Não tinha erro. Podia procurar por ele, em qualquer parte do campo. Se tivesse complicado dava a bola no pé dele. Rápido, habilidoso e inteligente, Nenzinho sempre criava uma solução para abrir o jogo.
Jogava para o time, não gostava de ser ‘o cara’ dentro de campo. Se oferecessem para ele a camisa 10, função que de fato ele exercia, ouviria um enfático ‘não’, acompanhado do gesto negativo do indicador e da cabeça.
Achava que a 10 chamava muito a atenção, era para os ‘boleiros’ e ele não gostava de se ver assim. Mas, na prática, era ele quem executava a função de ser o pensador do time.
Sempre foi assim, desde os tempos em que eu cheguei para jogar no quadro infantil da Associação Atlética Fontalis, nos idos de 1993. Na época, todo mundo já o conhecia, era o Nenzinho. Ninguém o chamava de Antônio, seu nome de batismo.
Ele já era o dono do meio campo, Campo do Olaria, terreno onde hoje fica a UBS (Unidade Básica de Saúde) do Jardim Fontalis e todo seu entorno desde a avenida Ushikichi Kamiya.
O Fontalis é uma família, jogamos juntos por aproximadamente 20 anos, crescemos, nos tornamos adultos. ‘Nem’ sempre da mesma forma, humilde e risonho, com seus olhos pequenos e seu boné, mais tarde adotou também o corte baixinho quase careca.
Pelos campos onde passamos sempre era o nosso destaque, tinha um fôlego invejável. Num time marcado por confusões homéricas, ele era pacífico e apaziguador. Não tinha maldade nenhuma.
O destaque técnico dele era tanto, que em um campeonato que disputávamos a final, ele foi chamado à beira de campo por dois homens que lhe mostraram uma arma e disseram “se ganharem, morre todo mundo”. Claro que foram nele, era o 10.
Acabamos o primeiro tempo na frente 1 a 0, perdemos por 1 a 2. Ficamos em segundo lugar, felizes e vivos.
Era apaixonado por futebol e cerveja. Em seu primeiro casamento, meio time foi padrinho, inclusive eu, e garantimos a bebida, que foi muita. A risada alta e o bom humor eram marcas registradas, assim como o chute forte e a capacidade de cobrir uma parte muito grande do campo.
Sempre agitava um ‘churrasquinho’ depois dos jogos. Era ele, Tonho, Aldo e eu. Comprávamos uma caixa de cerveja de garrafa, um quilo e meio de carne, linguiça e no som ‘Só Pra Contrariar’, grupo de pagode de Minas Gerais, que era o seu predileto, em especial Alexandre Pires, o vocalista. Até em show ele foi.
E dá-lhe resenha, era disso que ele gostava, era o 10 nisso também.
Muito ligado à família, seu pai estava sempre nos jogos, tinha um carinho especial com seu irmão caçula que tem deficiência física. Recentemente havia casado novamente e deixa uma filha de quatro meses.
A gente não se via mais com tanta frequência, ele estava morando em Francisco Morato, cidade da Grande São Paulo. Quando a gente se encontrava fazia questão de gritar “André, seu safado”, era o único que me chamava pelo nome e não de “Cabeça”, apelido que tenho desde infância.
‘Nem’ era assim com todo mundo, o tempo todo. Não havia tempo ruim. Estava sempre gritando o nome de alguém na avenida.
Nosso camisa 10 foi infectado pela Covid-19, não conseguiu se livrar da sua marcação implacável. Ela o sufocou, não o deixou respirar. Completaria 42 anos no último dia 8 de maio, não tinha histórico de doenças, não fazia parte do grupo de risco. Saiu cedo demais de campo.
A notícia da morte causou imensa tristeza no bairro, posts em redes sociais, grupos criados para falar sobre ele no whatsapp, produção de uma camiseta com a imagem dele, até um desenho homenageando-o circula na internet.
Não houve quem não chorasse sua morte. Passei uma noite no telefone, ligando e recebendo ligações de amigos em comum. Estamos ainda incrédulos.
A camisa 10 do A. A. Fontalis foi eternizada nas nossas mentes e corações, como a de Pelé, de Zico e Neto, do seu Corinthians.
Antônio Machado Neto, ‘Nem’, ‘Nenzinho’, foi um entre os mais de 10 mil mortos (total de vítimas enquanto escrevo esse texto – são mais 3.000 só na Grande São Paulo). Para todos que o conheceram é muito maior que qualquer “e daí?” de qualquer político, seja ele quem for.
Nem foi maior que qualquer número e a saudade que deixa por aqui é incomensurável.