“Através da agricultura familiar, descobri o amor que eu tinha pela natureza e o motivo da minha passagem pelo planeta terra. Isso realmente me transformou aos 40 anos de idade”, afirma Valéria Macoratti, 55, agricultora familiar orgânica e permacultora.
Com a companheira Vânia Maria dos Santos, 58, criou a Cooperapas (Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo), localizada em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo.
Protetoras de animais, elas chegaram ao território em 2007 em busca de um lugar mais saudável e espaçoso para cuidar dos bichos.Contudo, o contato com pequenos agricultores locais fez a dupla perceber as dificuldades de quem trabalha muito para ganhar pouco, sem apoio do poder público.
“No Plano Diretor da cidade de São Paulo nem existia a agricultura. Resolvemos montar a cooperativa para fortalecer o coletivo, ver se a gente conseguia alguma visibilidade e mostrar que a gente existia”, conta Valéria.
A iniciativa nasce em 2011 com a união de 28 agricultores que faziam agricultura orgânica em Parelheiros. Atualmente, a região possui uma média de 450 produtores no ramo – incluindo os que trabalham com agrotóxicos.
Nesta quarta e última reportagem do especial “Periferias e Justiça Climática: alternativas ambientais para os nossos”, vamos conhecer a história do casal que luta pelo direito à alimentação saudável dentro das periferias.
O início na agricultura familiar
Antes de trabalhar com o cultivo, Vânia e Valéria atuavam como professoras no Jardim Castro Alves. No entanto, a transição do modo de vida entre o campo e a cidade não foi tão difícil para Valéria, uma vez que ela passou sua infância em Guaianases, na zona leste, onde seu pai tinha uma horta.
Para se especializar, ganhou uma bolsa de estudos em Agricultura Biodinâmica no Instituto Brasileiro de Biodinâmica, em Botucatu, interior paulista, o que considera ter sido um divisor de águas em sua vida. A capacitação foi concluída em 2011, mesmo ano da fundação da cooperativa.
Atualmente, além de trabalhar com a agricultura orgânica, elas fazem turismo de base comunitária e continuam com os trabalhos de proteção animal. Na fazenda, vivem com 70 cães e 18 gatos, além de galinhas, patos, gansos e burros.
‘A gente procura fazer um trabalho diferenciado. Antigamente, na época dos nossos avós, não existia semente transgênica. Precisamos voltar os olhos a esse tipo de tecnologia e entender que a agricultura orgânica é uma revolução’
Valéria reflete que há muita desigualdade quando se trata de produção de alimentos. Ela explica que enquanto quem trabalha com a monocultura, prática associada aos impactos ambientais, recebe subsídio para fazer alimentos com agrotóxicos, os pequenos produtores são marginalizados, sendo eles os responsáveis por levar uma alimentação mais saudável para a mesa da população.
O descaso com o acesso à alimentação de qualidade também atinge as camadas mais vulneráveis da população. Valéria aponta como exemplo a gestão do ex-prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), que em 2017 criou a chamada “farinata”.
“Aquilo era o lixo da indústria alimentícia em forma de ração humana que seria servida nas escolas municipais e creches”, relembra.
Em resposta, a Cooperapas organizou o movimento “Comida de Verdade, no Campo e na Cidade”, e serviram um banquetaço com alimentos orgânicos no centro da cidade em 12 de outubro daquele ano.
Ali nasceu uma nova política pública que tornava obrigatório 30% dos alimentos orgânicos nas escolas. No entanto, devido às fortes chuvas em 2019, a maioria dos agricultores perdeu suas produções e não conseguiu cumprir um contrato com a Secretaria da Educação. O coletivo foi multado em mais de R$12 mil e uma vaquinha foi organizada para pagar a multa.
Parelheiros: a “Amazônia” de São Paulo
Atualmente, a Cooperapas passa por reestruturação para voltar mais forte no próximo ano. A rede atual possui 20 agricultores. O Armazém do Campo do MST (Movimento Sem Terra) é um dos parceiros que vendem os alimentos produzidos pelo coletivo.
Valéria também está trabalhando em um sistema de saneamento básico alternativo e criando projetos em prol do combate ao desperdício de alimentos.
“As pessoas acham que só podem comer aquela verdura linda, mas a abobrinha que ficou meio tortinha, elas jogam no lixo. Se você pudesse aproveitar todos esses alimentos, daria para alimentar muitas mais pessoas no mundo”, afirma.
Elas também recebem visitas de escolas da região. Nos encontros com as crianças, procuram trabalhar a conscientização ambiental e proporcionam uma experiência gastronômica, permitindo que os visitantes experimentem alimentos pouco comuns no dia a dia, incentivando-os a mudar seus hábitos alimentares.
“A criança vê um suco vermelho com flores e limão, pensa que é horrível. Quando prova, elas querem repetir. Isso acontece com os adultos também”, conta.
Valéria destaca ainda a importância da riqueza natural da região. “Antes de produzir alimentos, somos produtores de água. Para os políticos é bom vender esse lugar como triste e de violência. Parelheiros é a Amazônia dentro de São Paulo, por isso é necessário prestar atenção com o que está sendo feito com a região.”
Vânia e Valéria consideram a alimentação como um ato revolucionário, pois reconecta as pessoas à natureza. Por meio do trabalho coletivo e de base, elas acreditam ser possível despertar a consciência da população para os impactos positivos que o cultivo da terra pode ter em todas as vidas.
“A indústria dos agrotóxicos é a mesma que cria remédios e agora eles querem produzir sementes também. Então, você se alimenta com o veneno que eles produzem e depois usa o remédio para curar a doença que aquele veneno produziu”.
*A série “Periferias e Justiça Climática: alternativas ambientais para os nossos” foi produzida com apoio do ICFJ (International Center for Journalists).