O Halloween, famoso Dia das Bruxas, é uma celebração típica dos Estados Unidos que acabou sendo incorporada ao calendário festivo brasileiro, comemorado em 31 de outubro. A fim de abrasileirar a festa e dar a ela “a nossa cara”, grupos de valorização da cultura nacional reivindicaram a data como o Dia do Saci, reconhecido no calendário de festividades nacionais desde 2013.
A proposta é valorizar a cultura e os mitos brasileiros e fortalecer as tradições nacionais. Mas, depois de quase dez anos, o Saci faz parte da festa? Como ele é lembrado e retratado?
Nas periferias, não é incomum que os mais antigos conheçam e contem histórias sobre Sacis e outros personagens da tradição folclórica do Brasil. Conta-se que ele nasce de um bambu de taquara, vive 77 anos, roda em um redemoinho de vento e apronta todas as travessuras que pode.
O que nem todo mundo sabe é que a história do Saci também diz das punições e submissão do povo negro escravizado: para evitar as “traquinagens” era preciso prender o menino travesso em uma garrafa e para ele fazer o que seu senhor deseja, basta arrancar-lhe o gorro.
“Muitas histórias são conhecidas, por exemplo, pela figura de Monteiro Lobato, que teve uma atuação relevante para tornar o [folclore brasileiro] mais conhecido, mas é preciso dizer que ele era uma pessoa bem controversa, principalmente com contos infantis cercados de racismos”.
Quem explica é Guilherme Bertolino, 29, da Brasilândia, zona norte de São Paulo, um dos criadores do Coletivo Fora da Garrafa, formado por jovens periféricos da Grande São Paulo e de outros estados brasileiros para valorizar a cultura nacional.
Por meio de oficinas e intervenções artísticas em escolas, equipamentos de cultura, praças públicas e centros culturais, o coletivo se propõe a manter Sacis “fora da garrafa” e a “devolve-lhes o gorro”, ou seja, tornar o personagem livre e autônomo, como uma simbologia para a população negra.
De forma menos metafórica, há cinco anos, o grupo atua para preservar as histórias do folclore brasielrio e a desmistificar a figura do Saci-Pererê como um ladrão e um menino endiabrado. “Nosso nome já é uma espécie de provocação para fugir de ideias racistas, capacitistas, punitivas e carcerárias com a figura dos Sacis”, explica o educador.
Sacis nas quebradas
Quem cresceu nas periferias de São Paulo certamente tem um tio, avô ou vizinho que jura viu e viveu histórias de Sacis, das mais misteriosas às mais interessantes.
Não é incomum que os causos retratem o menino como endiabrado e travesso, uma visão que tem origem no processo de escravização do povo negro, segundo o Guilherme. Nos 300 anos de escravidão no Brasil, os escravizados eram vistos como “desobedientes” e suas religiões eram perseguidas e estigmatizadas como práticas ligadas ao mal.
Por isso, o Coletivo Fora a Garrafa assume a divulgação do Saci como uma forma de se engajar na luta antirtracista, tomando como inspiração também livros de escritores indígenas sobre o tema.
“Vai na contramão da ideia colonial”, complementa Guilherme sobre seu trabalho, que acredita fortalecer a troca e a transmissão de saberes entre gerações e povos originários.
De olho na presença do Saci nas periferias e da sua importância para a cultura das quebradas, a Agência Mural reúne e conta histórias de Sacis da ponte pra cá:
Um redemoinho em Itapecerica da Serra
A história de seu Aquilino Cruz é daquelas de ouvir ao redor da fogueira. Ela aconteceu em um sítio em Itapecerica da Serra, zona sul de São Paulo. Quem recontou o causo foi a neta dele, Lívia Alves de Oliveira, 28, moradora do Parque Arariba, Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Seu Aquinho faleceu há 5 anos.
“Ele sempre colocava milho na fogueira e ficava cortando a cana-de-açúcar que plantávamos pelo sítio para contar histórias. Meio que é uma tradição de família repassar as histórias de assombração e ele começou isso”.
O recado do saci de São Bernardo do Campo
Tem gente que conta a história, tem gente que vive, como Silvana de Oliveira, 61, da Vila Palmares, em Santo André
Ela se passa nos anos 1970 lá pros lados do Jardim Calux, em São Bernardo do Campo, que na época era uma área rural. Silvana ainda era uma garotinha de 8 anos que não achou problema afrontar o Saci.
Quando Jaxy Jaterê virou Saci-Pererê?
Quem melhor para responder essa pergunta que o escritor indígena Olívio Jekupé, 58, que desde 1984 publica livros sobre o Jaxy Jaterê, versão indígena e “original” do Saci Pererê. Jekupé viveu na aldeia Krukutu, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, e nos últimos anos voltou para a aldeia Kakané Porã, no Paraná, onde nasceu.
Mas o que está por trás da transformação do Jaxy Jaterê em Saci-Pererê? Que papel esse personagem tem na preservação do meio ambiente? Como a colonização brasileira enfraqueceu essa figura?
Quem responde é o próprio Olívio Jekupé, em uma conversa com a Agência Mural, na qual ele reforça a importância de manter viva a memória do Jaxy. É só dar o play.
*Esse podcast teve a produção e roteiro de Jacqueline Silva com edição de texto e audio da Sarah Fernandes
“Saci- Pereriférico”
O Saci é uma figura presente no imaginário de quem vive nas quebradas, em especial dos mais antigos. Isso porque além de vivenciar o processo de urbanização e perda do acesso à natureza em seus territórios, o Saci também representa bem o povo periférico, como defende Guilherme.
“O Saci é com certeza um personagem periférico, alinhado com as demandas das pessoas que vivem nas margens. Tanto no sentido geográfico, por estar mais presente onde há menos urbanização, quanto no sentido cultural, por ser popular, de rua, um personagem negro com uma perna só”, detalha.
Para o educador, além da importância do Saci na proteção do meio ambiente, o aspecto artístico é muito relevante no personagem. A figura do moleque se contrapõe à cultura erudita, europeia e elitista e valoriza a cultura popular produzida nas quebradas, como rap e funk.
“Por que eu tenho que estudar apenas [o artista renascentista italiano] Leonardo da Vinci ou outros artistas da França, Inglaterra, Itália? Porque o Halloween é mais importante do que o folclore que nos acompanha e faz parte do nosso território? Conversar sobre isso é uma forma de resistência da nossa cultura”, defende.
De olho nessa importância, a Agência Mural criou uma denominação que se aproxima da realidade das quebradas, o Saci-Pereriférico, que teve o aval de quem entende do assunto: “gostei da ideia, porque na verdade é uma forma de defesa. Uma nova forma de defender a própria causa”, disse o escritor indígena Olívio Jekupé.
Esta reportagem foi produzida com apoio daReport For The World