É por meio das aulas de dança contemporânea, às sextas-feiras, que a assistente de RH, Loren Barbosa dos Reis, de 21 anos, consegue expressar sua identidade e seus sentimentos. “Um dos melhores dias da minha semana é quando vou para o teatro”, afirma a moradora do bairro de Miguel Brada Baixo, em Suzano, na Grande São Paulo.
O local a que ela se refere é o Teatro dos Contadores de Mentira, um espaço cultural e artístico que funciona no bairro Parque Maria Helena e que, após 28 anos de trabalho, tem enfrentado incertezas sobre a continuidade de suas atividades.
Isso porque um decreto (9.943/23) publicado em junho pela gestão municipal de Suzano alterou o tempo de permanência e a possível renovação do uso do espaço pelo grupo, permitindo que as atividades funcionassem no local apenas até dezembro deste ano.
Em 2018, pela primeira vez, o grupo deixou de pagar aluguel e passou a funcionar na atual sede, disponibilizada pelo poder público, na primeira gestão (2017-2020) do atual prefeito Rodrigo Ashiuchi (PL). O terreno, de 600 metros, foi cedido por meio do decreto 9.223/18, que permitia o uso do espaço até agosto de 2023, com renovação por mais cinco anos. Porém, o contrato foi estendido por apenas mais seis meses.
“Nós criamos projetos a longo prazo, porque precisamos buscar recursos, parcerias e garantir segurança para esses parceiros”, diz a presidenta do Teatro, Daniele Santana. “Se não conseguirmos negociar, seremos obrigados a sair da cidade e deixar desassistida toda uma comunidade que acessa bens culturais através do nosso espaço. A cidade, a população e todas as pessoas com as quais temos criado relações e oferecido o espaço vão perder”.
Em nota, a Prefeitura de Suzano afirmou que o grupo deveria apresentar uma prestação de contas das atividades realizadas, porém o documento enviado, em abril, era um portfólio e não um relatório de contrapartidas. O documento foi submetido à avaliação do corpo técnico da Secretaria de Cultura e da Secretaria de Assuntos Jurídicos.
“A Secretaria de Assuntos Jurídicos avaliou que a permissão deveria ocorrer por um prazo de seis meses, passível de renovação por igual período, enquanto a prestação de contas é finalizada em sua totalidade”, diz a nota. “A Secretaria de Cultura tem feito um estudo para a abertura de um espaço multiuso que possa ser utilizado pelas demais entidades culturais do município”.
Vale pontuar que o último decreto ressalta que o Teatro funciona ao lado de uma unidade básica de saúde e que serão realizados estudos para ampliação e melhoria do espaço para atender a demanda de saúde do bairro.
“Como morador, eu perco a oportunidade de assistir grandes espetáculos e shows que eu não consigo ver aqui pelo que a Secretaria de Cultura oferece. Como artista, eu perco a oportunidade de fazer conexão com outros artistas que vêm de fora do Estado e do país”, declara o poeta e escritor José Vandei Silva de Oliveira, de 45 anos, conhecido nas redes como Poeta Seu Zé.
Morador da Vila Urupês, ele frequenta o local há 16 anos, onde já participou de diversos projetos cênicos, além de ter contado com o apoio do grupo para lançar dois livros de poesia. Oliveira acredita que outros coletivos poderão ser prejudicados, como estudantes de cursinhos populares e militantes dos movimentos estudantil e negro, que também utilizam o espaço.
“Como é um lugar de muita importância para arte, me deu muita visibilidade ao lançar meu primeiro livro, lá em 2016”, diz. “A Secretaria de Cultura não pensa em políticas públicas para pessoas LGBTs e periféricas. Quando você tira um teatro como o Contador de Mentira, tira a possibilidade dessas organizações conseguirem se movimentar”.
Usuários do espaço alegam que a decisão da prefeitura tem motivação política, já que o Contadores de Mentira tem incomodado os gestores por uma visão ideológica diferente da atual gestão.
“Todos estamos muito tristes, porque realmente o espaço é muito legal”
Loren Barbosa dos Reis, 21 anos
Teatro erguido pela população
Com a garantia de permanecer no mesmo local por pelo menos cinco anos, o grupo Contadores de Mentira se organizou e, com recursos próprios e ajuda da população, artistas e outros coletivos culturais, ergueu a estrutura física para realizar atividades culturais, com banheiros, salas e camarins.
De peças teatrais a reuniões de serviços de saúde, o Teatro construído pela população já foi palco de apresentações e visitas de grupos nacionais e internacionais. Nem mesmo a pandemia impediu a realização de mais de 330 atividades e o atendimento de mais de 30 mil pessoas ao longo dos cinco anos de trabalho.
“Eu acompanhei toda a transição. O mais impressionante foi como a comunidade local se envolveu”, descreve Oliveira.
Suzano conta hoje com pelo menos 12 espaços culturais, listados no site da Secretaria de Cultura, porém apenas cinco estão localizados nas periferias do município. O Contadores de Mentira não está listado no site da prefeitura, por não ser mantido pelo é um deles, apesar de não ser mantido pela prefeitura, mas por projetos independentes – além de ser um Ponto de Cultura certificado pelo Ministério da Cultura.
“Temos um reconhecimento nacional do nosso fazer”
Daniele Santana, presidenta do Contadores de Mentira
‘Falta diálogo’
O Contadores de Mentira alega que não há diálogo com a prefeitura e nem com a Secretaria de Cultura. Em abril, o grupo procurou os órgãos para pedir a renovação do uso do espaço, que venceria em agosto, mas foram surpreendidos com um pedido de desocupação (Ofício n 269/ GP/ 23) – e que só foi prorrogado para dezembro por pressão popular.
A desocupação havia sido publicada em janeiro deste ano, mas o grupo não foi comunicado.
Na sequência, o Contadores de Mentira protocolou o documento de prestação de contas das atividades, um pedido de revisão da ordem de desocupação e a solicitação de uma reunião com a prefeitura. Além disso, anexou cartas de artistas, de instituições nacionais e internacionais e de moradores de Suzano pedindo a permanência do teatro e a concessão definitiva do local.
Sem resposta, o grupo passou a usar as redes sociais para mobilizar a população, criar abaixo assinados e organizar protestos pela permanência do grupo. “O Secretário de Cultura [Walmir Pinto, que também é vice-prefeito de Suzano] deveria defender os artistas e as atividades culturais”, diz Daniele.
Questionada sobre o os pedidos de reunião, a Prefeitura de Suzano afirmou em nota que em nenhum momento o grupo manifestou seu posicionamento oficialmente à gestão municipal e que só soube dos pedidos de reunião pelas redes sociais. A prefeitura diz estar aberta ao diálogo.
Outras entidades, entre elas a Cooperativa Paulista de Teatro, tentaram mediar a situação, sem sucesso. “Os interlocutores eram parlamentares e representantes do Ministério da Cultura, mas disseram que ele [secretário de Cultura] estava irredutível “, alega Daniele “O acesso à cultura é reduzido, não só no nosso município, mas em toda a nossa região. Sempre fomos militantes da cultura nessas quase três décadas em que estamos em Suzano”.