Lucilene Silva mora em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, na zona sul da cidade. Duas vezes por semana, ela sobe o ladeirão que divide a rua onde mora na favela e o bairro rico vizinho, o Morumbi.
Desde a semana passada, a preocupação em relação ao coronavírus está maior na casa de seus empregadores do que dentro da própria casa de três cômodos e um banheiro em Paraisópolis, onde pagam aluguel.
Segundo dados do Ministério da Saúde, já são 8.000 casos suspeitos no Brasil, dos quais 5.000 estão em São Paulo. Até quarta-feira (18) eram 428 confirmados.
“Estou comprando estas vitaminas para vocês misturarem e darem de manhã para as crianças”, dizia a mensagem via WhatsApp, acompanhada por uma foto, enviada pela “patroa” — como se refere Lucilene à chefe. Um grupo foi feito para dar orientações às duas funcionárias.
Lucilene tem 32 anos e mora com o marido e dois filhos de 4 e 8 anos.
A recomendação da empregadora é expressa: não ir ao trabalho de transporte público; só a pé ou de táxi, pago por ela, e “de vidros abertos”. Ao chegar na casa, “jamais esquecer de tomar banho e trocar de roupa”.
A situação piorou nos últimos dias. O chefe de Lucilene, que beira os 60 anos (grupo de maior risco ao Covid-19), está doente, com suspeita de contaminação. Marido e esposa estão, inclusive, dormindo em quartos separados. Eles estão de quarentena, ao contrário da empregada.
“O patrão está muito mal, isolado da esposa. Até ter certeza que não é o coronavírus pode demorar. Estou vulnerável, mas não tenho outra renda. Preciso trabalhar”, diz a diarista.
Já a colega de trabalho de Lucilene, também moradora de Paraisópolis, é mãe de três filhas pequenas. Para ela, a religião está acima da doença — o Covid-19.
“Ah, menina, eu não ligo não [com o fato de o chefe estar doente]. Sou evangélica. Pra mim, Deus está no controle de tudo isso”, rebateu à Lucilene.
Preocupação de uma e certa tranquilidade da outra, para não correr riscos de perder uma das funcionárias, a patroa decidiu o aumento o valor da diária: em R$ 20.
“Pensei que seriam pelo menos R$ 250. Mas foi de R$ 180 para R$ 200”, revela Lucilene.
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Além disso, também foi ofertado às empregadas, além dos vários tipos de vitaminas, uma série de produtos de limpeza e higiene.
“Ela fez a gente comprar e levar pra casa álcool em gel, lysoform [uma marca de desinfetante], água sanitária de dois litros e sabonete protex”, lista Lucilene, que busca compreender as ações da patroa.
“Ela fica preocupada em a gente ficar doente. Tento também pensar no lado dela”, pondera.
DISPENSA DEPOIS DA DESPENSA CHEIA
Moradora da Vila Andrade, distrito do qual faz parte Paraisópolis, Joana Souza, 39, também é empregada doméstica. Ao contrário de Lucilene, ela não precisa ir ao serviço desde o começo desta semana.
Até que essa decisão fosse tomada, porém, ela precisou peregrinar pelo bairro entre supermercados, hortifrutis e farmácias. Antes, era preciso abastecer o apartamento de luxo no qual trabalha há quase 10 anos em Pinheiros, na zona oeste da capital.
“Ela achava que seria contaminada pelo coronavírus. Que acabaria tudo no mercado”, narra a saga.
A dispensa do trabalho ocorreu após a despensa abarrotada de produtos no apartamento onde trabalha de segunda a sexta, de 8h às 18h.
Apesar do estoque, os chefes de Joana decidiram viajar para um sítio no interior de São Paulo. A empregada doméstica voltou, agora também em quarentena, está ao lado dos filhos pré-adolescentes e do marido de quarenta e poucos anos.
“Achei que fosse ficar louca, junto com minha patroa. Após me dispensar, ela me garantiu que meu salário seria pago normalmente”, afirmou, aliviada.
É VERDADE ESTE BILHETE
Em Osasco, na Grande São Paulo, Kelly Santos, 23, trabalha como empregada doméstica há três meses. “Minha patroa também me dispensou, sem previsão de retornar, e não vai mexer no meu salário”, comemora a decisão.
Ainda no município, Daniela Souza, 22, há dois anos é cuidadora de uma idosa de 83 anos. Ela estava preocupada com a decisão do chefe, se a manteria empregada ou não, por conta do surto do vírus.
“Cheguei esta semana para trabalhar e tinha um bilhete na mesa”, revela. O comunicado, porém, não era afastamento.
“Estava escrito: lave as mãos. Só isso”, conta ela. Apesar de o chefe, filho da idosa ser médico, não houve qualquer outra recomendação.
“Ela só fica sozinha em casa. Decidi não levá-la nem para tomar sol no condomínio. E quando chego na casa, lavo as mãos até o cotovelo”, diz ela, que trabalha dia sim, dia não.
‘TOMA SUA MÁSCARA’
De volta a Paraisópolis, Tereza Silva, 50, trabalha como copeira em uma empresa de investimentos no Itaim Bibi, na zona oeste de SP.
É ela quem lava copos, limpa as mesas e realiza outros afazeres nas salas do prédio há mais de uma década.
Após um dos funcionários ter sido contaminado com o coronavírus ao ter vindo da Itália há duas semanas, a empresa decidiu decretar home office a todos. Todos exceto Tereza e outras colegas da área de limpeza.
“A única coisa que fizeram foi nos dizer que tinha uma pessoa na empresa suspeita de ter o coronavírus. Deram pra gente uma máscara para usar e pediram evitar transporte público. Mas como?”, questiona Tereza.
Para chegar ao trabalho, ela precisa tomar um ônibus, num trajeto de pelo menos 7 km de distância.
“Cobrei uma posição da empresa. Acharam ruim e me pediram para pedir as contas. Como se eu fosse a culpada e pudesse escolher assim”, indigna-se.
Tereza mora em uma casa de quatro cômodos pequenos em uma viela em Paraisópolis, ao lado de dois dos três filhos.
Indignação e insegurança também rondam Lucilene, personagem que abre esse texto, que ainda não sabe qual decisão tomar:
“Preciso pensar direito para não colocar em risco os meus filhos. Eu estava tranquila, bem de boa. Mas agora com meu patrão doente, tudo mudou.”
“Fico insegura em falar pra minha patroa sobre não ir, pelo menos por uma semana, até ele ficar melhor. Dava pra ir me virando, mas eu tenho medo de perder o emprego, que hoje é minha única fonte de renda”, finaliza.
*Todos os nomes das entrevistadas são fictícios para preservar a identidade das fontes.