Todos os dias, Edson da Silva, 63, percorre as ruas do Grajaú, na zona sul de São Paulo, em busca de materiais recicláveis. Há mais de 40 anos, ele coleta itens descartados como papelão, plástico e alumínio. O que começou como uma necessidade de ajudar em casa se tornou um trabalho integral que se estendeu por toda a vida.
“Parei de estudar na 6ª série porque precisava trabalhar para comer. Meus pais não tinham muitas condições, eram dez filhos e, como um dos mais velhos, precisei tomar alguma atitude”, afirma. “Foi aí que comecei a catar papelão e garrafa. No começo era só pra ter o que comer, depois acabou virando o que eu sabia fazer.”
Edson José é coletor de reciclagem há mais de 40 anos, no Grajaú @Karine Gomes/Agência Mural
A reciclagem nunca foi a primeira opção dele. “Catador nenhum gosta de ficar por aí pegando lixo. Faz porque precisa. É cansativo, sujo, e o dinheiro que dá mal ajuda”, desabafa.
Quando deixou a escola, conseguiu empregos formais, com registro em carteira, atuando como auxiliar de serviços gerais. No entanto, ao longo dos anos, a coleta acabou sendo o caminho mais “fácil”, especialmente diante das dificuldades provocadas pelo vício em álcool.
“Comecei a beber e a fumar muito cedo, aos 12 anos, e isso se tornou um vício que impactou a minha vida. Eu até conseguia trabalhos fixos, mas não permanecia devido à doença”, conta.
Do lixo a arte
Apesar de exercer um papel fundamental na preservação ambiental, catadores informais como Edson muitas vezes não têm consciência do impacto ecológico do próprio trabalho.
Na maior parte dos casos, a coleta não é uma escolha sustentável, mas uma alternativa diante da falta de oportunidades, do desemprego e da vulnerabilidade social.
Dados de estudos cedidos pelo Instituto Pólis à Agência Mural mostram que cerca de 90% da reciclagem em grandes metrópoles como São Paulo é realizada por trabalhadores informais.
As informações foram compiladas pelo instituto a partir de levantamentos da USP, do Atlas da Reciclagem e do CadÚnico. Segundo esses dados, menos de mil catadores estão formalizados em cooperativas, enquanto quase 40 mil pessoas na capital dependem diretamente da coleta, cerca de 10% delas em situação de rua.
A poucos quilômetros de Edson, na favela da ZR, mora Luciano Amaral, 45. Conhecido como Tio Lu, o artista vive em meio às bugigangas que costuma transformar em arte.
Desde 2016, ele atua como catador de recicláveis, mas, além de vender o material em ferros-velhos, também busca dar novo significado aos objetos que encontra.
“Sempre gostei de criar e experimentar, e com a coleta não é diferente. Eu modifico latinha, papelão, quadros, faço pipa. Olho pro lixo com outros olhos”, comenta.
Edson e Luciano têm histórias diferentes, marcadas pela desigualdade social. Ambos reconhecem que, se pudessem escolher, não viveriam da catação, principalmente por causa da baixa remuneração e da falta de valorização profissional.
Além do baixo valor recebido pelo material — o quilo das garrafas PET, por exemplo, custa cerca de R$2 —, os trabalhadores relatam enfrentar sérios riscos à saúde. Luciano relembra o dia em que quase perdeu a mão depois de contrair uma bactéria ao recolher uma garrafa de vidro quebrada.
“Cortei a mão com o vidro e acabei pegando uma bactéria. Como não tinha muita noção do que fazer, deixei passar, achando que era só um corte. Quatro dias depois, minha mão estava muito inchada e a infecção já tinha se espalhado para o braço. Por pouco, não perdi”, conta.
A crise do plástico
A atuação dos catadores ameniza um impacto profundo causado por materiais descartados, dos quais o plástico é um dos mais críticos. Ele é hoje o segundo maior componente do lixo urbano, atrás apenas dos resíduos orgânicos, e corresponde a cerca de 20% de tudo o que é descartado nas cidades.
Metade de todo o material desse tipo existente no mundo foi produzido nos últimos 20 anos, período em que a fabricação global dobrou. E mais, entre 60% e 70% do que é recolhido no Brasil não pode ser reaproveitado, o que explica por que a reciclagem informal tem pouco retorno financeiro.
As periferias são as áreas mais afetadas pelo descarte incorreto de resíduos. A falta de infraestrutura e de políticas públicas eficazes faz com que plásticos e outros materiais se acumulem em ruas, córregos e terrenos baldios, agravando enchentes, doenças e poluição.
Quando questionado sobre o funcionamento do sistema de reciclagem, Edson admite nunca ter parado para pensar sobre isso. Depois de refletir um pouco, ele arrisca uma comparação.
“A reciclagem é como uma escada… Lá em cima estão as empresas que ganham mais, e lá embaixo, a gente, que faz o serviço pesado.”
Luciano tem uma visão parecida, mas destaca outro ponto: “Acho que muita gente nem pensa muito sobre isso porque falta acesso à informação mesmo. A maioria só coleta pelo dinheiro, não fica parando pra pensar nessas coisas de meio ambiente e gente rica por trás.”
Cidade de São Paulo tem mil catadores em cooperativas @Ira Romão/Agência Mural
Entre o lixo e a esperança
Com a COP30, um dos principais eventos de discussão sobre a situação do meio ambiente e a crise climática. Nas últimas semanas, movimentos sociais das periferias elaboraram uma carta para que os impactos nos territórios periféricos sejam levados em conta.
No texto, a Frente Periférica por Direitos aponta a importância desses trabalhadores e propõe “Mapear e apoiar os trabalhadores que atuam com “empregos verdes”, entregas de bike, catadores de reciclagens, grupos de reciclagem, educadores populares ambientais”.
É o que também aponta o Instituto Pólis, que indica que transformar a realidade de catadores informais exige mais do que discursos sobre sustentabilidade.
O órgão defende o reconhecimento oficial da catação como profissão, com remuneração justa e políticas de inclusão e reabilitação social, especialmente para quem vive em situação de vulnerabilidade ou enfrenta dependência química.
A reflexão é semelhante à do cientista Paulo Artaxo, coordenador do Centro de Estudos da Amazônia Sustentável da USP e referência internacional em pesquisas sobre mudanças climáticas.
Em aula ministrada na universidade, durante o curso de extensão “Divulgação científica para jornalistas e comunicadores”, Artaxo destacou que o aquecimento global deixou de ser um problema apenas da ciência e se tornou um desafio de toda a sociedade.
Mais do que políticas públicas, ele ressalta a importância da educação ambiental e da democratização da informação para que a população, inclusive a mais vulnerabilizada, entenda seu papel diante da crise climática.
Apesar dos obstáculos, Edson e Luciano ainda acreditam em recomeços. Prestes a completar 65 anos, faixa-etária mínima para a aposentadoria por idade, Edson planeja deixar as ruas e “descansar”, como diz com um leve sorriso no rosto.“Quero aproveitar mais a vida, sem me preocupar com o lixo”.
Luciano, por sua vez, enxerga na arte uma chance de mudar de vida. Entre esculturas e peças feitas com sucata, ele sonha em conseguir um celular melhor para divulgar seu trabalho nas redes sociais e, quem sabe, transformar a criatividade em sustento fixo.

