Desde ontem (30), o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma a votação do Marco Temporal, uma tese jurídica que determina que povos indígenas só teriam direito às terras ocupadas ou disputadas por eles em 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a Constituição Federal. Na prática, essa mudança pode interferir diretamente na forma como as Terras Indígenas (TI) são demarcadas, dificultando o acesso desses povos ao seu território originário. Mas essa discussão pode afetar os indígenas das periferias de São Paulo?
A resposta é sim, em especial quem vive na Terra Indígena Jaraguá, na zona norte da capital paulista, que já é a menor área indígena no país. Isso porque em 5 de outubro de 1988 os Guarani não ocupavam integralmente a terra que hoje é demarcada para uso desta população.
“Onde estamos é uma área segura, apesar de ser um espaço pequeno, mas aqui é nosso território. Se o Marco Temporal for aprovado, a gente pode perder essas terras. Se perdemos, para onde eu vou levar meu povo? Para onde vou levar a minha comunidade? E as crianças, jovens e idosos?”, questiona o pajé Natalício Karaí de Souza, 53, da aldeia Takoa Pyau, uma das duas aldeias da TI Jaraguá.
Ele reforça que a comunidade é contrária à medida e que o Marco Temporal segue os interesses da bancada ruralista do Congresso Nacional, para dificultar demarcações e reduzir as áreas destinadas aos povos indígenas, fundamentais para a preservação do meio ambiente. Dados do último Censo do IBGE mostram que a população indígena que vive na Grande São Paulo aumentou 41%.
Segundo levantamento do urbanista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Nabil Bonduk, divulgado na Rádio USP, no dia da promulgação da Constituição, os Guarani do Jaraguá ocupavam uma área de apenas 2 hectares, insuficiente para reproduzir seu modo de vida tradicional. Hoje, eles ocupam 532 hectares já homologados , que podem estar em xeque caso o Marco Temporal seja aprovado. Pelo menos 1.400 pessoas vivem no local.
“Nós, indígenas, precisamos de uma área demarcada para vivermos em paz, livres e para manter nossa cultura, nossa raiz. Aqui na minha aldeia não se fala português só Guarani”, diz o pajé Karaí de Souza.
Segundo ele, representantes das aldeias da Grande São Paulo, sobretudo a que ele pertence, são contrários ao Marco Temporal e estão acompanhando a votação no STF. Pelo menos 600 indígenas de diversas etnias estão em Brasília, mobilizados em protesto contra a aprovação da tese.
Além da Terra Indígena do Jaraguá, em São Paulo existem mais três aldeias Guarani reconhecidas, em Paralheiros, na zona sul da cidade (aldeias Barragem, Krukutu e Tenondé Porã).
Em 2009, a Advocacia Geral da União (AGU) deu parecer favorável à demarcação de uma Terra Indígena da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, usando o critério da ocupação dos povos na data de 5 de outubro de 1988. Essa referência temporal deu origem à tese Marco Temporal que, se aprovada, passaria a ser aplicada para todas as aldeias indígenas do paísl.
A Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização indígena que reúne coletivos dos povos Guarani, protocolou no STF um documento que analisa de forma crítica a votação do Marco Temporal.
O efeito prático da aprovação da tese, segundo o texto, “seria a paralisação completa das demarcações de terras indígenas, e o risco da expedição em cadeia de ordens de reintegração de posse contra as comunidades indígenas”, além “do risco do aumento da pressão social para que as comunidades desistam de seus pleitos demarcatórios”.
Segundo o grupo, o Marco Temporal se baseia em uma referência de tempo que não faz sentido para os povos indígenas, já que muitos deles sofreram processos de expulsão de seu território. A aceitação da tese pode deixar as comunidades indígenas sujeitas a ações de reintegração de posse, com risco de novas expulsão de terras tradicionalmente ocupadas e protegidas pela própria Constituição.
Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World