Nós somos dois irmãos, Leonardo e Eduardo, e nascemos/vivemos no Conjunto Habitacional Parque Itajaí, na periferia de Campinas, cidade que fica a 95km da capital paulista.
Quando a gente nasce numa realidade periférica, não somos estimulados a pensar criticamente nosso mundo, muito pelo contrário. Na quebrada, a gente só tem de trabalhar e se contentar em pagar conta, pegar transporte público lotado, sobreviver. Não somos incentivados a refletir sobre a nossa condição e o impacto das nossas ações no mundo – já ouvimos comentários que isso era irrelevante.
No momento em que decidimos nos tornar veganos (ou seja, não consumir produtos de origem animal), não tínhamos nenhuma referência, ninguém à nossa volta falava sobre isso, vegetarianismo era sinônimo de burguês, geral falava que ”isso é coisa de rico, de playboy, não é pra vocês”.
Realmente, é muito difícil pensar e refletir sobre qualquer outra coisa quando estamos numa situação vulnerável, enfrentando dificuldades básicas. E justamente por isso é muito importante falar sobre políticas públicas que visam sanar essas necessidades. Falar sobre a mudança pessoal sem contexto é irresponsável. Mas acreditamos que sim, é possível nascer numa realidade difícil e desenvolver um senso crítico.
Nós viemos de uma realidade bem desestruturada, com uma história que incluiu despejos, cortes de água e luz, e começamos a colaborar para sustentar a casa aos 16 anos (trampando em uma rede de fast food). Nosso pai vivia em situação de rua e nossa mãe passou por muitas situações de desemprego. Mesmo com todas as adversidades, percebemos que não importa onde você mora, importa como você pensa.
Antigamente, a gente não se preocupava com questões sociais (nem com a nossa realidade), quem diria com o meio ambiente ou com os direitos dos animais.
Quando tivemos contato com o veganismo, descobrimos que a comercialização e o consumo de animais tinha uma relação direta com sofrimento e exploração. De tal forma que foi difícil seguir ignorando tudo que há por trás dos ovos, de pedaços de carne, de um copo de leite, assim como uma série de outros produtos que utilizam animais. Mas o nosso processo não foi de imediato, nós, em momentos diferentes, levamos uns dois anos para mudar.
Devido à falta de informação e sem referências, foi difícil mudar os hábitos de forma tão rápida, ainda mais com um meio social que não era favorável. Na época, o Leonardo trabalhava como garçom e o Eduardo era vendedor de tênis numa loja de shopping.
Na loja de tênis, por exemplo, a maioria dos funcionários eram homens, e por conta do machismo, existia muita tiração de sarro e preconceito em relação a este assunto. Os caras ali compravam pizza e ofereciam, fazendo piadas, às vezes também homofóbicas, do tipo: “Você é viado, vai comer uma picanha e depois fala comigo.”
Sempre buscamos compreender que as pessoas que agem dessa forma não são más, são pessoas que desconhecem um determinado assunto e agem de forma preconceituosa. E, justamente por isso, sempre trocamos ideias e não caímos na pilha.
Quando decidimos parar de consumir produtos de origem animal, percebemos que essa forma de se alimentar e viver era muito mais barata e também acessível a nossa realidade
Passamos a gastar metade do que a gente gastava antes com alimentação, além de a qualidade ser muito melhor, algo que nem nós e ninguém à nossa volta acreditava que fosse possível.
Foi ensinado pra gente que carne era sinônimo de fartura e ascensão social, e que se alimentar de forma saudável era muito difícil e inacessível. Uma vez a nossa mãe abriu o congelador, olhou e disse: ‘’Não temos comida, não temos como cozinhar.’’ Na verdade tinha comida, só não tinha carne. E eu fiquei com isso na cabeça. Naquele dia, quando voltei do trampo, colei num açougue e comprei algumas ‘’misturas’’, e disse: ‘’Pronto mãe, agora temos comida.’’
Descobrir que a realidade não é bem assim fez com que a gente tivesse mais motivação para lutar pela libertação animal e, consequentemente, entender que a forma como estávamos vivendo era totalmente condicionada e pouco refletida, estávamos apenas reproduzindo comportamentos e hábitos que são muito comuns na sociedade, sobretudo, nas periferias.
Passamos mais de 15 anos acreditando que só existia uma forma de viver e de se alimentar. Hoje, as nossas escolhas são mais pensadas e o nosso cardápio é repleto de alimentos de verdade, como frutas, legumes, verduras, grãos e cereais.
Nós vivemos na periferia por 20 anos e só fomos descobrir a existência de uma horta comunitária depois que viramos veganos – uma horta que já estava funcionando há 14 anos. Nesta horta comunitária, além do preço justo, sabemos que a renda é destinada a cerca de 12 famílias, que produzem alimentos orgânicos e frescos.
A primeira vez que fomos na horta, nós ficamos impressionados e passamos a frequentar toda semana. A gente chegava lá, encostava a bike no canto, e comprava couve, alho-poró, alface, rúcula, mandioca. O pessoal da horta, muito gente boa, fala ‘’pode escolher e apanhar’’.
Passar a valorizar esse tipo de coisa trouxe outras mudanças para nossa vida. Antes a gente estava envolvido com torcida organizada, só queria saber de futebol, sem curso superior, formados em escola pública de baixa qualidade. E a mensagem que fica é que é possível ampliar os horizontes, e enxergar para além do que nos é imposto.
Hoje, além de estarmos ativos na luta coletiva, estamos também na nossa luta diária, aprendendo todos os dias a enxergar como podemos contribuir de forma positiva para uma sociedade mais justa para nós humanos e para todas as espécies que dividem o planeta com a gente.
Nos esforçamos para mostrar que sim, nós que não tivemos acesso a quase nada quando crianças, e crescemos com diversas dificuldades, podemos escolher o que comer, com o que queremos trabalhar ou como viver, e quem vai decidir o que é pra nós, somos nós, independentemente do nosso CEP.