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Sem licença ambiental, duplicação da Estrada do Alvarenga afeta meio ambiente e população

Por: Jacqueline Maria da Silva e Julio Sitto

Falta de licenciamento ambiental e licitação, desmatamento em APP (Área de Preservação Permanente), soterramento de represa e descumprimento de determinações legais.

Esta é apenas parte da lista de questionamentos à obra de duplicação da Estrada do Alvarenga, na zona sul de São Paulo, um projeto considerado irregular pela Justiça, que já causou graves danos ao meio ambiente.

Tudo começou em 25 de abril, quando a prefeitura de São Paulo iniciou a obra de alargamento da Estrada do Alvarenga, com a promessa de melhorar o tráfego, porém sem licitação e sem relatório de impacto ambiental.

Tanto que o Ministério Público divulgou um documento oficial ,em 24 de agosto de 2023, em que denuncia que a obra não possui licença ambiental para ser realizada, apesar de estar em uma Área de Restrição à Ocupação. O órgão ainda pontua que a duplicação da via já causou graves prejuízos à população e ao meio ambiente.

“Espero que a prefeitura recupere a Represa Billings, faça a compensação ambiental”, diz Wesley Silvestre Rosa, líder comunitário @Léu Britto/ Agência Mural

“Não estava no plano de metas e no planejamento da prefeitura, muito menos no programa de mananciais”, afirma o estudante de gestão pública Wesley Silvestre Rosa, 38, morador de Apurá, na zona sul de São Paulo e líder comunitário na região.

Wesley atua em diversos movimentos de preservação ambiental e faz parte do Conselho Gestor de Zeis (Zona Especial de Interesse Social) do Programa Mananciais, colegiado ligado diretamente à obra. O órgão chegou a sugerir ao poder público a não execução do alargamento da via.

“Essa é uma obra de infraestrutura que deveria ser proposta por uma secretaria e só deveria ser executada após emissão do licenciamento ambiental, de alvarás e da Autorização de Supressão de Vegetação”, completa.

No entanto, a obra avançou. A empresa contratada para a execução do projeto derrubou árvores da APP (Área de Proteção Permanente) da Billings e soterrou parte da Represa Billings para construção de um canteiro de obras, o que colocou em risco o abastecimento de água da população do Grande ABC.

Até 13 de julho, último dado disponível, o canteiro havia avançado 1.600 metros cúbicos sobre parte do reservatório. A previsão é que a área aterrada chegue a 9.000 metros cúbicos, equivalente a pelo menos três piscinas olímpicas.

O que é a Billings?
A Represa Billings é um grande reservatório de água construído há quase um século, inicialmente para abastecer a Usina Hidroelétrica Henry Borden, em Cubatão. Atualmente, ela abastece pelo menos 1,5 milhão de pessoas em Diadema, São Bernardo do Campo e parte de Santo André.

O Ministério Público pediu a paralisação da obra em 24 de agosto de 2023, com multa de R$30 mil por dia de descumprimento. Além disso, solicitou licença ambiental emitida pela Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) e exigiu a recuperação da área de preservação.

A prefeitura, no entanto, só suspendeu as atividades dois meses depois, mesmo após intervenção da 7ª Vara da Fazenda Pública, e em 31 de outubro, recorreu da decisão junto ao Tribunal de Justiça. Apenas um dia após o recurso, o presidente do Tribunal de Justiça, Ricardo Anafe, suspendeu a decisão liminar do MP e permitiu a retomada das obras, ainda que sem licitação.

A ausência dos documentos fere os princípios de prevenção e precaução que regem o direito ambiental, segundo o advogado Virgílio Alcides de Farias, 69, especialista na área e coordenador do subcomitê Billing-Tamanduateí, representando a sociedade civil. “Toda obra que não tem licenciamento pode incidir em danos ambientais”, diz.

Máquinas trabalham próximas a residências na duplicação da Estrada do Alvarenga @Léu Britto/ Agência Mural

Ele classifica como política a decisão do presidente do TJ e afirma que não foi levada em conta a Lei Específica de gestão da Billings que prevê “assegurar e potencializar a função da Bacia Hidrográfica do Reservatório Billings como produtora de água para a Região Metropolitana de São Paulo, garantindo sua qualidade e quantidade’”.

Ele cita que é fundamental que o Executivo municipal atenda à Política Nacional de Recursos Hídricos e Mananciais, que prevê a notificação do resultado do licenciamento ambiental ao Subcomitê Billings-Tamanduateí, ligado ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê.

Segundo o advogado, a prefeitura é passível de processo por infringir duas leis importantes: a lei que define a Área de Proteção e Recuperação dos Mananciais da Bacia Hidrográfica do Reservatório Billings e a lei sobre proteção e recuperação das bacias hidrográficas dos mananciais. Ambas estabelecem diretrizes e normas para a preservação de bacias hidrográficas dos mananciais paulistas.

Retrospectiva do caso

1

Janeiro 2023: A prefeitura aproveitou a necessidade de realizar uma obra urgente para revitalizar um muro caído na região e uma erosão, que ameaçavam a segurança de moradores, para anunciar o alargamento da pista. O órgão se beneficiou da isenção da licitação fornecida pela Defesa Civil para obras emergenciais e iniciou a duplicação da via.

2

Abril 2023: A empresa Consórcio Mananciais São Paulo (resultado da fusão das empresas Carioca Engenharia e Passareli Engenharia), responsável pelo alargamento da via, implantou um canteiro de obras sobre parte da Represa Billing, aterrando uma porção do lago para construir um plano de circulação. Segundo nota da prefeitura, trata-se de um aterro provisório que será removido posteriormente.

3

Maio e julho 2023: A Cetesb realizou uma vistoria do local e notificou a prefeitura para que providenciasse a licença ambiental necessária para realização da obra na Área de Proteção e Recuperação de Mananciais da Represa Billings. Não houve resposta ao pedido.

4

Agosto 2023: O Ministério Público interveio e pediu a paralisação alegando se tratar de uma obra de infraestrutura e não emergencial. O MP publicou o documento em que aponta danos a áreas de mananciais da Billings e prejuízos à população.

5

Setembro 2023: A 7a Vara de Fazenda Pública acatou o pedido do MP e pediu a paralisação imediata da obra em 6 de setembro para a prefeitura e retirada do aterro.

6

Outubro 2023: quase dois meses depois da primeira determinação de paralisação, a prefeitura interrompeu a obra e em 31 de outubro recorreu da decisão junto ao Tribunal de Justiça.

7

Novembro: um dia após a solicitação da prefeitura, o presidente do Tribunal de Justiça, Ricardo Anafe, suspendeu a medida liminar do MP e permitiu a retomada das obras pela prefeitura, ainda que sem licitação.

Segundo investigação do site UOL, a partir de dados do Tribunal de Contas do Município,  Ricardo Nunes gastou 295% mais em obras sem licitação que os últimos quatro prefeitos juntos: Gilberto Kassab, do PSD (2006-2013); Fernando Haddad, do PT (2013 – 2017); João Dória, do PSDB (2017 -2018); e Bruno Covas, do PSDB (2018- 2021).

Acesse a íntegra da nota da Prefeitura e da nota da CETESB

Obra prejudica moradores

Com tantas denúncias fica a pergunta: a obra trará benefício à população? Para especialistas que acompanham o projeto, a resposta é não. A duplicação da via e o aterro em parte da represa, ainda que provisório, trarão impactos ambientais, econômicos, sociais e logísticos, como o aumento do risco de enchentes, piora da qualidade da água e encarecimento de imóveis e impostos.

Esta é a opinião da bióloga e pesquisadora do Reservatório da Billings Marta Angela Marcondes, 62, e do arquiteto, urbanista, educador ambiental e permacultor Alexandre Monteiro da Cruz, 45.

Eles monitoram e acompanham a duplicação da via desde que o projeto foi iniciado e, a pedido da Agência Mural, listaram seis problemas que podem ser agravados pela obra. Confira:

Prejuízos para população

1

Perda de conforto térmico e enchentes: A remoção de árvores durante a obra impactou a biodiversidade do local e reduziu a vegetação, que ajudava a manter o clima mais fresco no bairro. Além disso, o corte de árvores dificultou a drenagem da água das chuvas, facilitando a ocorrência de alagamentos;

2

Piora da qualidade da água: A obra remexeu o fundo do Reservatório da Billings e deslocou o lixo acumulado no fundo, dispersando microorganismos causadores de doenças na água. Isso, somado às substâncias químicas altamente tóxicas liberadas pela obra, podem impactar a qualidade da água da Represa Billings, que abastece municípios do Grande ABC e de parte de São Paulo;

3

Falta de água e energia: O soterramento reduz a capacidade de armazenamento do Reservatório da Billings. Isso afeta diretamente a quantidade de água disponível para abastecimento da população e para geração de energia na usina hidrelétrica Henry Borden, que abastece o polo industrial de Cubatão;

4

Sem chuva: Como parte do volume de água da represa foi comprometido, a formação de nuvens de chuva também foi afetada. O resultado são temperaturas mais quentes e menos reserva de água para uso da população;

5

Piora do trânsito: A obra de infraestrutura poderá aumentar o fluxo de carros na região e possibilitar a passagem de veículos pesados, o que pode intensificar o trânsito – ao contrário do esperado pela população;

6

Imóveis e IPTU mais caro: A promessa de facilidades no transporte tende a aumentar o interesse da população por morar na região, o que aumenta a especulação imobiliária e expulsa as famílias mais pobres para áreas de mananciais.

Um caminho sem volta

Para Wesley, a gestão deveria repensar o projeto. “Espero que a prefeitura recupere a Represa Billings, faça a compensação ambiental, devolva a estrada como era antes e que, se averiguar que ali é necessária uma obra, apresente estudos mostrando que isso é imprescindível”, ressalta.

Ele vê que boa parte da população não está ciente da gravidade da questão, por isso não tem se mobilizado para questionar as autoridades.

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Obra teve impacto direto sobre qualidade da água da Represa Billings @Léu Britto/ Agência Mural

Para construção do canteiro de obras foi necesssário aterrar parte da represa @Léu Britto/ Agência Mural

‘Eu escolheria não retirar o verde da Estrada do Alvarenga’, di zmoradora @Léu Britto/ Agência Mural

Prefeitura de São Paulo foi acionada judicialmente para paralisar a obra

Pedestre na região da obra de duplicação da Estrada do Alvarenga @Léu Britto/ Agência Mural

Promessa de melhorar o trânsito no local pode ter efeito reverso, alertam especialistas @Léu Britto/ Agência Mural

Enquanto obra não é finalizada, trânsito local se mantém no sistema “pare e siga” @Léu Britto/ Agência Mural

Para realização da obra, foi necessário suprir parte da vegetação local @Léu Britto/ Agência Mural

Apesar disso, prefeitura não providenciou relatório de impactos ambientais @Léu Britto/ Agência Mural

Empresa Consórcio Mananciais São Paulo é a responsável pela obra, apontada pelo Ministério Público como irregular @Léu Britto/ Agência Mural

Projeto foi iniciado em abril deste ano, sem licitação @Léu Britto/ Agência Mural

Em geral, os moradores da região são informados sobre a obra por meio de jornais e redes sociais do bairro, que costumam trazer uma perspectiva favorável ao projeto, de apoio ao alargamento da via.

“[Os problemas da obra] não chegaram ao meu ouvido. Eu não concordaria. A prefeitura poderia ser mais transparente para que a gente pudesse ter o direito de escolher. Eu escolheria não tirar o verde da [Estrada] Alvarenga”, diz a estudante e monitora de transporte escolar Vitória Silva, 18, moradora do Jardim Apurá, na zona sul de São Paulo.

Ela realiza ao menos quatro viagens por dia na Estrada do Alvarenga em seu trabalho.
Os especialistas ouvidos na reportagem concordam: a perda ambiental local dificilmente será compensada, com impactos duradouros para a população da Grande São Paulo. “Cabe ao Poder Público e à sociedade atuar em conjunto para garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado”, reivindica o advogado Farias.

Esta reportagem foi produzida com apoio da Report For The World

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