“Se pudesse, diria para outras crianças que elas [entidades] nunca fazem e nunca vão fazer mal a ninguém”, diz Janaina Alves de Sousa, 9, criança que vive no bairro Campanário, em Diadema, na Grande São Paulo. As entidades a que ela se refere são os exus e orixás, cultuados na umbanda e que são citados em cantos dessa religião.
A menina conta que, embora saibam que ela segue essa crença, não canta as músicas do terreiro em voz alta na escola, pois diz acreditar que os colegas teriam medo ou a julgariam. Para ela, as religiões de matriz africana sofrem preconceito.
Ela dá como exemplo o entendimento errado sobre o termo macumba, comumente usado de forma ofensiva e não com a real finalidade. “É um pedido feito para os guias com o intuito de fazer o bem”, explica.
Essa sensação não é incomum entre as crianças que seguem alguma crença e é uma das questões vividas na infância.
Há poucos estudos sobre esse recorte da religião e infância, mas um levantamento da Agência Mural no Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do MDHC (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania) entre os anos de 2020 a 2022, indica aumento no número de ocorrências de intolerância religiosa, inclusive, contra crianças.
Os números podem estar subestimados, pois se baseia apenas em quem entrou em contato para registrar uma denúncia. Em 2020, o número de protocolos foi de 515, seguido de 529 em 2021 e 736, em 2022, por meio do Disque 100.
O que chama mais atenção é que houve um crescimento no número de denúncias de intolerância religiosa contra crianças de 0 a 14 anos. Em 2020 foram 13 crianças, ou seja 2,52% do total de denúncias protocoladas, saltou para 26 (4,91%) em 2021 e dobrou em 2022 chegando a 62 crianças (8,28%).
Os artigos 3º e 5º do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) apontam que as crianças têm os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, proteção e liberdade e que não devem ser objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, entre outras violências e formas de opressões, incluindo a religiosa.
Não há porém a divisão desses dados por religião nos últimos três anos. No Balanço Anual Disque 100 Direitos Humanos, em 2018, as religiões de matriz africana foram as que sofreram mais situações de intolerância, somando 30% das ouvidorias, seguida das cristãs (6%) e a protestante (5,5%).
Esse tipo de situação atinge mais as religiões afro, mesmo com um volume muito menor de seguidores. Segundo o Datafolha, as religiões cristãs prevalecem entre os brasileiros, sendo 50% de católicos, 31% de evangélicos e 3% espíritas. Já umbanda, candomblé ou outras religiões afro-brasileiras correspondem a 2% da população.
Mas como crianças que estão em igrejas, templos, terreiros e mesquitas lidam com a fé?
Ao longo dos últimos meses, a Agência Mural ouviu meninos e meninas de sete religiões institucionalizadas no Brasil – candomblé, islamismo, catolicismo, budismo, espiritismo, umbanda e protestantismo (evangélica), sobre como vivem a espiritualidade e como ela influencia essa fase da vida, em um cenário de aumento da intolerância.
Entre e conheça a história de cada uma delas.
Janaina e a umbanda
Janaina Alves de Sousa, de Diadema, na Grande São Paulo tem 9 anos e é umbandista.
Praticamente nasceu na religião, pois a mãe ia ao terreiro ainda grávida. Saiba mais sobre ela e a religião
Alice e a igreja evangélica
Alice Borges, do Jardim Apurá, zona sul de São Paulo, tem 9 anos e é evangélica.
Ela cria raps para Jesus. Saiba mais sobre ela e a religião
Ana Paula é Yalasé no candomblé
Ana Paula do Carmo, de São Bernardo do Campo, tem 8 anos e é candomblecista
tem o cargo de Yalasé em seu barracão. Saiba mais sobre ela e a religião
Milena e o espiritismo
Milena Bonsangue, da Vila Marari, no distrito de Cidade Ademar, zona sul de São Paulo, tem 9 anos e é espírita.
Ela desenha nas aulas de evangelização. Saiba mais sobre ela e a religião
O islamismo de Mooshod
Moshood Silva Balogun, de Diadema, na Grande São Paulo tem 11 anos e é muçulmano.
Ele faz jejum voluntário e estudo de outro idioma para entender o islamismo. Saiba mais sobre ele e a religião
Luiza aprende virtualmente budismo
Luiza de Souza Parra, da Vila Clara, zona sul de São Paulo, tem 8 anos e é budista.
A menina aprende virtualmente sobre o budismo de Nitiren Daishonin. Saiba mais sobre ela e a religião
A coroinha Isabelly na igreja católica
Isabelly Cesário Figueiredo, de Suzano, tem 9 anos e é católica.
A menina é coroinha na igreja matriz Santa Suzana, em Suzano, na Grande São Paulo. Saiba mais sobre ela e a religião
Sinais de atenção
De acordo com o psiquiatra Florisvaldo Torres, a religião pode trazer benefícios como ajudar na socialização e lidar com as diferenças a partir de conceitos como a igualdade e respeito.
Por outro lado, o especialista alerta para o perigo de experiências religiosas castradoras, ainda mais na fase infantil: “pode gerar culpa ou medo, impedindo ou atrapalhando a criança de viver experiências próprias da infância e de se desenvolver emocionalmente”.
Sobre o risco de sofrer ou causar situações de intolerância religiosa, ele reforça a importância de exemplos vivenciados, na prática, pelos responsáveis das crianças, que desde pequenas tendem a reproduzir comportamentos que veem nas figuras de cuidado mais próximas.
O psiquiatra trabalha em um Centro de Apoio Psicossocial Infanto Juvenil de São Paulo e reforça que “o importante é sempre respeitar o espaço da criança e seu bem-estar. Podemos observar aonde ela sente-se melhor e mais à vontade para continuar sendo criança mesmo em espaços religiosos.”
POVOS INDÍGENAS
Apesar de não ser uma religião institucionalizada, a população indígena também possui uma série de ritos e diversas culturas. Contatamos crianças e seus responsáveis de aldeias presentes nas periferias da Grande São Paulo, como na região do pós-balsa de São Bernardo do Campo, mas não quiseram conceder entrevista, apontando a língua falada como um dos obstáculos.