Era uma manhã de um dia qualquer e eu tinha por volta de cinco anos. A cena ainda se mantém viva na minha mente: pequena em meio aos adultos, me deparei com uma caixa grande e comprida. Fiquei na ponta do pé, mas eu não conseguia ver nada. Curiosa como sempre fui, pedi: “mãe, me levanta, eu quero ver”. Ela me ergueu e me deparei com dona Joana, minha avó de coração, deitada. Linda como sempre foi, preta retinta, baixinha, com poucas rugas para os seus mais de 100 anos, cabelos grisalhos e vestida de branco.
Ela estava morta. Não fiquei assustada ao vê-la daquela forma, nem sabia o que era isso. Apenas que a veria ela pela última vez. Ela parecia uma bonequinha dormindo, uma imagem que nunca saiu da minha cabeça. Eu tinha um carinho especial por aquela mulher que cuidava de mim, das minhas irmãs e de tantas pessoas doentes do meu bairro numa época em que quem morava na periferia tinha acesso ainda mais difícil à saúde. O hospital mais próximo ficava a quilômetros de distância e o SUS tinha acabado de nascer, nos anos 1980.
Mas esta história não é sobre dona Joana nem sobre o SUS. É sobre como a morte da minha avó de coração fez com que a minha avó de sangue passasse a ser a benzedeira do bairro e a minha casa se transformasse em uma espécie de ambulatório em Cidade Ademar, na zona sul da capital paulista.
Capítulo 1: Dom que vem de berço
Minha avó se chamava Albertina Feitosa da Silva, para os íntimos “Véia Abertina” ou “dona Albertina”. Pra mim era “Vóbertina”, tudo junto. Quando eu e minhas irmãs nascemos, ela já era idosa, pois havia engravidado do meu pai com mais de 30 anos, idade avançada para a época e para o lugar onde ela morava.
Vóbertina nasceu no século passado, em 1909, no município de Jataúba, cidade do interior de Pernambuco, na caatinga do Nordeste. Quando meu se pai casou, já mais velho, minha avó veio morar com ele em São Paulo, deixando suas duas filhas mais velhas na terra natal. Assim, éramos as netas mais novas do filho mais novo dela, e o “preferido”.
O apego veio depois que ela perdeu três filhos homens na primeira infância. As outras duas filhas já eram adolescentes. Ela acabou sendo mãe solo do meu pai, pois logo em seguida perdeu o marido vítima de um infarto, meu avô José. Nós sequer o conhecemos, meu pai não teve tempo de conviver com ele.
Ela contava que ele era muito bonito e trabalhava como pedreiro de cemitério, construindo túmulos. Essa relação com a morte é interessante para as pessoas mais antigas. Minha avó, por exemplo, costurou sua própria mortalha.
Vóbertina contava do rapaz com quem namorou pegando na mão antes de casar – e que ninguém podia saber –, das simpatias para descobrir com quem iria se casar. Não sei nenhuma das suas histórias com profundidade, mas sei que pelo tema já são boas. A melhor delas foi quando ela, adolescente, viu de longe o topo do chapéu de Lampião passando em comitiva na sua cidade. Quando contei pro meu pai ele não acreditou e disse que sabia de vez que ela e as primas se esconderam na mata para evitar a abordagem de cangaceiros.
Prefiro acreditar na história do Vóbertina. Mas só para terminar esse capítulo, minha avó, mãe solo, não só lidou com a morte dos três filhos que lhes escaparam das mãos, mas mais de cem que nasceram por elas no sertão. Sim, minha avó também era parteira.
Capítulo 2: De repente benzedeira
Vóbertina não virou benzedeira após a morte da dona Joana. Ela fazia isso apenas em casos de extrema necessidade. Com a partida da curandeira mais requisitada, não teve jeito: todo mundo começou a bater na porta da minha casa e aí então descobri que minha avó também tinha o dom de curar.
Ter uma benzedeira no bairro naquela época era ter um tesouro, imagina em casa? As benzedeiras eram valorizadas nas periferias, sendo consideradas a medicina mais sofisticada, eficiente e gratuita.
Não tinha um dia que alguém não levava uma criança ou adulto lá para ser benzido por diarréia, dor de ouvido, febre, bucho virado, falta de apetite, falta de sono e por aí vai.
Era um corre-corre na porta, sem campainha, gritando pela brecha do portão de ferro: “dona Albertina, dona Albertina, abre aqui!”. Minha mãe era a recepcionista.
Vóbertina reunida com a família, em brincadeira @Arquivo pessoal
No quintal de casa, com a mãe segurando, minha avó levantava os braços da criança e começava a avaliação juntando as palmas das mãos do paciente. Quando o dedo médio de uma das mãos ultrapassava o outro, lá vinha o diagnóstico: caso de “espinhela caída”, na anatomia mais simples e singela.
Feito o diagnóstico, a Vóbertina dava uma volta no quintal cheio de plantas, arrancava três ramos de arruda, boldo ou outras que nem lembro o nome. Em seguida, começava a rezar, uma reza que só se ouvia o chiado, botava a mão na cabeça, no “estambo”, vulgo abdômen, na molera, que era o topo da cabeça e todas as partes com nomenclaruras que só um dicionário nordestino poderia decifrar. Adoro esse “idioma”, diga-se de passagem.
Depois estirava o corpo da criança, virava de cabeça para baixo e, ao terminar, lá estava a planta mais murcha de todas. Era assim que arrancava a doença e a expelia simultaneamente com a chuva de bocejos durante a reza.
No batizado as duas netas @Acervo Pessoal
Ao final, a Vóbertina repetia a avaliação e, incrivelmente as palmas das mãos estavam simétricas, a pele mais corada, o choro cessava e a criança não tinha mais moleza. A mãe ia para casa agradecida. Minha avó ia tomar mais um café do dia, ou fumar um cachimbo de rolo de fumo.
Essa era a reza da espinhela caída, mas tinha outras, porque ela atendia de tudo: peito aberto, estambo virado, sapinho, dente doendo, mau-olhado, quebranto… mas para tudo tinha um benzimento. Meu pai diz que ela deu um caderno com orações para picada de cobra, pé quebrado e tudo que se imaginar. O único limite era que não benzer alguém que seja mais velho que o benzedor, faz mal, dizia a Vóbertina.
Último capítulo: Minha avó merece um obituário
Antes de morar com meu pai, minha avó teve uma vida difícil, mas teve a dádiva de conhecer bisnetos, viu a neta ser a primeira da família a se formar na faculdade, embora não tenha visto todos seguirem seu caminho.
Homens também podiam benzer, mas nem sempre queriam; era uma responsabilidade para as mulheres. Meu pai ganhou o livro, mas achava que não tinha dom. Minha avó deixou orações para as minhas irmãs, mas elas não deram continuidade.
Após os anos 2000, minha avó foi diagnosticada com artrite reumatóide intensa, uma doença autoimune que a levou aos poucos. Com muitas deformidades físicas, eu, minhas irmãs e minha mãe passamos a cuidar dela como se fosse uma criança, trocando fralda e dando banho. Pela primeira vez, talvez, ela foi cuidada depois de todo cuidado que deu aos outros.
No dia que fiz bolo de morango para aniversário dela @Arquivo pessoal
Minha avó sempre teve medo de morrer. Quantas vezes ela não falava “tô morrendo, tô morrendo”, achando que era infarto. A gente colocava uma vela acesa na mão dela, uma simpatia para pessoa não ir. Só que no final eram só gases e acabava virando piada.
A mulher que tinha tanto medo passou a ver sua mãe no quarto dizendo que vinha buscá-la em breve. Pediu para a minha mãe lavar sua mortalha, aquela que costurou muitos anos antes. Poucos dias depois foi internada e morreu de mãos dadas com a minha irmã, a neta preferida, em agosto de 2006. Não me parece um cenário triste.
Dessa vez era eu olhando para ela no caixão, já crescida. Talvez fosse a última benzedeira do bairro, linda, grisalha, com seu vestido azul. Ela era caprichosa e queria ser enterrada bem vestida. Durante a oração, eu vi um feixe de luz que saiu do seu corpo, ninguém viu, só eu.
Em um dos últimos aniversários, já bastante debilitada @Arquivo pessoal
Minha avó já não benzia desde o adoecimento, mas curiosamente, dias depois da sua morte, uma vizinha veio até a minha casa, quando ainda morávamos na Vila Joaniza e não chamou a minha avó, chamou a mim e pediu que eu benzesse a sua neta.
Eu disse que não sabia, ela respondeu que não se importava. Eu benzi rezando um Pai Nosso, que era o que eu sabia e ela seguiu feliz para casa. Recomendei: “busque um médico”.
É por isso que quase 20 anos depois de sua morte, ela merece esse obituário, por tudo que fez pela sua comunidade e pelo que ninguém mais fez depois dela e da dona Joana.
No quintal onde ela benzia @Arquivo pessoal
Minha avó começou a benzer ainda menina, aprendeu com mãe, que aprendeu com a avó, que aprendeu com os antepassados indigenas e negros escravizados, dizia ela, e hoje o meu pai reforça as nossas origens. Ela era uma benzedeira de tanta sabedoria que parecia um xamã, com as feições de rosto alongado, cabelos grisalhos, nariz comprido e lábios grossos.
Outras lembranças dela são do mingau de farinha de mandioca, dos suspiros e bolachas doces comprados com parte da aposentadoria, da obrigação de pedir benção antes de dormir e de ouvir ‘Deus te abençoe”, da bateção de panela as 4h da manhã, das histórias do Eli Corrêa no rádio que ela adorava ouvir, e dos dedos melados de fumo, que até hoje me fazem recordar dela quando sinto o cheiro.
Em mim, deixou muitas memórias, mas quem ela ajudou talvez nem se lembre, como muitas benzedeiras não são lembradas. Para onde foi essa herança viva? Quem ainda conhece uma benzedeira? As próximas gerações as terão como lendas. Mas elas eram de carne e osso. Como minha avó.
Esta reportagem foi produzida com apoio daReport For The World