Durante o mês de novembro é comum ver eventos relacionados à Consciência Negra promovidos pelo poder público, já que o dia 20 de novembro marca a morte de Zumbi dos Palmares, importante nome na luta contra a escravidão e de resistência do povo preto.
Mas, para além da simbologia da data, como os municípios da região metropolitana de São Paulo têm atuado com políticas direcionadas para a população negra?
A Agência Mural fez um levantamento nas 39 prefeituras da Grande São Paulo para entender quais delas possuem departamentos específicos para olhar para a questão racial. O resultado é que essa ainda parece ser uma preocupação distante da maior parte das gestões municipais ou é tratada em segundo plano.
Raio-x dos municípios
Segundo dados levantados pela Agência Mural, Osasco é o único município da Grande São Paulo que possui uma Secretaria Executiva de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Em Guarulhos, há uma Subsecretaria da Igualdade Racial.
O conselho para promoção da igualdade racial é o órgão mais encontrado entre os municípios para tratar do assunto. 21 deles possuem esse espaço para dialogar com a população.
Apesar da importância do conselho, especialistas defendem que é necessário estrutura para que a gestão atue de forma concreta.
“O conselho pode se tornar um espaço esvaziado se tem caráter simbólico e figurativo. Por mais que seja um espaço de diálogo, ele precisa ter incidência, atuação mais direcionada”, afirma a professora de políticas públicas Regimeire Maciel, 43, da UFABC (Universidade Federal do ABC).
O conselho municipal é um espaço para que a sociedade civil participe da construção de políticas públicas do território em um determinado tema. Ele geralmente é composto por membros do governo e da sociedade civil.
Porém, em alguns casos, o conselho é apenas consultivo, ou seja, julga o que o poder público apresenta. É necessário acessar a lei orgânica do município para entender melhor o funcionamento de determinado conselho.
A professora alerta que, quando se trata de um conselho de caráter consultivo, não tem como firmar uma política de igualdade racial. “Os conselhos estão olhando para onde, estão respaldando o quê?”, questiona Regimeire sobre o papel da ferramenta.
Após o conselho municipal, é possível verificar que os principais departamentos relacionados à promoção da igualdade racial são divididos, majoritariamente, em: coordenadoria, subsecretaria e secretaria.
No município de Embu das Artes há um “Programa Municipal de Combate ao Racismo e o Programa de Ações Afirmativas para a População Negra”, mas que não se constitui como um departamento, já que reúne membros de diferentes secretarias e movimentos sociais para o desenvolvimento de políticas públicas.
Segundo Regimeire, é importante ter um setor dedicado ao tema nos municípios.
“Um conjunto de servidores é fundamental para ter o objetivo de pressionar outros setores, fazer com que os outros setores não se esqueçam que a dimensão racial estrutura as relações sociais no Brasil”
Regimeire Maciel, professora de políticas públicas
No entanto, isso está distante da maioria das cidades. A reportagem buscou informação sobre a existências de departamentos que tratem do assunto junto às 39 prefeituras. Sete delas confirmaram não possuir nenhum órgão: Arujá, Biritiba-Mirim, Cajamar, Embu-Guaçu, Guararema, Salesópolis, São Lourenço da Serra.
Outras sete não informaram a situação e não apresentam nos portais oficiais alguma área para a pasta específica: Barueri, Caieiras, Juquitiba, Pirapora do Bom Jesus, Santa Isabel, Santana de Parnaíba, Vargem Grande Paulista.
Mas há exceções.
Exceções à regra
Em Osasco, o único município com secretaria voltada para a igualdade racial, o departamento funciona desde 2020, quando a coordenadoria foi desmembrada para secretaria executiva.
A secretaria atualmente está sob responsabilidade de Deise Ventura, após a morte da Secretária Executiva Amanda França, empossada no dia 28 de agosto de 2021. Atualmente, a equipe é composta por 32 colaboradores distribuídos em três gerências.
Alexandra Pontieri, 52, diretora executiva da Secretaria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa de Osasco, explica como está desenhado o organograma do setor.
“Abaixo da secretaria do Gabinete, nós temos três diretorias: Diretoria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa, a Diretoria de Ações Afirmativas e a Diretoria do Patrimônio Cultural, que cuida das casas de axé e dos terreiros de Umbanda e Candomblé, e, também, dos povos originários”, descreve.
O órgão trabalha a pauta racial na área da educação, levando a temática dos povos originários e do racismo para as escolas e promovendo projetos de rodas de conversa em cooperativas de reciclagem. Eles também possuem um conselho municipal de promoção da igualdade racial.
Apesar da estrutura considerada grande quando comparada a outros municípios, avanços ainda são necessários. É o que afirma Yasmin Gabrielle, 23, co-fundadora do coletivo Viela Vive, criado em 2018 com a intenção de ocupar artisticamente a passagem da Viela Cacilda de Albuquerque, no bairro do Rochdale, zona norte de Osasco.
Ela cita o caso ocorrido na Fito (Fundação Instituto Tecnológico de Osasco), onde uma criança de 7 anos sofreu racismo. O caso foi denunciado pelos pais Aline Gabriel e Fernando Gabriel, nas redes sociais.
“O que a cidade de Osasco está fazendo para lidar com isso?”, questiona Yasmin. “Muita coisa está atrasada, a partir desse exemplo de que uma escola privatizada não respeita crianças pretas, como se lá não devesse ser o lugar delas. Isso é bastante complicado.”
Segundo a diretora executiva da Secretaria de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa de Osasco, há planos para trabalhar a questão em 2024.
“Pretendemos pensar no ambiente pedagógico, na construção coletiva com toda a comunidade de um currículo antirracista. Vamos pensar para além do professor de história e geografia olhe para essa pauta, incluindo outras disciplinas para falar sobre o assunto”, afirma Alexandra.
A visão de que o desenvolvimento de políticas públicas antirracistas está atrasado também é compartilhada por Elias Nascimento, 26, membro do Coletivo Estadual de Combate ao Racismo e morador de Guarulhos, na Grande São Paulo.
“Há uma lacuna notável na abordagem dessas políticas, que deveriam impactar estruturas econômicas e abordar as formas cotidianas de violência enfrentadas pela população negra”
Elias Nascimento, membro do coletivo estadual de combate ao racismo
No caso guarulhense, há uma Subsecretaria da Igualdade Racial. Criada em 2017 pela Lei 7.550, o órgão é vinculado à Secretaria de Direitos Humanos.
Nascimento destaca que, apesar da existência da subsecretaria, a maioria das ações parece se restringir ao âmbito simbólico. “Observamos campanhas de conscientização, mas não identificamos a implementação de políticas públicas.”
A Agência Mural entrou em contato com a subsecretaria para entender as ações realizadas, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. Na estrutura da secretaria, é possível ver que há, também, um Compir (Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial).
Na base da pressão
Em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, movimentos sociais têm denunciado a atual gestão do prefeito Orlando Morando (PSDB) por racismo institucional. O município tem enfrentado a falta de políticas públicas para pessoas negras e o desmonte de espaços públicos, como o fechamento de bibliotecas, da Fundação Criança e do PEAT (Programa de Educação do Adolescente para o Trabalho).
Três instituições fizeram uma denúncia junto ao Ministério Público: o PMMR (Projeto Meninos e Meninas de Rua), o MNU (Movimento Negro Unificado) e a Uneafro (União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora).
Em maio do ano passado, foi protocolado um documento pelo não cumprimento de políticas públicas para a população negra do município. O processo está em andamento.
“Vimos uma série de práticas de desmonte na cidade, fomos percebendo que configurava com o racismo institucional”, conta Néia Bueno, 50, coordenadora do Projeto Meninos e Meninas de Rua.
Em junho deste ano, os movimentos sociais também denunciaram a prefeitura de São Bernardo no Fórum Permanente sobre Afrodescendentes da ONU (Organização das Nações Unidas), por racismo institucional.
Com a pressão dos movimentos, o prefeito Orlando Morando (PSDB) assinou um termo antirracista e colocou outdoors com os dizeres “Cartão vermelho para o racismo” pela cidade.
“Estamos tendo um retorno positivo de algumas coisas aqui (na cidade) com essas ações, mas ele (prefeito) não chamou o fórum para conversar. Ele criou o conselho de igualdade racial, mas a gente não sabe como está formado ainda”, lamenta Néia.
A coordenadora do PMMR ressalta que é importante um conselho para discutir a questão racial, porém precisa ter recursos financeiros que coloquem os projetos em prática.
Procurada, a prefeitura de São Bernardo do Campo afirma que dispõe, em sua estrutura administrativa, o CMIR (Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial) composto por representantes de secretarias municipais e membros da sociedade civil.
Além disso, a cidade afirmou que “foi sancionada lei municipal que reserva 25% das vagas oferecidas nos concursos públicos da cidade aos negros. Podem concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo IBGE”.
Já no município de Mauá, não há um conselho para reunir a população na construção de políticas públicas raciais. A cidade possui uma Divisão de Promoção da Igualdade Racial, composta por apenas um funcionário, e que fica dentro da Gerência de Promoção de Direitos.
Hosana Meira, 44, é orientadora social em Mauá e militante do movimento negro há quase dez anos. Ela é também uma das fundadoras do Movimento Antirracista Dandara, que atua junto a outros coletivos no Fórum de Igualdade da cidade.
“O prefeito Marcelo Oliveira (PT) firmou um compromisso com nós do movimento negro”, afirma Hosana. Segunda ela, foi prometida a criação de uma Coordenadoria de Igualdade Racial, porém, após três anos, o compromisso não foi cumprido e o município ainda dá passos lentos no que diz respeito ao tema.
A orientadora social relata a perda de documentação de conselhos que existiram durante os anos anteriores. “A gente não tem nada de histórico, sumiu tudo”, pontua.
Na gestão anterior, com o ex-prefeito e atual deputado estadual Átila Jacomussi (Solidariedade), Mauá contava apenas com um Conselho de Igualdade Racial que era no formato consultivo, em que os membros não conseguiam votar, apenas eram consultados e não tinham poder de decisão. Isso durou até o fim do mandato do ex-prefeito, sem muitas ações concretas.
“Se a gente não colocar pressão, eu duvido que saia alguma coisa. A nossa situação é triste, a situação do povo preto e do povo indígena em Mauá é um descaso”, diz a líder do Movimento Antirracista Dandara.
Para entender como está o andamento das políticas raciais em Mauá, a Agência Mural entrou em contato com a assessoria de imprensa da gestão, mas não teve retorno. Nas redes sociais e nos canais oficiais da prefeitura, não há ações previstas apoiadas pelo município para o mês da Consciência Negra.
Possíveis caminhos
As políticas para promoção da igualdade racial ganharam força no primeiro mandato do governo Lula, em 2003. Segundo a professora do curso de políticas públicas da UFABC, Regimeire Maciel, há bons caminhos no âmbito federal que podem ser adotados e adaptados pelos municípios.
“A reserva de vagas para pessoas negras no funcionalismo público é um passo importante, por exemplo, até para pensar na construção dos setores”
Regimeire Maciel, professora de políticas públicas da UFABC
Outro ponto importante é pensar na aplicação da Lei 10.639, que prevê o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. “A gente não sabe como tem sido feita, cada município faz de um jeito e falta uma avaliação”, analisa.
Além disso, é fundamental que se estruture um setor com verba e recursos efetivos para desenvolver políticas e não seja apenas um espaço simbólico.
“Se o setor não tem capacidade orçamentária, vai ser um fiasco. Efetivamente as coisas podem não ocorrer”, diz a educadora.
Ministério só em 2023
Após 20 anos do início das políticas públicas de promoção para a igualdade racial a nível nacional, foi criado o Ministério da Igualdade Racial, em janeiro de 2023, durante o terceiro mandato do atual presidente Lula.
O órgão está estruturado em três secretarias: Secretaria de Políticas de Ações Afirmativas e Combate e Superação do Racismo; Secretaria de Gestão do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial e Secretaria de Políticas para Quilombolas, Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana e Ciganos.
No governo estadual, por sua vez, há a CPPN (Coordenadoria de Políticas para a População Negra), vinculado à Secretaria da Justiça e Cidadania.