De norte a sul, de leste a oeste, para celebrar o Dia dos Avós, seis correspondentes da Agência Mural contam a trajetória dos seus que vieram de outras regiões para construir histórias nas periferias de São Paulo e na região metropolitana.
A data é celebrada no dia 26 de julho e tem origem religiosa ao homenagear Santa Ana e São Joaquim (padroeiros de todos os avós pela Igreja Católica), os pais da Virgem Maria e avós de Jesus Cristo.
Grande parte deles são matriarcas e migrantes de suas famílias. São os responsáveis por levar a cultura, educação e amor para as gerações posteriores. A população de São Paulo é composta por 12% de pessoas com idade superior a 60 anos. E, segundo projeções da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados), até 2030 a porcentagem passará para 20% e terá mais idosos do que jovens com menos de 15 anos.
Os correspondentes Cíntia Gomes (Jd. Ângela), Giacomo Vicenzo (Cidade Tiradentes), Julia Reis (Taboão da Serra), Jéssica Moreira (Perus), Lara Deus (Piritiba) e Larissa Darc (Parque do Carmo) compartilham a diversidade, a experiência e do quão é única a relação entre avós e netos.
NOSSAS VÓS
– Alayde: ‘Vim para zona leste porque queria que meus filhos e neto estudassem’
– Dona Amélia veio da Espanha em 1927 e viu o nascimento de Cidade Tiradentes
– Laurentina, a vó de Perus, das memórias e risadas
– Maria Marcelina e as doces lembranças do Jardim Ângela
– Lourdes, Antonia e dois Manoeis: o privilégio de ter os quatro avós na Grande SP
ALAYDE E 50 ANOS DE ZONA LESTE
Larissa Darc. “Seu avô foi o meu passaporte para São Paulo”. Desde que me entendo por gente ouço Dona Alayde dizer essa frase. Para quem não tem proximidade, pode até parecer uma forma rude de contar uma história de amor.
Assim como o personagem do Mágico de Oz, a senhora de 85 anos diz para todo mundo que tem coração de lata. A última batida orgânica teria sido registrada momentos antes de se despedir de Seu Athaides, no Hospital Santa Marcelina, há alguns quilômetros de casa, também localizada na zona leste.
Um pouco antes do meu avô partir, o coração da minha avó também parou. Internada no mesmo lugar que o marido, passou a carregar um marca-passo dentro do peito. Essa foi a segunda vez que São Paulo lhe devolveu a vida.
A primeira foi 58 anos atrás. A baiana, que morava em Tobias Barreto (SE), dizia não ter nascido para viver na roça. Precisou largar os estudos muito cedo para ajudar o pai fazendeiro, se desfazendo do sonho de ser professora.
O bilhete dourado para a cidade grande veio com a visita de um primo de São Paulo. Quinze dias após conhecer o charmoso rapaz, colocou uma aliança de ouro no dedo esquerdo e embarcou para a cidade de seus sonhos.
“Me mudei para a zona leste há mais de 50 anos e nunca mais saí daqui”, diz Alayde, sentada em um sofá de sua casa própria. Antes de firmar raízes no Parque do Carmo, alugou casas no Tatuapé, Carrão, Penha, São Miguel e Arthur Alvim.
Foram nesses bairros, cheios de escolas, que os seis filhos dela completaram o segundo grau. Anos mais tarde viriam os netos. Uma professora, uma contadora, um educador físico, uma jornalista. “Eu vim para cá porque queria que meus filhos e netos pudessem estudar”, explica.
Estufa o peito para dizer que mora no “Morumbizinho da zona leste”. Até poucos anos atrás, eu acreditava que esse era um devaneio de quem amava o lugar onde morava. Pesquisando sobre o bairro para uma pauta, descobri que esse era o slogan utilizado pela construtora que loteou o bairro nos anos 1940.
“Aqui, no Parque do Carmo, eu encontrei o sossego que eu sempre quis. Não me falta nada. Daqui só saio quando Deus me buscar para fazer a passagem”, murmura, franzindo as rugas que se convergem assim como os cruzamentos de São Paulo.
DONA AMÉLIA E O NASCIMENTO DE CIDADE TIRADENTES
Giacomo Vicenzo. 1918 foi o ano que minha avó Amélia Fanasca nasceu na Espanha, na cidade de Granada. Aos nove anos de idade veio ao Brasil para fugir da escassez provocada pelo Regime de Franco. Em solo brasileiro, São Paulo foi a primeira cidade que acolheu a família de sete irmãos, mas logo foram ao Paraná onde moraram e trabalharam em diversas fazendas.
Lá foram vítimas do ‘vale da venda’, que fazia os agricultores aumentarem a dívida mais do que ganhavam propositalmente com uma superinflação dos alimentos que não correspondia com as horas trabalhadas. Esse formato obrigava os imigrantes a permanecerem no local, do qual, saíram praticamente fugidos.
Três anos depois, voltaram para São Paulo, para buscar ajuda médica a um irmão dela que sofria desmaios constantes. Instalados em uma casa alugada no bairro da Vila Esperança, zona leste de São Paulo, minha avó junto com as outras irmãs foram trabalhar como empregadas domésticas e os homens como serventes de pedreiro.
Anos mais tarde, ela conheceu meu avô no bairro vizinho ao seu que relembrava o nome de sua cidade natal, Vila Granada, também na zona leste. Por lá moraram muitos anos em casas alugadas. Enquanto minha avó lavava roupas, meu avô trabalhava em uma fábrica de vidros. As histórias contadas por ela sempre traziam longas horas de trabalho visíveis em cada uma de suas sílabas.
O sonho da casa própria nasceu junto com o bairro Cidade Tiradentes em 1984. Foi quando se mudaram para um dos apartamentos da Cohab que minha mãe conseguiu financiar. Se acostumar com o novo bairro foi rápido para minha avó que começou a vender cosméticos e perfumes por catálogo. Longas caminhadas e bater de porta em porta eram sua rotina.
Mais tarde, um saco de salgadinhos solto ganhado como presente transformou o apartamento em um pequena mercearia. Os produtos se multiplicaram à medida que os clientes, todos vizinhos, aumentavam.
O apartamento acomodava minha mãe, meu avô e eventualmente outros membros da família. Sempre que saía à rua com minha avó a frase “Oi, Dona Amélia!”, antecedia sua chegada em quase todos os lugares do bairro. Sendo uma das primeiras moradoras do prédio, também chegou a ser a mais idosa aos 88 anos.
Em 2009, infelizmente a idade avançada foi um peso mais forte do que a viagem internacional em um navio que quase afundou no começo do século 20 e jogou seu ovo frito para dentro do mar (me lembro dela contando essa história da chegada ao Brasil mais de uma vez) e suas pernas bambearam perto da hora de ir à cama.
Na queda, ela fraturou o fêmur e o tratamento que seria simples trouxe uma pneumonia que ceifou sua vida aos 90 anos de idade. O carisma da Dona Amélia ainda me serve de cartão de visitas ao menos para os moradores e comerciantes mais antigos da região. Para indicar o meu endereço a frase “Sou neto da dona Amélia”, é mais prática do que informar o número do prédio em que moro.
Jéssica Moreira. Poderia ser mais um dia comum na vida interiorana de Seu Sebastião e Dona Paula. Mas as dores de contração, acompanhadas do chamado da parteira da pequena cidade de Piracaia (interior de SP), anunciavam que estava chegando ao mundo a escorpiana mais sagitariana daquela família: Laurentina de Almeida André, minha avó.
Embora tenha nascido no feriado da Proclamação da República, a vó Laurentina não aceita que neto algum lhe dê parabéns nesta data. “Aquele dia morreu”, ela fala, brava. O fato é que o bisavô Bastião não teve acesso ao cartório no dia de nascimento e a registrou apenas no dia 30 de novembro. “Então, a senhora é do signo de escorpião, não de Sagitário”, eu provoco, já sabendo o que ela vai dizer. “Eu sou de Sagitário e não se fala mais nisso, viu?”.
A ironia, misturada ao humor ácido e uma doçura mais doce que seu pudim de pão, são algumas das marcas desta vó, que é a única que eu pude conhecer na vida. A vó não pode estudar, não aprendeu a escrever, nem ler, mas dinheiro ela sabe contar e sempre foi a grande administradora da família André.
Aos quase 96 anos, recorda-se de todas as datas, desde o aniversário de sua mãe ao batizado do neto que vai acontecer dentro de alguns meses.
As rugas do rosto são linhas de mapa, indicam os caminhos percorridos nessas nove décadas. São linha finas, mas cheias de memória e sabedoria.
Para alguém que já atravessou tantas perdas e ganhos, o único medo que ainda carrega é de perder a memória e esquecer o padre nosso ou ave-maria. “Tenho medo de esquecer das minhas rezas. Espero não perder nunca, se Deus quiser, porque a reza é a defesa da gente e da nossa família”
Ao chegar até o quintal azul às 6h da manhã, você se depara com cheiro de café fresquinho e ruído do rádio a pilha. A vó acorda cedo todos os dias. A vida no interior ensinou que a ‘lida’ diária começa cedo, os afazeres são muitos, a lavoura exige a energia que tem o nascer do dia.
Pela manhã, a vó Laurentina faz morada na cozinha. À tarde, no quintal. A cozinha é onde o tempo nunca para, sempre se mexe entre uma colher e outra dentro da panela. E esse tempo, para ela, parece estar em uma constante ebulição, fazendo o horário do almoço chegar mais rápido que o esperado.
E entre um prato e outro, Laurentina ouve a reza e pede a São Benedito que proteja a comida daquele dia. A imagem do santo está pendurada acima do fogão, de onde as mãos de Laurentina cozinham o arroz e o feijão do almoço da família. Ai de quem quiser mexer em suas panelas. “Com cinco anos eu já fazia serviço: varria a casa, escolhia feijão e cuidava do meu irmãozinho, o compadre Zezinho”, conta, enquanto não para de lavar o arroz.
Até sua brincadeira era coisa de gente grande. “Brincava de casinha na beira da casa. Pegava o caco da tigela que quebrava ou da latinha e colocava em um armarinho de tijolo, feito de bloco e tábua de madeira como prateleira. Eu mesma que fazia”.
Quando tinha apenas 13 anos, perdeu o pai. A segunda filha de uma família de três meninos e três meninas, teve que carpir muita roça para sustentar a família.
AMOR DE INTERIOR
Foi ainda no sítio de Piracaia que a vó encontrou, pela primeira vez, Sebastião André, meu avô. Ela tinha 9 anos, ele umas modas de viola e cinco anos a mais que ela.
“Eu casei no dia 23 de dezembro, foi na fazenda, mas não teve nada, não, teve uma jantinha….Casei na igreja e no civil. Vestido branco, véu….cantaram a noite inteira, mas não foi tirado foto”.
Após dois anos do casamento, tiveram a primeira filha. Hoje, a Tia Cecília já tem 77 anos. Dos oito filhos, dois morreram ainda quando crianças e dois se foram há pouco tempo, um seguido do outro.
Em meados de 1950, depois de passar por tantas fazendas, chegaram a Perus, bairro onde até hoje está toda a nossa família, na região noroeste de São Paulo. Conseguiram comprar um terreninho e levantar, com as próprias mãos, a casa que tanto almejavam.
O nosso quintal azul hoje tem mais de 50 anos. No passado, era no terreno de terra que o milho era plantado e um dia reservado à pamonha e boneca de sabugo. Hoje, resta apenas um trechinho de terra, onde a vó capina a tristeza, os lutos, as saudades que nunca cessam.
Dos seis filhos que cresceram, todos se casaram e lhe deram netos e, agora, bisnetos. “Todos os meus filhos me amam”.
Hoje, é vó de 16 netos e 13 bisnetos. Na rua onde moramos, todo mundo a conhece e a chama de vó. Afinal, é a mais velha da vizinhança. Se orgulha quando alguém diz que viu sua foto no Facebook “é, eu sou a vó de Perus”
Outro dia, depois que viu uma reportagem na televisão na qual uma senhora fazia cooper aos 104 anos, ela se inspirou e no outro dia saiu caminhando sozinha pela ladeira. “Mas, vó, a senhora poderia cair”, exclamamos, preocupados. “Ela tem 104 e ninguém manda nela, vai mandar em mim que sou mais nova agora?”.
JOAQUIM E A CHEGADA DA ESTAÇÃO SILVEIRA
Lara Deus. A narrativa do avô que contava histórias e da avó que fazia comidas gostosas no domingo nunca foi a minha. Os pais do meu pai moravam longe. Os pais da minha mãe morreram no ano em que nasci. Sempre acreditei que o direito à própria História era privilégio.
Na contramão desta crença, minha mãe fazia a conexão com meus ancestrais por meio da palavra. Quando eu sonhava em ser arquiteta, ela reproduzia no papel a casa que meu avô Joaquim projetou e construiu no Jardim Silveira, bairro de Barueri, na Grande São Paulo.
Quando reclamava da CPTM lotada, contava que o mesmo bairro não tinha estação até que ele articulou um abaixo-assinado para a construção da parada.
Quanta coisa meu avô já fez, mãe.
Joaquim Soares de Freitas nasceu em 26 de novembro de 1912 e, até sua morte, em 1994, foi maquinista, tocador de banjo em banda de jazz, pedreiro, árbitro de futebol, articulador político, ex-candidato a prefeito de Barueri, pai de sete (duas falecidas na infância) e avô de 24.
O vô Joaquim era o caçula de quatro irmãos portugueses, e por pouco não nasceu na Ilha da Madeira (Portugal). A gravidez inter-atlântica deu seu fruto na cidade de Botucatu, interior de São Paulo. De lá, casou, mudou para São Roque, Mairinque, no interior de São Paulo, antes de ser o segundo morador do Jardim Silveira, em Barueri, nos últimos anos da década de 1950.
Depois de aposentado por invalidez da Estrada de Ferro Sorocabana, em que era maquinista, foi no Silveira que conquistou popularidade e a usou para trazer a modernidade ao bairro.
No esporte, Joaquim de Freitas era diretor do Esporte Clube Jardim Silveira, criou a pista de malha da região e foi um dos primeiros participantes da Corrida São Silveira, inspirada na prova que é realizada na Avenida Paulista, mas que também ganhou tradição e até os dias de hoje movimenta Barueri.
Na política, foi um dos articuladores da criação da estação de trem do bairro, que foi inaugurada em 1962 e existe até hoje na linha 8-Diamante. Depois do fim do bipartidarismo, concorreu a prefeito de Barueri pelo PMDB em 1982 e teve 46 votos. Segundo minha mãe, a votação foi fraca porque a candidatura era apenas uma estratégia para enfraquecer Rubens Furlan, curiosamente do mesmo partido. Furlan ganhou as eleições e comanda a cidade até hoje.
MARIA MARCELINA E AS LEMBRANÇAS DO ÂNGELA
Cíntia Gomes. Maria Marcelina de Lana Moreira. Como ela amava o próprio nome! Apesar dos 40 anos morando na mesma casa, no Jardim Ângela, zona sul da cidade de São Paulo, minha avó (materna), mais conhecida como Dona Maria, preservava as lembranças da comida de sua terra natal, Minas Gerais.
Frango com quiabo, torresmo, angu, couve refogada, biscoito de polvilho, canjiquinha, doce de leite. Sabores sempre acompanhados do inegável sotaque manso no início de cada conversa: “Ô boba”.
Vaidosa, não faltavam anéis nos dedos e unhas pintadas. Vivia perfumada e adorava encomendar vestidos estampados.
Religiosa, mantinha um altar no quarto, repleto de santos e terços. A reza era sagrada: ao acordar e às 18h. Pedia intercessão e proteção a cada um da família numerosa.
Mãe de 12 filhos, mudou-se para o Rio de Janeiro com a família em 1974. Enviuvou-se jovem, aos 41 anos. Na mesma época perdeu o filho homem mais velho que era caminhoneiro, em um acidente na estrada. Idade na qual deixou a cidade, para morar ao lado da primogênita em São Paulo, que a ajudou na criação dos irmãos mais novos. Neste período já era avó de três. Anos mais tarde, a árvore genealógica ampliou completando 32 netos e 20 bisnetos.
Na sabedoria dos 81 anos, sabia de cor e salteado o nome de cada um deles. Os primeiros netos tiveram o privilégio de conviver e ouvir suas histórias; entre elas, a nada fácil vida na roça, embora os momentos guardados eram recheados de emoções e felicidade.
Vovó sempre detestou ficar sozinha. A alegria dela era ter a casa entupida de gente. Jogar conversa fora até tarde e receber visitas faziam parte de seu cotidiano. Para ela, filhos, netos e bisnetos permaneceriam, para sempre, “embaixo da sua saia”.
Dona Maria Marcelina sempre foi a força e a união entre todos os familiares. Até mesmo àqueles que não se “bicavam”, sem exceção, deveriam estar reunidos na celebração de aniversários e do Natal. Em dezembro de 2017, dois de seus filhos, Penha e Derci, mesmo com a dificuldade que ela estava para andar, levaram a mãe em sua cadeira de rodas de volta à Minas. Foi em Viçosa visitar os irmãos e cunhados que ainda moram por lá. Realizou um desejo que sempre dizia querer fazer antes de partir.
Vovó me faz carregar um “cadinho” de lembranças, como dizem os mineiros. Ai de quem se atrevesse a me apontar o dedo, até mesmo meus pais. Declaradamente eu era a neta predileta de dona Maria Marcelina. Por causa dela, aprendi cedo o significado de ser amada.
NOSSA RELAÇÃO ENTRE VÓ E NETA
Na infância, eu costumava brincar embaixo de uma mesa, mantida até hoje em sua casa. Enquanto eu permanecia ali, vovó enchia a boca para dizer a qualquer um: “Ó, essa menina não dá trabalho nenhum, gente”.
Fui a primeira mulher da família a entrar na universidade. E ela ficou orgulhosa de ter uma neta jornalista, mas ficou na expectativa de um dia me ver na TV como repórter, por mais que eu dissesse que não era o que queria, sempre comentava. Quando me casei, aos 27 anos, o primeiro presente foi dado por vovó. Era ela sempre a primeira e guardo com todo cuidado cada presente que ela me deu na vida, não só físico, mas de tantos momentos únicos que tivemos juntas.
Aniversariante na véspera de feriado e perto da Páscoa, ela amava ganhar ovos de chocolate. Deixava todos à mostra sobre o armário. Passada a Páscoa, ela quebrava todos os ovos para botá-los em potes.Todas as noites em que moramos no mesmo quintal, saboreávamos um pouquinho dos chocolates em pedaços.
Ao contrário do que se pode imaginar, para dona Maria Marcelina ir ao médico era sempre motivo de diversão, apesar de não gostar do trânsito da cidade. Mas mantinha exigências. Consulta apenas com médico do sexo masculino. Dr. Eduardo (neurocirugião), Dr. João (psicólogo) e Lucas (fisioterapeuta), eram seus prediletos. “Eles são lindos e me tratam tão bem, amo como se fossem meus filhos”, dizia.
Do hospital para casa, hora da novela era concentração absoluta. Papo apenas na hora do comercial ou após o término do folhetim. Era engraçado ver vovó xingar, ora aconselhar, os personagens. Conectada, ela jogava boliche no celular. Desconectada conversava com o “louro”, o papagaio.
VOVISLÂNDIA
De volta ao hospital, dessa vez sem brincadeiras, vovó seguia para uma cirurgia de emergência para tratar de uma perfuração no intestino. Ali, trocamos nossas últimas palavras diante da quase nula chance de recuperação.
Assim que fui avistada, ela me olhou com surpresa, prometendo algo que, no fundo, era meu maior desejo: “Oi, minha Pretinha, você veio! Fica triste não, tudo vai ficar bem”.
Em seguida, nossos olhares, em sintonia, transmitiram, em palavras, o amor mútuo, vivo ao longo de três décadas. “Eu te amo, vovó”. “Eu também te amo, Preta (era assim que carinhosamente se referia a mim)”.
Duas semanas depois, em 7 de novembro de 2018, dona Maria Marcelina nos deu adeus. De lá para cá, a saudade machuca, mas vem sendo preenchida com a lembrança de cada sorriso e abraço.
Assim como de cada 26 de julho, o dia dos avós. Ainda na adolescência, desde a descoberta dessa celebração, passei a celebrar a existência de dona Maria Marcelina ao meu lado. O presente era sempre garantido, seguido do orgulhoso: “Feliz dia da vovó”.
“Só você se lembra dessa data, Preta”, comentava. Com o passar do tempo, outros netos solenizaram o momento. Animada, ela não hesitava em comentar: “Sabia que a Angélica, Dé, Marcela, Suellen e Thainá também lembrou que hoje é meu dia?”.
Vovó a responsável pela pessoa na qual me tornei; quem me ensinou o que é o amor, a fé, a dedicação, a honestidade, o respeito, a solidariedade e a força de uma mulher, de uma mãe e de uma avó.
Neste ano não será possível festejar, fisicamente, o dia dos avós, o dia de dona Maria Marcelina. Porém, o conforto, e privilégio, é saber que ao longo de 35 anos pude dizer e demonstrar o quanto ela foi e continua sendo especial em minha vida.
Termino em texto o que costumava dizer verbalmente: “Amo você, minha vovislândia”.
TENHO O PRIVILÉGIO DE TER QUATRO AVÓS
Julia Reis. Macarrão com frango. Em quase todos os fins de semana, esse é o prato que é feito pelas minhas duas avós desde que eu me entendo por gente. Tenho o privilégio de ter os quatro progenitores.
Maria de Lourdes Lopes Reis, 78, é mãe do meu pai. Nasceu na cidade de Santa Cruz do Rio Pardo, interior de São Paulo. Veio pra São Paulo trabalhando como cozinheira em casa de família rica. “Viajei o Brasil inteiro, mas era tão nova que nem sabia onde estava”, conta.
Foi nas ruas da capital de São Paulo que conheceu meu avô, Manoel Matias Reis, da mesma idade. Neto de professor, saiu do interior da Bahia em busca de emprego e uma vida mais estruturada. Escolheram o Campo Limpo, bairro na zona sul, para formar sua família. Tiveram três filhos. Meu pai é o mais novo deles.
Cheguei a morar muito tempo na casa que ficava embaixo do da minha avó Lourdes. Eram tempos bons. Quando chorava muito, pela tarde, subia as escadas e ficava com meus avós recebendo o chamego de alguém que tem um amor quase inocente, divino e divertido. Com eles podia tudo. Fazia barulho com uma sanfona de brinquedo, batuque em tambores de tinta e jogava bola com meu avô no quintal. E é claro: tinha macarrão com frango quase todo dia.
Quando a perua da escola chegava, minha avó apostava corrida com a mulher que cuidava de mim para ver quem abria o portão primeiro. Era questão de honra para Dona Lourdes me levar até a kombi que me deixava numa creche que nem lembro onde era.
Já meus avós por parte de mãe vieram de Ponte Nova (MG). Antônia Maria da Silva e Manoel Venâncio Vieira — 69 e 72 respectivamente — vieram pelo mesmo propósito dos meus outros avós e escolheram uma cidade da Grande São Paulo que tem uma grande concentração de mineiros: Itapecerica da Serra. Inclusive, grande parte dos meus familiares da terra mineira moram no Parque Paraíso, o maior bairro do município.
O macarrão com frango era de frango caipira e quiabo acompanhava. Antônia foi sempre muito dura. Fazia meu cabelo e não deixava eu brincar na rede do quintal até ele secar. Contava até dez para tomarmos banho e estava de pé já as 6h da manhã. Depois da bronca, vinha um beijo na testa e um chamego. “Meu passarinho da vó”. Com quatro netos, sou a primogênita deles. Já minha avó Lourdes tem seis.
De semelhança elas têm bastante. Meus avôs, com mesmo nome, são tranquilos, calmos e deixavam a gente fazer o que quisesse. Ambos de raiz sertaneja, aprenderam a consertar coisas pelo bairro e até hoje fazem isso, com menos frequência. Minhas avós têm uma máquina de costura que já foi usada para fazer peças de roupa e hoje são usadas para consertar zípers e arrumar a barra da calça dos netos, filhos e marido.
Os quatro sempre foram a base da família e não sei imaginar minha vida sem todos eles. Como parte do crescimento, como ser humano, sei que elas têm bastante peso para mim, minha irmã e primos. Entre modos conservadores de educação tradicionais, eles usaram de sua liberdade poética de avós para cuidarem e serem a base de tudo. Me ensinaram a cozinhar, costurar, me comunicar e me divertir.