Quando tinha seis anos, Flávia Oyátumbi pegou textos que escrevia e ateou fogo no quintal de casa. “Eu achei que não tinha mais porque escrever”, relembra. Na infância, ela se sentia desestimulada a seguir com a escrita, em um tempo em que os pais trabalhavam fora enquanto os colegas do colégio particular onde era bolsista não eram receptivos aos textos. Décadas depois, essa história mudou.
Aos 43 anos, ela estreia no mundo da literatura infantil com “O Tesouro de Amina“, obra que celebra a cultura afro-brasileira no universo dos pequenos leitores e investe em um movimento de aceitação e valorização da negritude.
Flávia é professora da rede municipal na zona leste de São Paulo, em Artur Alvim, onde também mora.
Publicado em julho de 2023 pela Editora Evoluir, o livro narra a história de Amina, uma menina feliz, mas que raramente sorri por ter vergonha de mostrar os dentinhos separados.
Por meio do apoio de uma professora e da avó, Amina aprende a valorizar o sorriso com diastema – um espaço entre os dentes superiores do meio – como uma herança africana preciosa, tão significativa quanto os cabelos crespos. A narrativa é um convite para que crianças e adultos explorem as próprias ancestralidades.
A obra recebeu incentivo do governo federal para a publicação e distribuição em escolas públicas. Porém, somente no final de 2023, Flávia começou a divulgar ativamente e de forma espontânea o livro. Ela foi convidada por professores de diversas regiões da capital paulista para trabalhar o texto em sala de aula com os alunos, além de participar de saraus e formações.
Em meados de novembro, uma turma de uma escola no Rio de Janeiro encenou uma peça baseada no livro. Flávia conta que ficou emocionada ao ver uma aluna caracterizada como Amina. “Um educador(a) foi impactado por esse trabalho, aí transferiu para o aluno, conectou de novo, e você vê isso acontecendo. É muito bonito”, conta em entrevista à Agência Mural.
A publicação é um marco na vida da educadora e escrevivente – como Flávia se autointitula.
Após a infância, os anos passaram e a escrita assumiu outro papel na vida de Flávia. Ela virou pedagoga e linguista, passando a atuar com foco em educação, linguagens e culturas afro-brasileiras. Hoje ela é professora mediadora em sala de leitura, além de coordenar o sarau escolar Erê Virtuoso.
Observando as dinâmicas e linguagens das crianças e adolescentes, a educadora passou a usar a literatura como forma de se conectar com os estudantes e abordar diversos temas dentro da sala de aula, como a construção afirmativa da identidade negra.
Durante a pandemia, Flávia embarcou em um processo de “conexão ancestral” por meio do Candomblé. Ela imergiu nas raízes afro-brasileiras e retomou a escrita. “Essa jornada foi muito rica justamente por ser um resgaste de algo que deixei lá atrás e que faz parte da minha essência, de quem sou de fato”, diz.
Dessa jornada, surgiu a obra infantil “O Tesouro de Amina”.
Representatividade na literatura infantil
Graças ao black power imponente da personagem, Flávia é constantemente questionada sobre a inspiração para o livro e se Amina seria uma versão sua ou de sua filha do meio. “Racionalmente não sou eu, mas pode ser que subconscientemente seja eu”, conta, entre risadas.
“A personagem é alguém que descobre caminhos ancestrais. Então pode ser um desejo meu de ter me descoberto mais cedo, ter conseguido expor isso no ambiente escolar, de ter sido ouvida e acolhida”
Muito desse desejo, segundo Flávia, vem do fato de ter sido uma das poucas alunas negras na escola particular em que estudou. Para ela, o racismo não está restrito somente a esse ambiente. “Mesmo na escola pública onde a maioria é negra, a discriminação e exclusão das crianças negras é muito presente”, afirma.
Talvez por isso, afirma, a recepção do livro tenha sido surpreendente tanto em casa, com os três filhos dela, quanto em sala de aula.
Flávia destaca a importância de representar a diversidade na literatura infantil, um campo historicamente dominado por autores brancos.
“A ilustração de pessoas negras na literatura nunca foi convidativa. Ela estereotipou, criou marcas de não beleza”. Segundo ela, “O Tesouro de Amina” segue o caminho oposto desse movimento. “A ilustração de pessoas negras é um aspecto fundamental da literatura para fazer conexão com crianças negras”, diz.
Combate ao racismo na educação
Com 17 anos de experiência no campo da educação, Flávia enfrenta um desafio significativo: integrar questões raciais no ambiente escolar.
Apesar da obrigatoriedade legal, estabelecida pela Lei 10.639/03, de ensinar história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio, 70% das secretarias municipais de educação não implementaram ações efetivas para transformar essa legislação em prática, segundo estudo do Instituto Alana e do Geledés Instituto da Mulher Negra, realizado em 2023. “Existe uma hostilidade que a gente, professor, precisa enfrentar todos os dias”, comenta.
Ela observa que muitos educadores, predominantemente não-negros, tendem a minimizar a existência do racismo. “Mas quando você se aproxima das crianças e vê os pequenos movimentos que elas fazem, vai perceber que elas têm comportamentos racistas desde muito cedo. E as crianças negras estão em sofrimento psíquico desde muito cedo na escola”, analisa.
Como educadora, Flávia sente que precisa convencer constantemente os colegas da importância de discutir essa temática. Mas reconhece algumas recompensas desse trabalho.
Nos 45 minutos dedicados a atividades culturais com os alunos, Flávia investe em obras produzidas ou protagonizadas por pessoas negras, e consegue perceber mudanças significativas, especialmente na identidade das meninas negras.
‘Elas fazem um espelhamento de mim, das personagens negras da literatura’
Flávia observa um rápido movimento de autoamor, autocuidado e agrupamento entre essas crianças, incluindo aquelas que praticam religiões de matriz africana.
“Estou há dois anos coordenando a sala de leitura, e apenas agora no final de 2023 algumas das crianças manifestaram discretamente ou começaram a ter coragem de dizer que seus parentes são da umbanda ou do candomblé”, diz.
Ela diz acreditar firmemente que “resgatar a cultura afro-brasileira é muito importante, seu significado, seu valor, sua beleza”. “Somente as trocas podem gerar movimentos maiores”. “O Tesouro de Amina” caminha nessa direção.
Preço: R$ 49,90 (36 págs.)
Texto: Flávia Oyátumbi
Ilustrações: Suzane Lopes
Editora: Evoluir
Para comprar: https://editoraevoluir.com.br/products/o-tesouro-de-amina