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Direitos humanos para quem? O que pensam as periferias de São Paulo

Por: Priscila Pacheco

Vanessa Rodrigues de Lima, 29, foi baleada junto com o namorado em 2007. Ele morreu e ela ficou tetraplégica (perda dos movimentos das pernas e braços). O assassino foi preso e morreu alguns anos depois na penitenciária. Roberta Aparecida Moreno, 28, é educadora no Saica (Serviço de Acolhimento de Crianças e Adolescentes) e mora em um terreno que foi ocupado, mas hoje é regularizado.

As duas mulheres têm visões diferentes sobre um tema que frequentemente está no dia a dia: os direitos humanos.

Elas fazem parte de um grupo de 33 pessoas que vivem nas periferias da Grande São Paulo e que foram entrevistadas pela Agência Mural para falar sobre o tema. Afinal, o que significam os direitos humanos? Qual a relação com a nossa vida e com o território onde vivemos? Onde aprendemos sobre eles? Aprendemos?

Vanessa, que vive no Jardim Jaraguá, na zona norte de São Paulo, diz acreditar que são direitos para alguém se expressar e reivindicar algo, “para não acontecer o que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, aquilo tudo que [Adolf] Hitler fez. O direito de ir e vir”. Todavia, ela não se sente contemplada.

“Eu mal tenho direitos humanos. Deveria ter direito a médico e preciso de muita coisa: sonda, gaze e não tem. Você vai no posto de saúde e não tem”, reclama. Para Vanessa, o homem que a baleou foi mais protegido do que ela.

Em contrapartida, Roberta pensa que os direitos humanos estão presentes em todos os momentos na vida dela. Criada no Grajaú, distrito da zona sul de São Paulo, diz que as habitações da região foram conquistadas por causa da mobilização da população.

“A maior parte das casas foram construídas em terrenos invadidos. Hoje, são regularizados, mas alguém invadiu e brigou por moradia antes de eu chegar aqui”. No emprego, o contato também é recorrente. “Utilizamos todos os dias os direitos humanos para garantir a proteção das crianças que recebemos no abrigo”, completa.

Escola do Cotolengo, em Cotia, e manifestação por acessibilidade (Halitane Rocha/Agência Mural)

O QUE É A DECLARAÇÃO?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembrode 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Logo, completou 70 anos em 2018. O documento já teve tradução para mais de 500 idiomas e lista 30 artigos. O primeiro diz que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. A Declaração, inclusive, foi base para a escrita da Constituição Federal Brasileira de 1988.

O advogado Ariel de Castro Alves, membro do Movimento Nacional de Direitos Humanos e conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos), comenta que a Declaração é necessária para que haja parâmetros mínimos que possam ser exigidos do estado.

Explica que sem os direitos humanos na Constituição Federal não haveria instrumentos como a lei Maria da Penha, o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), conselhos tutelares, abrigos, programas para proteger vítimas de violência, sistemas públicos de saúde, educação, assistência social, moradia e justiça.

“Sem seus direitos humanos garantidos, a pessoa não consegue se desenvolver e pode até se tornar uma ameaça à sociedade. A melhor forma de enfrentar a violência é garantindo plenamente os direitos humanos e não o contrário”, diz.

Imagem de Cidade Líder, na zona leste de São Paulo (Raquel Porto/Agência Mural)

SALÁRIO E DESIGUALDADE

A agente escolar Silvia Leandro, 42, é moradora de Osasco, cidade da Grande São Paulo, e diz acreditar que o SUS (Sistema Único de Saúde) e a escola pública são exemplos de direitos humanos praticados no Brasil mesmo que haja deficiências. Entretanto, chama a atenção para a disparidade salarial.

“A gente sabe que no Brasil um negro ganha menos do que o branco. A mulher ganha menos do que o homem. Então, no papel funciona, mas na prática, não”, diz. A igualdade de remuneração pelo mesmo trabalho desenvolvido aparece no artigo 23 da Declaração.

“No Brasil, a gente sabe que não acontece, porque há uma desigualdade muito grande. Muitos não têm acesso a água encanada, vivem em locais de risco. Para mim direitos humanos é só um termo”, argumenta a estudante de propaganda e marketing Cristyanne Dácio, 20, que vive no município de Taboão da Serra.

Entre as pessoas entrevistadas, 26 enxergam os direitos humanos como algo positivo e apontam falhas na implementação. Kauê Justino, 20, auxiliar de produção e morador de Sapopemba, na zona leste da capital, diz que “muitas vezes os privilegiados [ricos] são os que têm acesso e aplicam esse privilégio, que na verdade deveria ser para todos”.

Trabalho de Otávio Roth na exposição “Para respirar liberdade – 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos”, no Sesc Bom Retiro (Priscila Pacheco/Agência Mural)

A VISÃO NEGATIVA

A base dos direitos humanos é universal. Todas as pessoas, independente de gênero, raça ou classe social, devem ser beneficiadas. Há artigos que citam o direito à segurança pessoal, à proteção da lei, à liberdade de opinião e expressão, às condições justas de trabalho, a lazer, à instrução, a um padrão de vida que assegure saúde, bem estar, alimentação, vestuário, habitação, e que ninguém seja submetido à tortura ou a castigos cruéis.

Apesar disso, entre a população existem argumentos de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos é restrita a quem cometeu algum crime. “É um direito que para mim só cobre preso, bandido e, infelizmente, não sou de acordo”, diz o cabeleireiro Edivan Oliveira Queiroz, 49, morador de Carapicuíba, na Grande São Paulo.

“Para mim os Direitos Humanos são tudo de errado. Na teoria, quer defender os direitos da população, mas na prática defende ladrões. A população mesmo que precisa de proteção não tem”, enfatiza o vendedor Jackson Pereira dos Santos, 49, de Diadema.“Eu nunca precisei dos direitos humanos. Nunca me envolvi em nada, né?”, comenta o aposentado Linho Batista do Remédio, 75, de Franco da Rocha.

Adilson Paes de Souza, tenente coronel reformado da Polícia Militar e mestre em direitos humanos, diz que a imagem que vincula esses direitos a pessoas que cometeram delitos surgiu na Ditadura Militar, quando foram criadas associações para defender políticos perseguidos pela posição ideológica. “Associaram que essas pessoas que ‘atuam contra a nação’ não são humanas, não têm direito, que seriam diferentes do chamado cidadão de bem. Perpetuou-se o discurso que continuou até hoje: cidadão de bem, humanos de bem”.

Maria Laura Canineu, diretora do escritório brasileiro da Human Rights Watch, organização internacional criada para investigar violações de direitos humanos e cobrar as autoridades, afirma que esta é uma ideia alimentada por informações falsas que confundem os menos atentos. “É algo que precisa ser combatido”.

Festival no Espaço Mandacaru em Cotia (Halitane Rocha/Agência Mural) @Halitane Rocha/Agência Mural

ONDE APRENDEMOS?

Além do estigma, há a questão sobre o contato com o assunto. As pessoas entrevistadas pela Mural relataram a pouca proximidade com o tema em locais como a escola ou a igreja que frequentam. A internet foi citada como principal ferramenta de conhecimento.

“Não sei explicar o que são direitos humanos”, diz Fabiano de Espíndola Nobre, 13. Estudante da 7ª série do ensino fundamental, o morador de Franco da Rocha diz não ter aprendido sobre o assunto na escola ou ouvido explicação em algum outro lugar.

“Infelizmente não foi lá [escola] que aprendi, mas gostaria que meu filho tivesse a oportunidade de aprender sobre esse e outros assuntos”, diz a empresária Renata Andrade de Holanda, 27, do Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo, que pesquisou o tema na internet e tem um filho de oito anos de idade.

Thais Zavoniak, 17, moradora da cidade de Cotia, citou o colégio como local de aprendizagem, principalmente por causa do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Para ela, que concluiu o ensino médio em 2018, a aplicação dos direitos para as populações mais pobres é mínima em Cotia.

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“Nos hospitais da cidade há descaso e pouco acesso aos recursos e nas escolas existem defasagens e certa marginalização dos estudantes”, comenta. Mas pensa que vive em uma época na qual há mais discussões sobre os direitos dos LGBTs, das mulheres e populações negras.

Na zona leste, a professora de geografia Regiana dos Santos, 39, de Cidade Líder, e o estudante de publicidade e propaganda Marco Antonio Oliveira de Souza, 27, de Cidade Tiradentes, tiveram conhecimento sobre o tema apenas na universidade. “Essa cartilha de direitos humanos não é entregue, nem exposta de um forma clara para a gente na periferia”, compartilha Oliveira.

Segundo Ariel de Castro Alves, direitos humanos deveriam fazer parte do currículo escolar desde o ensino fundamental, mas não aparece nem no ensino superior. “É inconcebível que as pessoas se formem sem amplo conhecimento sobre direitos humanos”.

O advogado ressalta que as atuações de associações de moradores, movimentos de moradia, grêmios estudantis, agentes de saúde, conselheiros tutelares e bons policiais são exemplos de direitos humanos e precisam ser reconhecidos pela sociedade.“Também tivemos muitos avanços no enfrentamento ao racismo, homofobia, violência contra mulheres, crianças, jovens, idosos e inclusão de pessoas com deficiência.”

Priscila Pachecoécorrespondente do Grajaú

Colaboração: Aline Venâncio (Jardim Ângela), Ana Beatriz Felicio (Carapicuíba), Ariane Costa Gomes (Osasco), Betiane Silva (Franco da Rocha), Diego Brito (Diadema), Erika Pacheco (Grajaú), Giacomo Vicenzo (Cidade Tiradentes), Halitane Rocha (Cotia), Júlia Reis (Taboão da Serra), Leonardo Barbeiro (Sapopemba), Letícia Marques (Brasilândia), Paloma Vasconcelos (Vila Nova Cachoeirinha), Paulo Talarico (Osasco), Raquel Porto (Cidade Líder), Renan Cavalcante (Jaraguá)

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