Vivo na Rússia já há cerca de quatro anos. Antes disso morava na zona leste de São Paulo, mais especificamente na Cidade Tiradentes. Interessei-me por cinema aos 17 anos e aos 19 anos fiz um documentário sobre as escolas ocupadas, “Minha Escola, Minhas Regras”. Depois dele surgiram vários outros, inclusive o “Secundas”, vencedor do festival de Gramado 2017.
Foi assim que vim parar em Kazan, na Rússia, em 2018, com uma bolsa para estudar cinema no Instituto Estatal de Arte e Cultura de Kazan. Nesses 4 anos muita coisa aconteceu, tanta coisa que não caberia em um só texto, mas nenhuma me pegou mais surpresa foi a guerra da Ucrânia.
Acordei com a cara amassada, mal tive tempo de bocejar e meu celular vibra e apita com notificações de mensagens de amigos do Facebook que passaram tempo acordados o suficiente para receberem a notícia da “operação especial” russa — em uma preocupação genuína, me perguntam se está tudo bem comigo.
Respondo inocentemente que sim, e devolvo a pergunta como se fosse apenas uma tentativa de contato.
Vivo em uma moradia estudantil (obshjitie). Aqui não temos televisão, me informo apenas pela internet. Naquele dia, segui minha rotina normalmente, sem nenhuma ideia do que estava acontecendo: abri meu grupo do Vkontakte (rede social russa) e me informei sobre as aulas do dia no Instituto Estatal de Arte e Cultura de Kazan. Demorei cerca de 2hpara saber que a Rússia lançou um ataque de larga escala ao país vizinho.
Ao iniciar as aulas do dia, cerca das 12h, meus parentes passaram a me ligar em prantos pedindo que eu voltasse para o Brasil, já com sugestões de planos e rotas de fuga. Eu, com a calma que não tinha dentro de mim, tentei explicar que estava tudo bem e se houvesse realmente um perigo iminente, eu estaria pronto para deixar o país.
Uma semana se passou enada substancialmente mudou na nossa rotina. A universidade continua a funcionar normalmente. Nenhuma sanção afetou diretamente a minha vida na Rússia, exceto o bloqueio dos cartões Visa e MasterCard, embora nacionalmente as versões físicas dos cartões continuem funcionando.
Diariamente, eu e meus colegas de quarto, também estrangeiros, sentamos e fazemos futurologias sobre o que vai acontecer, quais são os planos da Rússia e da Ucrânia, o que será do mundo depois que essa guerra passar e quais poderão ser os próximos capítulos. O consenso mútuo é que ninguém está feliz com a guerra, todos nós gostaríamos que isso terminasse, ou melhor, que nem tivesse começado.
Mas sabemos que as vítimas são sempre as pessoas – não os governos nem os poderes. Também compreendemos que não existe um “terceiro lado” neutro, apenas dois.
E quando senta um brasileiro (vindo de um país que sofreu um golpe 1964 apoiado pelos EUA), um libanês (que viveu em uma nação invadida por tropas americanas nos anos de 1970) e um egípcio (de uma região que teve seu território “mordido” pela ocupação israelense apoiada e armada pelos EUA no território palestino culminando na guerra de 6 dias) é difícil não debater profundamente as motivações da guerra e a hipocrisia de todos os lados.
Hoje, 2 de maio de 2022, já são mais de dois meses de conflito. O que parecia ser uma guerra de alguns dias se tornou uma guerra de meses e talvez de anos. Algumas sanções ainda não são sentidas.
McDonald ‘s, KFC, Reebok, Zara, H&M continuam funcionando e vendendo, apesar do anúncio de que fechariam. Inclusive, nos dias em que foi anunciado o fechamento, filas se formaram e pessoas faziam compras desesperadas. Uma colega da universidade comprou cada um dos hambúrgueres disponíveis no McDonald ‘s, que no dia seguinte continuou funcionando e no seguinte e seguinte.
Por outro lado, para quem depende do rublo, moeda russa, os produtos começaram a encarecer recentemente e agora alguma empresas estão indo embora.
Apesar disso, cada vez com menos frequência as notícias sobre a Ucrânia chegam da mídia ocidental e russa, e tudo vai se normalizando e se adaptando ao “novo normal”.