A Aldeia de M’Boy, vilarejo que deu origem ao município de Embu das Artes, na Grande São Paulo, completou 470 anos no dia 18 de julho deste ano. Ao longo dessa caminhada, diversos artistas ajudaram a construir a história e identidade da cidade turística, entre eles, está Antônia Aparecida Gonzaga, 72, ceramista e escultora de terracota.
Popularmente conhecida como Tônia do Embu, ela recebeu com estranhamento o título de Cidadã Embuense em 2017. Natural de São Paulo, a artista passou a maior parte da sua vida em Embu das Artes e confessa que raramente a chamam pelo nome de batismo. ‘’Um amigo meu me telefonou e disse que eles [Câmara] queriam dar o título. Eu gelei na hora e disse: ‘Como, cidadã embuense? Eu sou embuense. Ele retrucou, falando que eu não era’”, relembra.
Tônia começou a caminhada no mundo das artes com apenas 9 anos. Filha de oleiro, seu destino mudou ao conhecer Tadakyio Sakai, o famoso Mestre Sakai, em Embu das Artes. Logo quando o conheceu, se aproximou da arte da terracota e, desde então, não a abandonou mais. “Ele [Sakai] me levou na sala dele, tinha uma coleção enorme de arte popular. Fiquei alucinada com aquilo e ficava só observando.’’
Mestre Sakai morou em Pinheiros, Taboão da Serra e se instalou em Embu das Artes a partir da década de 1950. Ativo no movimento artístico do município, Sakai foi idealizador do primeiro Salão de Artes Plásticas de Embu, em 1964. O espaço reuniu trabalhos de artistas como Maria Auxiliadora, Walter Lewy e Raphael Galvez.
‘’Essa caminhada que dura todo esse tempo fez com que eu conhecesse os movimentos de artes da cidade de 1960 para cá’’, revela Tônia, que além de ter frequentado diariamente o Salão de Artes Plásticas, acompanhou Sakai em outras ações culturais do município.
Ela conta que a presença ativa de Sakai nos principais eventos da cidade se deve à sua paixão pela arte indigena.
Um desses eventos existe até hoje, a Festa de Santa Cruz. A celebração cristã é uma das manifestações folclóricas mais antigas da cidade. O evento, que une música e danças típicas, surgiu dos festejos iniciados pelos padres jesuítas a partir do século 17.
Sakai faleceu em 1981, mas Tônia seguiu à frente da realização da festa, mantendo a essência e originalidade. ‘’Acompanhei desde 1962, com meu pai. Só agora que não participei.’’
Entre idas e vindas, Tônia precisou voltar para o município por um motivo especial: restaurar as obras do Memorial Sakai, museu dedicado ao acervo de Mestre Sakai. ‘’Me deu uma tristeza porque quebraram as obras dele, mas ao mesmo tempo uma satisfação de recompor pedacinho por pedacinho’’, conta ela.
Inaugurado em 2003, o Memorial Sakai do Embu disponibiliza o acervo de peças do artista Tadakiyo Sakai. A Mural entrou em contato com a Secretaria de Cultura de Embu das Artes, que nos informou que a reforma do centro cultural está em fase de finalização.
A efervescente M’Boy
Engana-se quem pensa que Embu das Artes se tornou ponto turístico a partir da criação da Feira de Artes e Artesanato. No início do século 20, a cidade já atraia visitantes de todo o estado de São Paulo graças à Igreja Nossa Senhora do Rosário. Em 1920, a cidade revelou para o mundo o primeiro nome artístico, o escultor e pintor de arte naïf Cássio M’Boy.
Cássio da Rocha Matos, abraçou o sobrenome M’Boy por conta dos artistas o associarem sempre ao nome da cidade, que no período se chamava M’Boy. Já nessa época, artistas e intelectuais eram atraídos tanto pela beleza da cidade como pelo talento de Cássio M’Boy.
De acordo com o historiador e jornalista Márcio Amêndola, 62, essa atração de artistas e intelectuais de todo o Brasil era muito clara. Era tanta que Cássio tinha uma relação muito próxima com artistas da Semana de Arte Moderna de 1922.
Artistas como Mário de Andrade e Anita Malfatti visitavam a cidade e a casa do escultor de arte naïf. Um desses artistas foi Guilherme de Almeida, que desenhou o brasão da cidade.
Não demora muito para que grandes nomes da classe artística venham morar na cidade. Além de Mestre Sakai, artistas como Solano Trindade e Mestre Assis de Embu chegam à cidade entre as décadas de 1950 e 1960.
Falta de reconhecimento a Trindade
O poeta, pintor e teatrólogo Solano Trindade chegou à cidade em 1961, com seu grupo folclórico, trazendo manifestações da cultura negra como o maracatu.
‘’Quem vivenciou ou esteve aqui na cidade nessa época, percebeu o quanto essas pessoas tiveram uma baita contribuição para que hoje a gente pudesse desfrutar dessa riqueza’’, revela o artista plástico e professor aposentado da rede pública, Jair Alves Gaiga, 63.
Gaiga se criou basicamente solto no bairro Jardim Santa Tereza. Ele descreve Embu das Artes como uma terra repleta de magia. O professor aposentado se envolveu com o movimento cultural da cidade na juventude.
Este ano marca 116 anos do nascimento de Solano Trindade, e para Gaiga faltaram ações socioculturais em celebração ao legado do poeta.
‘Até esse presente momento não se vê manifestação por parte de departamento de cultura para projetar e valorizar cada vez mais a produção cultural do Solano’
De acordo com a Secretaria de Cultura de Embu das Artes, as contribuições para a cultura popular da família Trindade, bem como a participação em exposições no Centro Cultural Mestre Assis, foram abertas ao público, como Jovino Gama, Wanderlei Cluff, Paulo Dud, Gaiga, Hugo Fernando, Cláudio Veneranto e Zé Figueiredo, entre outros artistas.
Com 49 anos de existência, Teatro Solano Trindade é espaço de pesquisa e disseminação da cultura negra popular na atualidade @Felipe Barbosa/Agência Mural
Feira de artes
Como conta o historiador Márcio Amêndola, a chegada de artistas a partir da década de 1960 agilizou a criação da Feira de Artes e Artesanato. Além disso, a repressão a outro movimento ajudou involuntariamente a ampliar o espaço.
Uma feira que atraía milhares de artistas era a Feira Hippie no Centro Histórico de São Paulo. Ela foi repreendida pelo movimento militar, o que fez com que artistas começassem a expor trabalhos no centro de Embu das Artes.
Nesse período, Embu era a cidade que mais representava o lema da cultura hippie. Além de começar a atrair artistas de outros cantos do estado, artistas locais começaram a abraçar a ideia de vender peças de artesanatos aos turistas, trabalhos esses que iam desde olarias e esculturas de barro. Dessa forma, a Feira de Artes e Artesanato foi inaugurada pela Prefeitura de Embu das Artes em 1961.
Artesã Sol vende colares difusores em sua barraca @Felipe Barbosa/Agência Mural
A artesã, arte-educadora e mestra jungueira Solemar Cristina da Silva, 51, começou a expor na Feira de Artes e Artesanato em 1988. Hoje, ela divide o tempo entre a produção artesanal de bijuterias de metal, a militância ativa no movimento artístico e cultural e a tradição do Jongo afro-brasileiro.
Ao longo desses 36 anos de feira, Sol viu o filho crescer, lidou com o boom da produção artesanal no centro de São Paulo e se reinventou ao passo que a clientela dela diminuía com a migração de chineses e peruanos para o comércio popular.
“Quando entrei, comecei a soldar prata, bronze, cobre, e eu fazia brincos, colares e pulseiras. Depois peguei muita moda das novelas das 8, depois vieram os peruanos e chineses, aí isso começou a engolir um pouco a gente”, conta.
A artesã com seu filho na Feira de Artes e Artesanato na década de 1990 @Acervo/Solemar Cristina da Silva
Sol é uma forte defensora da popularização da Feira de Artes e Artesanato entre os moradores locais, mas teme que a banalização mude isso. Atualmente a feira compete com lojas, restaurantes e bares no entorno do centro de Embu das Artes.
‘O público mudou, o nosso público embuense não está acostumado com a nossa arte. Eles ainda falam ‘feirinha de Embu’, sendo que nós somos a maior feira da América Latina. Eles ainda não conhecem a história’
Em 2023, a Câmara de Embu das Artes aprovou lei que permite mesas e cadeiras nas calçadas do perímetro histórico, tirando espaço das barracas da Feira de Artes e Artesanato. Os expositores já foram surpreendidos pela retirada de canteiros em frente a bares e restaurantes em 2021.
“Nós piscamos e já estava tudo pavimentado. Agora o barulho de música nos restaurantes é tão alto que o próprio artesão não aguenta mais ficar ali, não dá para você ficar com uma barraquinha no meio daquilo, porque fomos espremidos”, conta Sol.
SEIS PONTOS SOBRE A HISTÓRIA DE EMBU
O município de Embu das Artes reconheceu o dia 18 de julho, data do aniversário de Aldeia de M’Boy, por meio de uma lei instaurada em 2002. A efetivação da lei é fruto de uma reivindicação de artistas locais, que defendem a tese do historiador Moacyr de Faria Jordão, no livro ”Embu na História de São Paulo”.
A cidade também celebra a emancipação de Itapecerica da Serra em 18 de fevereiro de 1959. Mas historiadores defendem a celebração do começo desde o século 16, quando começou a habitação na região.
Jordão sugere que, a partir do relato historiográfico de 1554, a região é sucessora de Maniçoba, tentativa frustrada de aldeamento indígena na região de Itú no início da formação da vila de São Paulo.
A segunda hipótese conta a história de Embu a partir da venda da aldeia pelos bandeirantes Catarina Camacho e Fernão Dias. O casal vendeu o vilarejo com a antiga Capela de Nossa Senhora do Rosário para os padres jesuítas da Companhia de Jesus, que catequizavam os indígenas da região.
O conjunto jesuítico Nossa Senhora do Rosário foi construído em meados do século 16. A antiga capela foi transferida para o alto da colina da Aldeia de M’Boy e a construção foi iniciada em 1628 pelo Padre Belchior de Pontes.
Hoje, o Museu de Arte Sacra dos Jesuítas e a Igreja Nossa Senhora do Rosário se destacam como o mais rico e antigo conjunto arquitetônico jesuítico do Estado de São Paulo.
A preservação do conjunto jesuítico tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) revela o valor histórico de Embu das Artes no contexto nacional.
‘’A primeira nave central do conjunto jesuítico, de 1690, é real, a parede é de taipa de pilão. Diferente do Pateo de Collegio, que tem apenas 3 metros de parede pertencentes à primeira edificação, de 1554’’, afirma o historiador Márcio Amêndola.
Movimento M’Boi
Em outubro de 2021, o Iphan abriu uma minuta que tinha como proposta a flexibilização da regulamentação de equipamentos publicitários, além de propor alterações na área de preservação. A consulta sobre o tombamento no município teve prazo curto, o que causou indignação entre os moradores.
Foi assim que surgiu o Movimento M’Boy, que busca priorizar a educação patrimonial e a cultura imaterial por meio de aulas, saraus e exibições de filmes no centro histórico.
‘’Assim nós começamos o movimento de resgate cultural da cidade, o folclórico, e também o histórico, que é mais uma parte envolvente tanto da parte da colonização quanto da parte artística’’, revela o músico e historiador Marcel Moreno, 42.
Registro datado de 1901 da Festa da Santa Cruz no livro ‘’Costumes da Roça’’ (1912), de Joaquim Gil Pinheiro @Acervo/Márcio Amêndola
Atualmente, o Movimento M’Boy abrange ações socioculturais, como M’Boy Subterrânea e o Festival M’Boy. O festival, que teve a terceira edição consecutiva em 2024, é sempre comemorado em 18 de julho, data que se refere ao aniversário da aldeia.
‘’Não há melhor maneira de resgatar a história do que promovê-la, e o festival vem com essa proposta, dessa conquista da data, uma conquista política da comunidade artística […] São dias de festa, porém não se comemora escravidão e colonização, mas sim a festividade no sentido da cidade. São 470 anos de chão, de história para contar’’, conta Marcel.
O aniversário da Aldeia de M’Boy faz parte do calendário de eventos de Embu das Artes, mas a prefeitura não ofereceu incentivos financeiros para financiar o festival de mesmo nome. Marcel Moreno explica que eles apenas ajudaram na liberação de estradas e protocolos de uso do solo.
“O festival foi uma ação pensada e executada pelos artistas, mesmo com essa data sendo reconhecida por lei e sendo dever do poder público arcar com os custos”, afirma.