Em mais um dia de almoço, José Maria Oliveira, desfrutava de uma das poucas e repetidas refeições – a bengala, um tipo de pão comprido e o acompanhamento, uma tubaína. Essa memória é um marco para ele desde que pisou em São Paulo, em especial na favela de Paraisópolis, onde nasceu o amor pelo território e se tornou liderança.
Mais conhecido pelas ruas da comunidade como Zé Maria, 71, e hoje aposentado, nasceu em Minas Gerais e viveu por lá até os 18 anos. Ao completar a maioridade, ele pegou a reservista e se jogou no mundo.
Em São Paulo, na cidade da “malícia”, como ele mesmo descreve, Zé Maria morou em diferentes lugares. Com o trabalho de ajudante de pedreiro era impossível parar em um só lugar. Passou uns anos em Santo André – no ABC Paulista, Pompéia, e outras, até cair na Vila Sônia, na zona oeste.
No bairro da Vila Sônia, ele pagava uma senhora para lavar as roupas. Esta senhora tinha uma conhecida que morava em Paraisópolis. Com isso, ele começou a se envolver com essa moça. Foi por meio dela que conheceu o bairro e parou por lá, onde construiu seu barraco.
Zé Maria lembra que a construção se deu com madeiras velhas encontradas no lixo. “Eu pegava pedaços de madeiras de resto de guarda roupa, tipo um papelão. Se você passasse o dedo, atravessava a madeira, de tão ruim que era”, comenta.
Enquanto construía a casa, encarou o fim do relacionamento por conta do racismo vindo do pai da parceira. “Ela era uma mulher branca e loira, e o pai dela não aceitou que nos casássemos. Eu, um rapaz negro, fiquei muito sentido, mas segui minha vida”, afirma.
Com o trabalho de porteiro durante a noite nos prédios do Morumbi, bairro vizinho, Zé Maria viu a comunidade crescer. Nordestinos e pessoas que buscavam uma vida melhor ocuparam os terrenos de Paraisópolis. Entretanto, enfrentavam problemas como as ações violentas por parte da polícia e os rumores de que os moradores seriam desapropriados, o que gerava medo na população.
“Eu ouvi muitas vezes que iriam nos tirar, que não queriam pobres na região e isso nos deixava muito inseguros. Não existiam direitos. Não tinha ninguém pra lutar por nós”, conta.
A tragédia que moveu a liderança
Em uma tarde, Zé Maria saiu para ver o movimento na rua e se deparou com um acidente: o vizinho havia sido vítima de um deslizamento no local em que buscava gramas para alimentar os pássaros.
Rapidamente, o aposentado se articulou para chamar socorro. Com o passar dos dias, a Prefeitura não encontrava o corpo, mas Zé Maria seguiu pressionando pelo resgate.
“Eu não podia deixar aquele homem que tem família, trabalhador, debaixo da terra como se fosse nada. Eu insisti, briguei e foram até o final”, comenta.
Foi no meio dessa tragédia que conheceu Maria Betânia, outra liderança do território que estava à frente da Associação de Moradores de Paraisópolis, hoje nomeada de União dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis.
Maria, ao perceber o engajamento de Zé naquela causa, o chamou para conhecer a Associação. Zé Maria já estava com sede de ajudar a comunidade e aceitou assumir o papel de liderança.
No corre por direitos básicos
Entre 1978 e 1979, Zé Maria entrou na Associação já engajado em lutar por direitos da comunidade como água, energia e moradia.
Uma das primeiras conquistas do líder comunitário foi a busca do direito à energia e a regularização com a taxa social, já que na comunidade o sistema elétrico vinha de um único poste – um tipo de “gato” onde os moradores pagavam um detentor.
Zé Maria comenta que, durante o mandato de Paulo Maluf na prefeitura, entre 1993 e 1996, a energia começou a ser inserida na favela, mas com pouca qualidade e sem que os moradores tivessem acesso ao relógio e à taxa mínima. Nesse momento, ele se jogou na briga pela regulamentação e pelo valor mínimo.
‘Colocaram energia em alguns pontos da favela, mas não abrangia a todos, isso fez com que os moradores ainda usassem gambiarras’
Zé Maria, sobre a chegada da energia em Paraisópolis
Daquele momento em diante, Zé Maria e os companheiros correram atrás de relógios, ampliando o acesso e a taxa mínima, que foi conquistada a partir de um abaixo assinado com 56 mil assinaturas no ano de 2002.
Outro problema era a escassez de água. Havia um único cano dividido entre os moradores. A liderança teve que bater na porta do Estado, Prefeitura, Sabesp e Eletropaulo durante anos.
“Eu já estava cansado, quando cheguei na Sabesp com meu pedido de água, falaram que a favela não ia beber água não, porque a favela ia acabar”, relembra Zé sobre o preconceito enfrentado.
Entre 1996 e 1998, Zé conseguiu cerca de 525 cavaletes para a comunidade, conquista que se deu no governo de Mário Covas.
Ele conta que foi até o Palácio do Governo e, após insistir, conseguiu conversar com o ex-prefeito, até conseguir a aprovação. Após isso, mapeou, junto com a equipe da Sabesp, a quantidade de relógios que seriam necessários, organizou os documentos dos moradores e levou para o registro. A população foi inserida na taxa social.
A luta pela garantia de direitos em Paraisópolis seguiu, especialmente em relação às desapropriações, onde Zé Maria viu ações truculentas ocorrerem.
“A polícia, o estado, tinham costume de chegar nos barracos às 5h da manhã para expulsar as famílias. Era um horário em que o morador ainda não tinha saído para trabalhar”, comenta.
A defesa por moradia popular digna incentivou Zé Maria e alguns aliados a fundarem, em 2013, a UBMCSP (União em Defesa da Moradia e Melhorias das Comunidades do Estado de São Paulo). Hoje, 13 pessoas compõem o movimento.
“Agregamos esforços nas questões sociais de moradores das favelas. Principalmente os que estão em situações de vulnerabilidade social”, conta.
O aposentado ressalta a força da organização, que já conquistou prédios CDHU na comunidade e o Parque Municipal de Paraisópolis – Lourival Clemente da Silva, que carrega o nome de um morador, comerciante e amigo finado do Zé Maria.
Aos 71 anos, ele diz sentir um carinho especial pelo território que o acolheu e sonha em uma Paraisópolis crescendo organizada. “Enquanto eu tiver vida, vou batalhar em coletivo para ver minha cidade crescer”, finaliza.