporte público
A comerciante Gabrielle Rodrigues, 42, é proprietária de uma loja de lingeries no shopping Heliópolis há seis anos. Desde o último dia 23, contudo, o estabelecimento está fechado por recomendação do governo do estado. “Estou há quase 15 dias sem ganhar nada”, relata.
Gabrielle morou durante 30 anos no bairro. Há dois, se mudou para o município de Santo André, no ABC, mas a mãe dela e o filho continuam morando em Heliópolis, e recebem uma ajuda financeira da lojista para se manterem. “Minha clientela é toda de lá também. Mas se a loja continuar fechada por mais duas semanas, não sei como vou pagar minhas contas”, comenta.
ATENÇÃO MAIOR ÀS FAVELAS
Aluízio Marino, 32, educador do Observatório De Olho na Quebrada diz que os dados da pesquisa “Heliópolis contra o Coronavírus” reforçam a importância do projeto de renda básica emergencial para trabalhadores informais, autônomos e sem renda fixa.
“Assim como qualquer território periférico, Heliópolis é marcada por relações informais de trabalho e por um forte empreendedorismo”, explica. “Com a necessidade da interrupção de comércios e serviços, as pessoas estão sem renda. Mas, além da falta de renda, vai faltar gás, comida e elas não vão ter dinheiro para pagar o aluguel”.
ALGUNS NÚMEROS:
65% deixou de trabalhar e/ou estudar
68% tiveram perda na renda
55% vivem em casas com três ou quatro pessoas
63% tem renda de até dois salários mínimos
Na quarta-feira (1º), o presidente da república Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou a lei que estabelece um auxílio de R$ 600 mensais a profissionais informais que tiveram a renda afetada pelo coronavírus.
O projeto, aprovado por deputados e senadores, prevê o pagamento do benefício para até duas pessoas da mesma família durante três meses. Porém, ainda não está claro como vai funcionar o benefício e como será o cadastro de quem ainda não recebe nenhum benefício.
Outro dado que o levantamento traz é que 46% dos moradores de Heliópolis afirmam utilizar o WhatsApp como fonte de informação. Por outro lado, pesquisadores da Unas têm monitorado grupos locais e já identificaram a divulgação de fake news referentes a casos de Covid-19 na comunidade.
“A gente não tem informações oficiais que deem conta de desmentir esses boatos. Essa falta de dados faz com que as pessoas fiquem ‘no escuro’. Na real, todo mundo está no escuro, mas é pior no contexto das favelas porque as pessoas ficam mais vulneráveis”, Aluizio Marino, do observatório De Olho na Quebrada.
A Secretaria Estadual de Saúde não divulga dados de casos por bairro, distrito ou hospital onde o paciente testou positivo para a doença. Entretanto, de acordo com informações do Ministério da Saúde, até quinta-feira (2), havia 2.981 casos confirmados de Covid-19 e 188 óbitos registrados no estado de São Paulo.
Segundo Marino, outro fator que exige a atenção do poder público é a adoção de políticas públicas específicas para o contexto dos moradores das periferias e favelas. “Como as próprias autoridades da saúde vêm falando, nós não fazemos a mínima ideia de como será o impacto da Covid-19 nesses territórios”, diz.
O educador explica que, hoje, os moradores de favelas estão dependendo apenas da ação voluntária de grupos que já se articulam nesses espaços, mesmo sem recursos do poder público.
“Acho que a principal medida para proteger essas pessoas seria acolher aquelas que já estão diagnosticadas com a doença, mas que não têm condições de se isolarem”, comenta. Em Heliópolis, mais da metade das residências (55%) são ocupadas por, pelo menos, quatro pessoas.
“É preciso que o poder público tome medidas para conseguir proteger essas pessoas. Ou a gente pensa em uma política específica para o contextos das favelas ou, então, daqui a algumas semanas a gente vai falar de coisas muito mais tristes”, finaliza Marino.