Nas margens da represa Billings, o Grajaú é uma das regiões das periferias mais populosas de São Paulo com cerca de 400 mil moradores. Localizada na zona sul, a região tem comércios semi-abertos e ruas movimentadas – parte dos moradores usa máscaras outra parte não.
A região entrou recentemente em mais uma lista na capital – é onde há mais casos suspeitos de Covid-19.
Um mapa divulgado pela prefeitura de São Paulo, um dos poucos que abordam os casos por distritos, fala em mais de 6.726 contagiados pelo novo coronavírus. Porém, menos da metade dos testes já tiveram os resultados concluídos. Até 17 de maio, 183 moradores morreram com suspeita ou confirmação da Covid-19.
“Todo mundo sabe do que está acontecendo. Mais parece aquele sentimento: aconteceu com aquela pessoa mas não vai acontecer comigo”, comenta o assistente administrativo Felipe Moreira, 26, morador do Grajaú. “Muitas mortes aqui na região de pessoas na minha paróquia já foram umas quatro”.
Essa percepção, contudo, ainda não está oficialmente contabilizada na capital. A situação dessa região da zona sul da capital paulista é retrato de boa parte das periferias de São Paulo, onde a falta de dados e a subnotificação tem dificultado o controle da pandemia.
Em 18 de maio, a prefeitura informou que havia 128 mil casos ainda em investigação, enquanto os casos confirmados já somavam 51 mil.
SEM NOTIFICAÇÃO
Manoel Noberto Pereira, 53, relata que enterrou mais pessoas do que no ano passado. Ele trabalha como agente sepultador e também dirige o Sindsep (Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo). Outros trabalhadores de cemitérios da capital relatam situação parecida.
O sindicalista diz que no dia a dia é possível observar que morrem mais pessoas do que os números oficiais dão conta. “Já ouvi falar que temos entre duas e três vezes mais casos de contaminados e mortos do que realmente entram nas estatísticas. A gente percebe isso no trabalho”, conta.
As notas de sepultamento das pessoas mortas pela Covid-19 são marcadas com o código “D3”. Manoel diz que desde março, mais documentos tinham esse código como a causa de morte. “São mais vítimas do que a gente vê mesmo”, comenta. “Os números são maiores. Por exemplo, chegam vários mortos como vítimas de insuficiência respiratória aguda ou sem causa e identificação”.
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A subnotificação é um fenômeno que prejudica a análise correta sobre a evolução da doença não só na capital paulista, mas em todo o país.
A primeira fase do estudo Epicovid19-BR (Evolução da Prevalência de Infecção por Covid-19 no Brasil: Estudo de Base Populacional) mostrou que para cada caso confirmado de coronavírus segundo as estatísticas oficiais, existem sete casos reais na população dos principais centros urbanos brasileiros.
Coordenado pelo Centro de Pesquisas Epidemiológicas da UFPel (Universidade Federal de Pelotas), em parceria com o Ministério da Saúde, o levantamento sobre a pandemia no país analisou a realidade em 90 municípios brasileiros, entre eles a capital.
HELIÓPOLIS FAZ LEVANTAMENTO PRÓPRIO
Um dos exemplos da falta de informações é Heliópolis, onde está a maior favela da cidade. “Só temos dados do distrito e mesmo assim há muita coisa subnotificada”, diz Douglas Cavalcante, 27, da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região). “Entre as pessoas que conheço e que tiveram sintomas, ninguém foi testado”, completa.
Com a falta de dados da Prefeitura, a alternativa encontrada na região foi uma pesquisa, via formulário online, com os moradores e lideranças territoriais para levantar os casos (suspeitos e confirmados e óbitos pelo novo coronavírus).
No Levantamento Comunitário de COVID-19 em Heliópolis foram identificados 138 casos e 24 óbitos até 15 de maio, apenas na favela. Os dados oficiais apontavam 188 casos e 24 óbitos na mesma data no distrito do Sacomã, região que comporta a comunidade, mas possui outros bairros.
Os dados mostraram que as áreas mais populosas são as que concentram o maior número de casos, como é o caso da “Lagoa” e “Mina”, com 50 e 40 casos, respectivamente. Apenas dois territórios de Heliópolis ainda não relataram óbitos pela Covid-19.
O objetivo da UNAS e do Observatório de Olho na Quebrada foi pensar em ações no território e fornecer subsídios para que sejam adotadas políticas públicas específicas para o combate da pandemia nas favelas da cidade.
Dentre os casos mapeados, 42% estão em casa cumprindo a quarentena. Entretanto, em 7% dos casos a família não tem condições de isolar a pessoa doente. A necessidade de trabalhar para sobreviver (25%) e as condições da moradia (75%) são as causas dessa impossibilidade.
“Mais que resultados, até porque ele é uma fotografia do dia 15 de maio, a gente consegue mostrar que somos capazes de mapear os casos quando a prefeitura não fornece isso para as favelas”, comenta o pesquisador e educador Aluízio Marino, 33, que colaborou com o estudo.
Marino indica que a melhor forma de conseguir os dados precisos é numa escala de ruas e endereços. Por exemplo, na divisão municipal, Heliópolis está no distrito do Sacomã e os dados são fornecidos com esta base.
Para o educador, isso não permite uma leitura estratégica da realidade, já que a região concentra muita gente e não há precisão de onde estão os casos.
Estela Alves, pesquisadora de pós-doutorado do IEE (Instituto de Energia e Ambiente da USP) cita uma estimativa realizada por pesquisadores brasileiros e publicada no site Covid-19 Brasil que aponta que o número, referente ao dia 4 de maio, era, na realidade 14 vezes maior do que o registro oficial.
Naquele dia, segundo dados do Ministério da Saúde, o país registrava 108 mil casos confirmados da doença, sendo 32 mil só no estado de São Paulo.
Para ela, várias pesquisas já deram conta do problema e isso impede ações mais estratégicas para conter a Covid-19. “Nunca saberemos exatamente sobre as mortes não testadas por exame. É certo que houve um aumento por síndrome respiratória aguda, em mais de 200 vezes, na comparação com o ano anterior, o que nos leva a crer que seja coronavírus”, diz.
“As pessoas não são testadas, preferem ficar em casa ou são dispensadas dos hospitais”, relata. A situação já tem causado efeitos.
Entre os moradores que morreram e não tiveram resultado dos exames se houve contágio com o novo coronavírus estão aqueles que não estavam internados. Até maio, a prefeitura contabilizou 409 moradores com suspeita de Covid-19 que morreram em casa.
A maioria dos casos está em periferias da capital como Cidade Ademar, Pirituba com 11 óbitos e Cangaíba, Capão Redondo, Cidade Dutra, Grajaú e Vila Medeiros com 10 óbitos totais. Do total, apenas 21 já tiveram os resultados dos exames.